As várias faces da rebeldia 
 

 

Transtornos de Déficit de Atenção e Opositor Positivo são difíceis de serem diagnosticados e dividem a opinião de médicos e especialistas em saúde quanto a serem classificados como doença ou não e sobre como deve ser o tratamento. No meio desse imbróglio, crianças ficam sem a assistência necessária.

 

Quem já precisou de uma consulta com psicólogo ou psiquiatra em um hospital público sabe o quanto é difícil. Mesmo que seja usuário de um convênio particular – que, em geral estabelece 15 minutos para consultas mensais – os psiquiatras se limitam a prescrever medicamentos e encaminhar o “cliente” para um tratamento psicológico, geralmente não coberto pela estrutura do convênio.

Na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) não há como marcar previamente uma consulta no primeiro contato. A orientação para quem deseja levar uma criança para se consultar com um psiquiatra é que procure antes o atendimento de um pediatra do hospital. É preciso ir pessoalmente para tentar o atendimento no dia e, caso o pediatra considere necessário, ele faz o encaminhamento para um psiquiatra da casa.  

No Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo IPq/HCFMUSP, teoricamente a triagem está aberta permanentemente. Mas uma pessoa que procure hoje pelos serviços precisa ter um encaminhamento do psiquiatra de um posto de saúde. Em outubro, a informação era de que não havia mais vagas para este ano. A orientação recebida foi ligar novamente na última semana de janeiro para participar da triagem de fevereiro. Ou seja, quatro meses de espera. Outra informação é que a consulta só seria agendada dependendo da quantidade de vagas.  

A mãe de P. um garoto de 9 anos, que há dois anos começou a apresentar problemas de socialização e agressividade, procurou o Hospital das Clínicas, onde, segundo afirma, a triagem para obter um tratamento é muito concorrida. Com a ajuda de uma amiga conseguiu, por meio de uma carta, explicar a situação de seu filho para a chefia do setor de psiquiatria infantil e ele foi atendido. Os médicos diagnosticaram Dislexia, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno Opositivo Desafiador (TOD). Atualmente, a criança toma medicações, recebe atendimento psicológico e os pais participam de um grupo de orientação familiar. “Meu filho é uma criança com o remédio, e outra sem ele!”, relata a mãe. O menino foi aceito numa nova escola (particular), na qual vem se adaptando perfeitamente e evoluindo bastante.  

Mas os transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Opositivo Desafiador (TOD) e de Conduta (TC) dividem a opinião dos médicos. O primeiro, já bastante conhecido, caracteriza a criança por demais irriquieta, que não consegue se concentrar em suas tarefas e atividades, enfrentando por isso dificuldades de aprendizado e discriminação por parte de colegas, professores e outras pessoas de sua convivência, que não conseguem conviver com esse temperamento agitado. E os dois últimos, incluídos na Classificação Internacional de Doenças, sob a sigla CID-10, em 1992, são definidos por uma postura agressiva ou desafiante da criança ou adolescente, em relação a qualquer figura que represente autoridade. Extrapola as travessuras infantis ou a rebeldia do adolescente. Incluem episódios, nos casos mais graves (TC), de crueldade em relação a outras pessoas ou animais, destruição de bens de terceiros, condutas incendiárias, roubos, mentiras freqüentes, fuga da escola ou da casa.  

Um dos responsáveis pelo atendimento no HC, o psiquiatra Paulo Germano Marmorato, acredita que os diagnósticos da psiquiatria infantil são alvo de polêmica porque “as manifestações psíquicas são difíceis de ser mensuradas e as fronteiras do normal e do patológico nesse campo não são nítidas”, afirma. Além disso, aponta, há o fato de que os conceitos diagnósticos em psiquiatria infantil vêm recebendo atenção significativa da medicina há relativamente pouco tempo (a partir de 1950) – estudos esparsos sobre psiquiatria infantil existem pelo menos desde o século XIX, mas ganharam impulso científico no pós Segunda Guerra – e como estão em processo de construção são naturalmente imperfeitos, como acontece com a epilepsia e até o enfarto cardíaco, estudados há muito mais tempo e mais facilmente investigados a partir de dados mais concretos, como o uso de eletro-encefalograma ou exames laboratoriais. “De qualquer forma, um bom clínico ou cientista sabe que o diagnóstico não é um dado concreto, mas uma entidade abstrata, uma representação do entendimento humano da realidade”, ressalta.  

