Nas entrelinhas do
código Da Vinci
Sexo, fantasias infantis e teorias conspiratórias ajudam a explicar por que
o livro de
O enredo já é de conhecimento geral: a descoberta do "verdadeiro" significado do Santo Graal. Não se trata, como diz a lenda, do cálice usado por Jesus na Santa Ceia, mas da própria Maria Madalena metáfora segundo a qual seu corpo é o recipiente onde Jesus depositara sua semente, ou seja: a mulher com quem teria tido filhos. O resultado seria a descendência que perdura até nossos dias e sobreviveu à perseguição sistemática de fanáticos manipulados pela Igreja, interessada em manter a imagem convencional do filho de Deus. Quem protege Maria Madalena e também sua linhagem são os Cavaleiros Templários, que se converteram em guardiões função que teriam mantido, através dos séculos, resguardados pelas sociedades secretas por eles fundadas.Para que toda essa descoberta se realize, os heróis da trama desvendam incontáveis enigmas, códigos e pistas ocultas. O que mais toca os espectadores e parece ser a fonte do grande apelo popular obtido pelo autor possivelmente seja o fato de que Jesus teria se envolvido sexualmente com Maria Madalena, e com ela constituído família. Por que essa idéia suscitaria tanto interesse? Antes de mais nada, pelo aspecto religioso. O dogma afasta qualquer traço de sexualidade da figura de Jesus. Ele é filho de uma mãe virgem e não há menção a nenhuma atividade sexual de sua parte. SENTENÇA DE MORTE O fato de Dan Brown ter feito uma obra que se contrapõe diretamente à doutrina religiosa sem sofrer punição aponta para a extraordinária importância da Revolução Francesa, que tornou possível a separação entre Estado e religião nos países ocidentais. Apesar de protestos de grupos religiosos em diversas partes do mundo, inclusive Vaticano, em nenhum momento o livro ou o filme foram censurados e o autor perseguido algo impensável em países muçulmanos, onde religião e Estado permanecem fundidos e a figura do Profeta é intocável. Nunca é demais lembrar a fatwa - sentença de morte por blasfêmia e apostasia (fomento ao abandono da fé islâmica) que autoridades religiosas iranianas impuseram ao escritor indiano Salman Rushdie em 1988 por seu livro Versos satânicos. É preciso levar em conta que a forma como Rushdie tratou a figura do Profeta foi muito mais discreta que a de Brown em relação a Jesus em O código Da Vinci. Desse prisma, o sucesso do livro é uma evidência de que vivemos em Estados laicos, nos quais a religião não impõe diretamente suas normas. A fatwa é um exemplo cabal de fanatismo religioso de nossos dias, equivalente às fogueiras da Inquisição na Idade Média e ao Index librorum prohibitorum (Índice de livros proibidos) da Igreja Católica, instituído em 1559 e ainda vigente, obviamente sem a mesma força. A fatwa tem sua contrapartida nos fundamentalistas americanos: a população do chamado Bible belt - que abrange boa parte do sul e do centro dos Estados Unidos, onde prevalecem os evangélicos pentecostais. Entretanto, é importante enfatizar uma diferença capital em relação aos muçulmanos: por mais radicais e fanáticos que os americanos sejam, sua influência política é indireta e obliterada pelo Estado laico. O fanatismo e o fundamentalismo intransigente são exemplos extremos de como é difícil abordar e discutir religião, aliás qualquer crença, ideologia ou visão de mundo. Trata-se de idéias e convicções firmemente arraigadas na própria identidade do sujeito, adquiridas desde a mais tenra infância, associadas com figuras familiares amorosas do passado (pai, mãe etc.), que configuram a maneira de entender o mundo e nele se situar, sendo parte significativa da própria idéia que o sujeito faz de si mesmo. Assim, qualquer discussão sobre tais assuntos é sentida como ameaça à própria existência, à identidade pessoal, uma ofensa que pode desencadeear reações extremas e violentas. Além disso, outro motivo justifica a reação negativa a qualquer análise crítica do fenômeno religioso. Para a maioria das pessoas, a religião simboliza o que há de mais elevado no ser humano sua capacidade de amar, o respeito pelo outro, o interesse na comunidade, o comportamento pacífico e amistoso, o repúdio à violência e à agressividade. Quando alguém critica a religião, as pessoas automaticamente pensam que esses valores estão sendo atacados. A confusão resulta da falta de distinção entre valores éticos e religiosos o que é compreensível, já que durante muito tempo os primeiros se apoiaram nos últimos. ROMANCE FAMILIAR Só mais recentemente foi possível separar os valores éticos dos religiosos. Em outras palavras, tornou-se possível pensar que se deve fazer o bem e evitar o mal não para cumprir um mandamento divino, não por temor à divindade, mas por respeito ao semelhante. Tal visão agnóstica não significa uma volta à barbárie e sim a crença de que o homem, à medida que compreenda e integre seus próprios desejos e conflitos inconscientes, possa se tornar mais responsável por si e pelos outros, procurando conter