Os fidalgos e o xampu
"O foro privilegiado é a excrescência que divide o Brasil em
moradores da casa-grande e moradores da senzala"
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O
desembargador Ernesto Dória, um dos 25 presos da máfia da venda de
sentenças, foi solto na madrugada de segunda-feira. Ao deixar a Polícia
Federal, ajoelhou-se, fez o sinal-da-cruz e ergueu os braços para o alto.
Precisava agradecer aos céus? Bastava agradecer ao "foro privilegiado",
excrescência em nome da qual se criou a seguinte bruxaria: dos 25 presos, 21
seguem presos e quatro – um procurador e três desembargadores – estão livres
como os passarinhos de Quintana. É mais um exemplo da necessidade de acabar
com o foro privilegiado, instituto que, ao remeter o julgamento de
autoridades para tribunais superiores, divide o país em moradores da
casa-grande e moradores da senzala.
Os defensores dizem
que o foro privilegiado:
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Não fere o
princípio de que todos são iguais perante a lei porque protege a
função pública, e não a pessoa que a exerce. (Fosse isso, o
ex-petista Juvenil Alves não teria direito a foro privilegiado
porque é acusado de comandar um esquema de sonegação que desviou
perto de 1 bilhão de reais dos cofres públicos. O que se protege
aqui? O mandato parlamentar ou a pilantragem?)
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Não é
privilégio, mas garantia jurídica para que a autoridade possa bem
cumprir sua função pública. (Então, o foro privilegiado deveria ser
restrito a crimes funcionais, conexos com a função. O ex-deputado
Hildebrando Pascoal teve direito a foro privilegiado no processo por
assassinato. Matar é crime funcional?)
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Protege as
autoridades da perseguição de juízes de primeira instância e
procuradores ávidos por holofotes. (Decisões de primeira instância
não são irrecorríveis. Aliás, não há exemplo de autoridade
"perseguida" que não tenha revertido a "perseguição". Sem contar que
são as autoridades – não os cidadãos comuns – que têm mais condição
de buscar reparação judicial e reverter "perseguições".)
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É uma garantia
de que autoridades serão julgadas com justiça, por um órgão
colegiado composto de magistrados experientes. (É por isso que a
doméstica Maria Aparecida de Matos passou um ano e sete dias na
cadeia por ter furtado um vidro de xampu. Cidadãos comuns não
precisam de julgamentos justos nem de juízes experientes?)
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É uma garantia
para a sociedade, pois os tribunais superiores são mais infensos à
eventual pressão do acusado poderoso. (O Supremo Tribunal Federal
pode não ter cedido à pressão de ninguém, mas o fato é que, na
democracia, nunca condenou um deputado federal, um senador, um
ministro. Nunca.)
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Nos Estados Unidos,
não tem foro privilegiado. Vai ver que lá não existe garantia jurídica, as
autoridades não exercem bem sua função pública e vivem sendo perseguidas, e
a sociedade, coitada, não sabe o que é julgamento justo.
Lembram-se dos
fidalgos, dos doutores, dos membros da família do imperador, dos cavaleiros,
dos escrivães da Real Câmara, que tinham foro privilegiado? Pois é, os nomes
e os títulos mudaram desde o Império. Só os nomes e os títulos.
Fonte: Rev. Veja, André Petry, ed. 2006,
2/5/2007.
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