FALSA CRISE DA PREVIDÊNCIA
A
crise da Previdência, supostamente resultante de falência histórica –
composta por envelhecimento da população, baixa taxa de natalidade,
elevação do salário mínimo e aposentadoria precoce, dentre outros fatores –
é desmistificada pela professora
Na tese, a professora mostra como este saldo acaba sendo apropriado pela política econômica de manutenção de superávits primários, adotada pelas correntes ortodoxas de gestão que ocupam o Banco Central. Todos os grandes proprietários de títulos públicos do governo acabam sendo os beneficiários diretos desse déficit artificial, favorecidos pela política de juros altos. “Recursos da Previdência estão sendo retirados para serem aplicados no orçamento da União, que está legalmente autorizada a reter 20% dos impostos e das contribuições da Seguridade Social para aplicar livremente em qualquer tipo de despesas”, avalia Denise. Desmonte de direitos A professora ainda destaca que o processo de execração da Previdência pública faria parte do interesse desse grupo em privatizá-la, liberando recursos públicos que hoje estão vinculados a gastos sociais. Com uma Previdência privatizada, todos os trabalhadores rurais e os cerca de 40 milhões de trabalhadores informais seriam excluídos, em um processo que a professora classificou como uma verdadeira “luta de classes”. Mesmo tendo o nível de renda da classe trabalhadora caído nos últimos anos, as receitas da Previdência não se mostram deficitárias, segundo os cálculos de Denise: “pode ser que em outros países do mundo seja (deficitária), por terem apenas como base o desconto na folha de pagamento. Mas no Brasil não é, devido à diversificação de seu financiamento. O lucro e o faturamento são seus maiores financiadores e a idéia de que há um déficit é tão massacrante na mídia, que aqueles que defendem uma reforma na Previdência propõem uma reforma baseada no desmonte de direitos. A dívida do governo com a classe trabalhadora foi esquecida. Jornal da UFRJ: Na sua opinião, há má fé por parte do governo federal na divulgação dos dados de arrecadação da Previdência? Denise Gentil: Existem interesses econômicos poderosos empenhados em propagar a idéia de que há um déficit na Previdência que, concretamente, não existe. E não sou só eu quem diz isso, a maior parte das pessoas que defendem a manutenção de uma Previdência pública comprovam facilmente, através dos próprios dados oficiais disponibilizados pelo website do Ministério da Previdência, que há distorções. Nele, é possível encontrar dados de fluxo de caixa do INSS, com duas informações cruciais: o saldo previdenciário e o saldo operacional do INSS. Se você observar o saldo previdenciário, ele de fato é negativo, pois seu cálculo levanta apenas as receitas de contribuição ao INSS do empregador e dos trabalhadores. No entanto este não é o resultado final da Previdência Social, porque considera apenas uma receita parcial, não a receita total da previdência. As receitas que faltam, como a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), são receitas de grande porte e, mesmo assim, não aparecem no cálculo do saldo previdenciário. Se calculadas todas as fontes de financiamento, percebe-se que há um superávit operacional de R$ 8,2 bilhões na Previdência, no ano de 2004. Portanto, isso levanta uma questão: se não há um déficit, quais são os interesses do governo em propagar a idéia de que há um déficit? Jornal da UFRJ: As estatísticas comprovam que o governo tem feito uma política extremamente restritiva de manutenção de superávits primários gigantescos. Esses superávits primários implicam na retirada de recursos da Previdência para serem aplicadas no orçamento da União. Essa retirada é legal? Denise Gentil: A partir do Plano Real, houve o recurso da Desvinculação das Receitas da União, chamada na época de Fundo Social de Emergência e depois de Fundo de Estabilização Fiscal, através do qual o governo foi autorizado a retirar 20% dos impostos as contribuições da seguridade social para aplicar livremente em qualquer tipo de despesas. Ou seja, houve a desvinculação dos recursos que eram direcionados aos gastos da Seguridade para gastos com outros fins. Foi uma desconstrução do sentido da seguridade social, e a justificativa para isso era, na época e até hoje, de que o equilíbrio orçamentário é mais importante e dele depende o controle do processo inflacionário. Não é difícil perceber que esse discurso de falência faz parte de uma retórica que pretende destinar uma fatia cada vez maior do orçamento público para fora da seguridade social. Quem tem mantido o superávit primário é a seguridade social, pois há uma transferência óbvia de recursos de um para o outro, ou seja, do orçamento da seguridade para o orçamento fiscal. Jornal da UFRJ: Com que finalidade foi estabelecida, com a Constituição de 1988, a diversidade da base de financiamento da Previdência? Denise Gentil: A Constituição de 1988 teve uma importância inigualável para a Previdência, pois criou um sistema de seguridade social, muito mais amplo e capaz de amparar inclusive trabalhadores rurais, que não contribuem significativamente para a Previdência. As pessoas passaram a ter direito a esse serviço de acordo com sua necessidade, e a contribuir de acordo com suas possibilidades. A Previdência foi desvinculada da noção de seguro. O seguro gera um sistema excludente que garante