Feras do mar
O
editor on-line da matéria deu-lhe o título de A nau dos dinossauros, embora
a versão A primeira é que o artigo de Johann Hari¹ sobre o cruzeiro marítimo promovido pela National Review, a bíblia dos conservadores americanos, no qual embarcaram 500 exemplares entre os mais truculentos e sanguinários da espécie neo-conservadora, está bem engraçado, levando-se em conta os dotes humorísticos do autor, que também embarcou para espioná-los. A segunda é que meu título aí em cima é disparado o melhor deles. Considerando os passageiros do Oosterdam, o navio assassino – desculpando o péssimo trocadilho com Orca, a baleia assassina. Empenhados em defender a Tradição (da laia deles), a Família (a própria) e a Propriedade (imagine), para eles, a guerra do Iraque é um “sucesso notável”, o aquecimento global “não existe”, Pinochet “salvou o Chile”, os muçulmanos irão dominar a Europa e, “se Deus quiser”, Bush vai bombardear o Irã. Tudo o que os conservadores negam em público, o fato de o Iraque ser um novo Vietnã ou Bush defender unicamente os interesses de classe dos ricos, no navio é aceito e comentado como verdade absoluta. Então os papos rolam assim: - O senhor tem filhos na Inglaterra? – pergunta uma senhora ao repórter e quando este diz que não, ela o adverte: - O senhor deveria pensar a respeito. Os muçulmanos se reproduzem como coelhos. Logo, logo, vão invadir toda a Europa!” Durante o cruzeiro este é o assunto da vez: se existem cruzeiros de enxadristas, de solteiros, de dançarinas de rumba, aquele era o cruzeiro “os muçulmanos estão às nossas portas”. Uma mulher conta que reza todos os dias para “agradecer a Deus por ter criado a Fox News”, mas seu interlocutor protesta: - O modo como a mídia fala da guerra do Iraque é escandaloso. Até a Fox News fala de um jeito escandaloso. Ouvindo, parece que só gente nossa morre por lá. Nunca se fala das perdas inimigas, embora matemos aos montes, todos os dias. Na verdade, em 1955, quando a National Review foi fundada, o conservadorismo era encarado pelas elites americanas como uma espécie de doença mental. Quem imaginaria que 53 anos depois, 500 neoconservadores a bordo dum navio se confessariam totalmente indiferentes ao fato de que 80% dos iraquianos quisessem a partida de invasores: - Não os levamos a sério. Ninguém foi torturado em Abu Ghraib ou Guantánamo, Donald Rumsfeld era o melhor de nós todos e Bush é um herói: vai lançar um ataque contra o Irã! O navio faz uma parada em Puerto Vallarta, no México – um país que os conservadores sonham ver isolado por um muro de 5 mil kilômetros de cumprimento – e quando repórter menciona ir até a cidade, o entorno reage com pavor: - O senhor quer morrer aqui? A mulher do assistente pessoal de Rumsfeld ridiculariza o feminismo e “essas mulheres que querem mudar o mundo para pior”. Quando o repórter diz que na Alemanha se discute exigir a extradição de Donald Rumsfeld, acusado de crimes de guerra, um deles ameaça: - Se os alemães acreditam que podem tomar decisões pelo mundo todo, pior para eles, só nos resta bombardeá-los. Lembra-se Pinochet, que abriu um precedente, contudo alguém protesta: - Tratar Rumsfeld como Pinochet é indigno! E outro rebate: - Tratar Pinochet daquele jeito é que foi indigno. É um herói, salvou o Chile. Ele privatizou as aposentadorias! Até o fim da viagem todos concordam com a previsão que “em 2015 haverá uma evacuação em larga escala, a Europa será dominada pela Al-Qaeda e a França, de bico fechado, vai se tornar província da Bósnia”. O jornalista observa que em uma semana perguntaram-lhe nove vezes – ele contou – quando resolveria deixar a Europa para refugiar-se no único santuário ainda a salvo, os EUA. Na chegada, despedem-se do repórter com um gesto afetuoso: - Vamos largar a Inglaterra para os muçulmanos. Melhor vir para a América A propósito: para quem não sabe ou finge que não sabe ou não quer nem saber, os políticos do DEM são seus equivalentes em âmbito nacional. Em sentido estrito. E feroz.
¹ Colunista do The Independent de Londres.
* A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.
Fonte: Congresso em foco, 26/2/2008.
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