A médica Rogéria Ribas Prestes, da Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba – PR, alerta sobre a necessidade de seus colegas – médicos de família – dedicarem maior atenção às famílias com crianças e adolescentes que apresentam esses transtornos. Ela fala da situação da escola pública, em que se verifica que a cada oito salas de primeiro ano iniciadas, sobre apenas uma de oitava série ao final do ciclo (fenômeno atribuído em parte ao TDAH). Prestes conta que a prevalência desses transtornos, de acordo com estudos internacionais, afetaria cerca de 5% da população. Os fatores que poderiam contribuir para o seu desencadeamento são hereditariedade, mau funcionamento do córtex pré-frontal do cérebro e histórico familiar (violência, brigas, uso de drogas e álcool). A médica destaca que se o Transtorno Opositivo Desafiador não for devidamente cuidado, pode evoluir para o Transtorno de Conduta, e defende o tratamento a partir da adequação de práticas educativas e condutas psicoterapêutica e farmacológica. “O que mais chama a atenção é a ligação do TOD a depoimentos de hiperatividade”, diz Prestes. Os psicólogos explicam: a criança sente-se tão mal pela dificuldade de aprendizado e de aceitação social que gradativamente vai se tornando mais e mais rebelde.  

Essa posição é contestada por Ana Cecília Sucupira, coordenadora da área técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno do Ministério da Saúde. “O que mais chama a atenção é como se produzem doenças!”. Para ela, os diagnósticos seriam inconsistentes e as medicações prescritas pelos psiquiatras prejudiciais à saúde. “O metilfenidato pode viciar ou comprometer o crescimento da criança, e a fluoxetina (antidepressivo), pode causar dependência e levar ao suicídio. Era considerada como doping e proibida no país até a década de 1980”, alerta.

No entender de Sucupira está havendo uma “medicalização” de crianças e adolescentes e a transformação de um comportamento – resultante da falta de estabelecimento de limites pelos pais e/ou cuidadores – em doença. Por trás de tudo, acusa, estaria o interesse dos fabricantes dos remédios. “Foi a indústria que mais cresceu. Aumentou o faturamento em cerca de 400%!”, destaca.  

Em um artigo sobre Dificuldades Escolares que escreveu em co-autoria com a médica Maria Aparecida Affonso Moysés, professora do Departamento de Pediatria da Unicamp, destaca que antes de uma incapacidade, a falta de atenção de uma criança em sala de aula pode significar uma falta de motivação decorrente da não interação professor/aluno e/ou métodos pedagógicos inadequados. Ela explica também que as crianças que não têm acesso à pré-escola não foram familiarizadas com os padrões de comportamentos exigidos e irão passar pela socialização secundária (a primeira refere-se à socialização em família) simultaneamente ao processo de alfabetização. “Espera-se dos alunos das escolas de periferia comportamento igual ao de crianças já habituadas ao ambiente escolar. Assim, são consideradas hiperativas quando, desconhecendo a disciplina, conversam, levantam-se, enfim, não mantêm a atenção requerida pela escola para a aprendizagem”, expõe.  

Outra crítica de Sucupira diz respeito ao crescimento infantilizado das crianças de famílias mais abonadas. “Enquanto as crianças pobres sobem em árvores, jogam bola, soltam pipa, as crianças de classe média nem saem à rua sozinhas”, observa. Logicamente, estímulos diferentes levam a habilidades diferentes. “As pobres muitas vezes não têm habilidade para preencher um questionário porque não conhecem isso e, erroneamente, recebem o diagnóstico de TDAH”.  

Era de se esperar que a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, entidade nacional que congrega médicos que atuam em postos e outros serviços de Atenção Primária em Saúde, incluindo os do Programa de Saúde da Família (PSF), defendesse uma posição a respeito do tema, e que tivesse alguma política estabelecida para atendimento de famílias com crianças e adolescentes com dificuldades semelhantes às classificadas como transtornos.  

No entanto, durante cerca de dois meses em que foi procurada para falar sobre o assunto, a presidente da entidade em São Paulo, Renata Luciana Fregonezi, limitou-se a indicar Raul Gorayeb, professor do Departamento de Psiquiatria da Unifesp, chefe do setor de Psiquiatria da Infância e Adolescência e diretor do Centro de Referência da Infância e Adolescência (Cria), que não é ligado à SBMFC.  

Seguindo a linha de raciocínio de Sucupira, Gorayeb diz que a transformação de comportamentos em doença tornou-se uma das principais características da psiquiatria de hoje, que se pretende “moderna” e “científica”. “Os nomes TDO e TDAH, embora constem das classificações oficiais das Doenças Psiquiátricas, não passam de descrições de comportamentos que arbitrariamente são considerados doenças, sem que ninguém tenha até hoje demonstrado qualquer evidência de que exista uma perturbação biológica que os explique”, pondera.  