assistência apenas àqueles que são capazes arcar com altos custos. O sistema de seguridade social foi um contrato social através do qual o Estado passa a garantir proteção social a todos que necessitam, independente de sua capacidade contributiva. O direito aos benefícios são um direito da cidadania. O conceito de seguridade envolve, por isso, a universalidade da cobertura. Mesmo assim, o sistema previdenciário continuou sendo excludente, já que favorece apenas a quem possui carteira assinada e contribui com os impostos. A garantia de previdência social aos trabalhadores rurais foi um grande avanço na direção da universalização do sistema. Mas muito ainda pode ser feito. Devido às proporções do sistema de seguridade, percebeu-se que não era possível construir um sistema financiado unicamente pelas contribuições sobre a folha de salários. Os economistas e intelectuais envolvidos com a defesa de políticas sociais universais que participaram da Constituição de 88 claramente já tinham essa visão, portanto fizeram uma diversificação das fontes de financiamento desse sistema, criando outras formas de captação de receita. Mas, a partir do momento em que se percebeu que a Seguridade havia se tornando uma grande fonte de arrecadação, houve o interesse de se destinar parte dela para outros fins. Mais na frente, em 2000, veio a Lei de Responsabilidade Fiscal, cujo nome parece ser uma ironia se consideradas algumas de suas diretrizes. Ela criou o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, cuja receita é baseada unicamente na contribuição ao INSS dos trabalhadores e empregadores. Isso isolou a previdência das outras formas de financiamento da seguridade, gerando um déficit artificial. Jornal da UFRJ: Quem são os favorecidos por esse déficit artificial? Denise Gentil: Todos os grandes proprietários de títulos públicos do governo. São eles que se beneficiam da política de juros altos, e possuem grande influência no Banco Central. É um grupo que pressiona por uma política econômica restritiva. O processo de execração da Previdência pública faz parte dos interesses desse grupo em destinar parcela crescente do orçamento público para a geração de superávit primário. A privatização (parcial ou total) da previdência atende a esses propósitos de liberar recursos públicos que hoje estão vinculados a gastos sociais. E com uma Previdência privatizada, os trabalhadores rurais e os cerca de 40 milhões de trabalhadores informais seriam definitivamente excluídos, deixados de lado. É uma luta de classes. Jornal da UFRJ: Essa manipulação dos dados oficiais pode ser considerada fraude?
Denise
Gentil:
Não,
pois se construiu um amparo legal para isso, inclusive através do artigo 68
da Lei de Responsabilidade Fiscal. A concepção de que apenas pertence à
Previdência a contribuição sobre a folha de pagamento foi se consolidando
ao longo dos anos 90, portanto, não é fraude falar isso. Mas ela se baseia
numa interpretação, do meu ponto de vista, incorreta do que estabelece o
artigo 195 da Constituição, o que leva a uma visão distorcida da questão.
Além da contribuição sobre a folha de pagamentos há a contribuição sobre o
lucro, sobre o faturamento, a receita de concursos de prognósticos e a
contribuição sobre a movimentação financeira. Todas essas receitas financiam
os gastos da seguridade social do qual a previdência é parte integrante.
Pela Constituição de 88, o artigo 68 da Lei de Responsabilidade Fiscal,
referente a essa questão, não possui sustentação legal. É inconstitucional.
Esse conceito de déficit da Previdência é, portanto, inconstitucional, uma
verdadeira afronta à Constituição. O déficit previdenciário do mundo
ocidental é resultado da política restritiva adotada de maneira hegemônica
nas economias desses países. A partir do momento em que passarem a
valorizar a geração de empregos e o estímulo à produção, esse déficit
desaparecerá. E os economistas sabem disso, sabem que essa política de
desmantelamento do Estado promovida pelo superávit
primário é uma política recessiva. Por todos esses motivos, a política
previdenciária no Brasil tinha tudo para ser deficitária. Mas não é. Embora
o nível de renda da classe trabalhadora tenha caído e o desemprego seja
elevado, há uma fonte poderosa de financiamento da Previdência, que são o
lucro e o faturamento. As receitas da Seguridade (e da Previdência também)
estão crescendo, e o sistema não é deficitário. Pode ser que em outros
países do mundo isso aconteça, por terem como base de financiamento apenas o
desconto na folha de pagamento. Mas no Brasil não é, devido à
diversificação do financiamento da Previdência. Entretanto, a idéia de que
há um déficit é tão massacrante na mídia, que aqueles que defendem uma
reforma na Previdência propõem uma reforma baseada no desmonte de direitos.
Somente um processo democrático consistente e sólido poderia resgatar o
conceito constitucional de seguridade social e evitar o desmantelamento da
Previdência pública. No momento, a dívida social do governo com a classe
trabalhadora foi esquecida. Calculei um
superávit
de R$
8,2 bilhões na Previdência e de R$ 32 bilhões na Seguridade Social no ano
de 2004. Onde foi parar esse dinheiro? Que uso o governo deu a recursos que
deveriam estar aplicados em saúde, em assistência social e em previdência?
Fonte: Jornal da UFRJ, Raphael Ferreira e foto Gabriela d´Araujo, jan/2006. |