Clínico com mais de trinta anos de experiência em serviços públicos e privados, Gorayeb não considera que existam tais “transtornos”, mas sim crianças que se desenvolvem nem sempre de acordo com o que os adultos esperam. “Esses adultos nunca pararam para se perguntar qual a sua responsabilidade, como adultos, pais e educadores, quando alguma coisa não vai de acordo com o que eles desejam. É mais fácil apelar para a ‘ciência’ e encontrar uma explicação que lhes exima da responsabilidade”, acusa.  

Marmorato discorda e afirma que a mesma postura equivocada em relação à epilepsia ocorre com quem responsabiliza, ou pior, culpa os pais por sua suposta incompetência em educar seus filhos, e estigmatiza as crianças por acreditarem que seriam plenamente responsáveis por suas atitudes. “Assim como se argumenta que simplesmente dar remédios é uma solução fácil, culpar os pais ou a índole da criança pode ser mais fácil, pois não implica na grande responsabilidade que prescrever uma medicação representa. E ainda pior: pode ser uma atitude arrogante, injusta e, por isso mesmo, cruel”, defende. E provoca: “é comum que profissionais que meramente culpam os pais pelo comportamento de seus filhos não se ocupem, de fato, em ajudar essas famílias a se relacionarem melhor – ou não passem do bordão ‘tem que dar limite’”.  

Incidência dos transtornos 

O médico Raul Gorayeb diz que existem trabalhos que se pretendem “científicos”, baseados em questionários dirigidos apenas aos pais e professores, sem que os “pesquisadores” tenham tido qualquer contato com a criança. “Chegam a encontrar em certas cidades, uma porcentagem de 40% de crianças com este problema. Um índice que, para qualquer problema humano, seria considerado uma epidemia, um problema de saúde pública super prioritário”, exaspera-se.  

“No hospital em que trabalho, há um índice muito pequeno de problemas de comportamento desse tipo. Quando avaliamos corretamente uma criança com os sintomas descritos, encontramos desde uma criança normal, cujo comportamento está sendo mal interpretado, até dificuldades psicológicas, ou resultantes das atitudes dos pais ou professores, não específicas de um único problema”, relata.  

Mas em 2002, foi feito no Brasil um estudo epidemiológico, coordenado pela psiquiatra Bacy Fleitlich-Bilyk, do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP, que avaliou a incidência de transtornos psiquiátricos em crianças e adolescentes entre 7 e 14 anos, em municípios do sudeste de São Paulo. Em Taubaté, entre 1.251 crianças, foi encontrada a prevalência de 1,5% de transtornos hipercinéticos (TDAH) e 7,0% de Transtornos de Conduta (o próprio TC mais o TOD). O estudo, baseado em entrevistas, contou com a colaboração de Roberto Goodmand, do Institute of Psychiatry, King’s College, London, e financiamento do Wellcome Trust, órgão britânico de financiamento de pesquisas, além do apoio das prefeituras de Taubaté e Campos do Jordão.  

Com relação aos medicamentos, Gorayeb diz que não existe qualquer teoria, nem dados experimentais que proponham um modelo de compreensão a respeito desses problemas em nível biológico, no sistema nervoso central ou no organismo como um todo, que justifique o seu uso. No caso do TDAH, por exemplo, em que um dos sintomas atribuído a ele é a hiperatividade, ou seja, comportamento agitado, é curioso que a medicação proposta para “tratá-lo” seja um estimulante cerebral.  

Essa opinião vai no sentido contrário às afirmações de Marmorato, que afirma que há estudos que mostram importantes componentes biológicos que poderiam causar tanto o TDAH quanto os Transtornos de Conduta. Um desses estudos, realizado por Van den Ooord e outros autores, em 1994, constatou maior ocorrência em filhos de pessoas com esses diagnósticos, mesmo quando se procurava afastar possíveis influências no modo de criação, como no caso de estudos realizados com crianças adotadas. E outro que mostra alterações no metabolismo do córtex frontal em uma parcela destas crianças, realizado por Casey, em 1997. “Isto não quer dizer que se atribuam esses quadros a causas puramente biológicas. Já está claro que fatores ambientais têm importante influência na gênese e manutenção desses quadros. É comum observar a ocorrência em crianças que vivem num ambiente de constante conflito, onde as práticas educativas são inconsistentes, agressivas ou simplesmente negligentes em relação às necessidades emocionais da criança”, diz o médico do HC.  

Na realidade, afirma, causas genéticas e ambientais ocorrem concomitantemente e tendem a se reforçar. Por exemplo, crianças naturalmente mais inquietas e irritáveis, difíceis de se acalmar, costumam gerar posturas menos adequadas por parte dos cuidadores. Com isso sofrem mais repreensões, são mais castigadas e recebem menos carinho. Reagem então com mais irritabilidade e agressividade formando um círculo vicioso no qual o ambiental e o biológico se alimentam mutuamente.  

No caso das medicações, explica Marmorato, o metilfenidato tem um efeito estimulante nas vias dopaminérgicas (vias cerebrais que utilizam o neurotransmissor dopamina, relacionando o sistema límbico – região das emoções e aprendizagem – e o córtex – região dos mecanismos conscientes). Assim, estimula a capacidade de atenção e do autocontrole motor, contrabalançando justamente a inquietação involuntária excessiva típica do TDAH. Seu uso não visa a imposição de um controle externo às crianças, mas exatamente o contrário: maior autocontrole sobre a atenção e sobre atos muitas vezes impulsivos e irrefletidos. Segundo ele, basta observar e questionar a grande maioria das crianças que usam o medicamento para se constatar que elas não parecem robotizadas, entorpecidas, involuntariamente obedientes, “pelo contrário, ganham maior autonomia e poder de escolha. Se passam a obedecer mais, isto não ocorre diante de qualquer comando, mas nas situações em que se apercebem de que isto é favorável a elas próprias”, diz Marmorato.  

Caso sejam verificados efeitos colaterais relevantes, ou quando a criança relata significativo desconforto, a medicação deve ser suspensa, alerta o psiquiatra, ressalvando que “após algumas décadas de uso sistemático do metilfenidato não se verificaram efeitos adversos importantes (como prejuízo do desenvolvimento corporal e intelectual) a curto ou longo prazo”. E cita um estudo, realizado por Biedermann, em 1990,) em que se verificou que crianças que fizeram uso de Metilfenidato apresentaram menos envolvimento com drogas que crianças com TDAH não tratadas.  

Alternativa para atendimento às famílias 

Na opinião de Gorayeb, há uma distorção grave na assistência à saúde, que é a crença na “superespecialização”. De acordo com ele, os serviços de atendimento à Saúde Mental no Estado de São Paulo existem em número razoável, constituídos, na maioria das vezes, por equipes multidisciplinares e multiprofissionais, especialmente os que atendem crianças e adolescentes. Isso garante um olhar diversificado e menos preconcebido para os problemas que se apresentam. Qualquer criança que apresente suspeitas de problemas clínicos deve ser levada a um desses postos de atendimento e, se os pais não se sentirem satisfeitos com a orientação recebida, devem procurar uma segunda opinião. Quanto ao Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência da Unifesp, o médico informa que atende crianças e adolescentes até dezoito anos, com qualquer problema clínico, sem fazer distinção quanto ao diagnóstico. “As estratégias clínicas de trabalho é que são diferenciadas para atender cada caso, conforme sua necessidade”, destaca.  

Marmorato diz que se tem verificado que, numa sala de aula do ensino fundamental, com cerca de 30 alunos, encontram-se com freqüência umas duas crianças que se recusam a obedecer às solicitações, são facilmente irritáveis, impulsivas e agressivas e não estabelecem vínculos afetivos duradouros. Um possível diagnóstico de TOD nesses casos teria a função de chamar a atenção para a necessidade de ajuda que essas crianças e suas famílias requerem, seja por meio de orientações especializadas, seja por psicoterapias ou medicações.  

Por conta dessa situação, o médico da USP, com o apoio de uma equipe multidisciplinar composta por psicólogos, professores, pedagogos, artistas e pelos próprios familiares de crianças e jovens atendidos no Ipq, está criando a ONG Sinal – Socialização da Infância e Adolescência Laborada, destinada ao acompanhamento de crianças e adolescentes e familiares com dificuldades no convívio social, atendidos no ambulatório de socialização do Instituto de Psiquiatria do HC.  

“O grupo acredita que apenas um trabalho que informe, oriente, fortaleça e trate a família (os cuidadores) possa modificar a vida de crianças com problemas de socialização e quebrar o ciclo de comportamentos anti-sociais e exclusão social.” Quem define é Christiane D’Angelo Fernandes, educadora, mãe de um adolescente hiperativo, que resolveu se integrar à equipe e trabalhar pela causa. “Uma das propostas é realizar novos estudos sobre a prevalência dos transtornos na população brasileira, visando suprir uma escassez de estatísticas nacionais a respeito do tema. Mas tudo depende de recursos a serem ainda alcançados”, destaca.  

Onde buscar mais informações sobre TDAH:  

 

Fonte: ComCiência, SBPC, Sueli Mello, mar/2007.


Opiniões sobre os artigos ...


Coletânea de artigos


Home