seus impulsos agressivos e sexuais em prol do bem comum. Os textos sagrados das maiores religiões guardam um enorme acervo de sabedoria recolhida ao longo dos tempos. Que ela tenha se apoiado na figura de Deus para se justificar parece ser uma contingência histórica, o que talvez no futuro - assim como tantas outras ilusões não seja mais necessário, como ansiava John Lennon na canção Imagine. Quem sabe então os homens terão compreendido que Deus e religião são significantes que abrigam não uma essência divina, mas uma realidade humana o melhor de que somos capazes. Freud muitas vezes abordou o fenômeno da religião, reconhecendo seu imenso poder sobre a humanidade. Em linhas gerais, ele a entendia como expressão do desamparo que todos tivemos de enfrentar na primeira infância, o que gera a necessidade permanente de proteção contra os perigos e de figuras paternas que nos garantam proteção e amor. Deus seria esse pai do qual não podemos abrir mão sob o risco de cairmos em desespero ante as dificuldades da vida e a certeza da morte. A maneira como a criança vê os pais na infância cria uma fantasia característica, que Freud chamou de romance familiar. Inicialmente a criança atribui aos pais qualidades extraordinárias, considera-os seres perfeitos e incomparáveis em sua grandiosidade. Essa visão necessariamente cede espaço a uma apreciação mais realística, porque entra em contato com as limitações dos adultos, além das inevitáveis frustrações e dificuldades. Nem por isso, entretanto, ela abre mão facilmente dessa visão idealizada da família. Durante certo período, fantasia ser filha de outros pais, de alta estirpe, que, no futuro, virão resgatá-la, levando-a para um lugar mais condizente com sua ascendência aristocrática. Essa fantasia dá expressão tanto aos conflitos de rivalidade edipiana com o pai, como também é uma maneira de manter a forma grandiosa com a qual o via anteriormente e que teve de abandonar diante dos embates com a realidade, o que a fez deparar com suas fraquezas e debilidades. A antiga imagem idealizada do pai se refugia também nas figuras de deuses e heróis existentes na cultura, como bem mostrou Otto Rank em seu clássico O mito do nascimento do herói. Estudando narrativas produzidas por povos muito distantes no tempo e no espaço - como as dos reis babilônicos Gilgamesh e Sargon, do herói hindu Karna, do rei persa Ciro, dos heróis gregos Édipo, Hércules, Páris e Perseu, entre muitos outros , Rank constatou inúmeras semelhanças, uma vez que essas narrativas constituem variações em torno da mesma e única fantasia básica o romance familiar. A concepção imaculada de Maria, tida como dogma de fé do cristianismo, tem similares nas narrativas de nascimento de vários heróis e de homens santos. Muitos deles, como Jesus, são filhos de mãe virgem e morrem sem registro de vida sexual nem descendência. Essa fantasia é uma modalidade do romance familiar, em que o pai não mais é substituído por um nobre ou milionário, e sim por uma entidade infinitamente superior: o próprio Deus. O mito de nascimento de mãe virgem é uma elaboração do complexo de Édipo. Diante dos ciúmes do pai e do desejo de posse da mãe, o filho não tolera se ver como produto de uma relação sexual que o exclui, pois ela deixa evidente que o pai é o objeto de amor da mãe. O filho então se imagina fruto de uma mãe virgem. Estudos como esse mostram como as narrativas, muitas vezes consideradas fruto de revelação divina, na verdade não passam de elaborações culturais de antigas fantasias infantis decorrentes dos conflitos de amor e ódio da criança em relação aos pais. Ao abordar a sexualidade de Jesus em O código Da Vinci, Dan Brown acertou em cheio num tema que provoca profundas ressonâncias no imaginário coletivo. Sua narrativa evoca o romance familiar e todas as implicações ligadas às imagens idealizadas de pais assexuados e grandiosos, figuras que povoam o panteão de deuses e heróis, de mitos e religiões. Digamos que a reação afetiva à idéia exposta pelo autor de que Jesus teve relações sexuais e formou uma família seria equivalente àquela que a criança tem ao descobrir, entre fascinada e indignada, que os pais mantêm relações sexuais. Finalmente, outro elemento que prende a atenção no Código Da Vinci é sua estrutura policial, de suspense, que mostra uma visão conspiratória da história. Inadvertidamente, os heróis do enredo fazem descobertas decisivas que modificam de forma radical a maneira como o mundo era apresentado até então pelas "versões oficiais" sustentadas pela cultura e pelo poder organizado. Além disso, as teorias conspiratórias da história, que sempre existiram, tomam fôlego no momento atual em razão de uma descrença generalizada nos sistemas representativos políticos vigentes.
DA FICÇÃO PARA A REALIDADE Dois exemplos ilustram bem essa situação. No Brasil, vive-se um estado de perplexidade e abulia em virtude dos escândalos de corrupção que envolvem os governantes. Diante das irregularidades amplamente divulgadas, os cidadãos são afrontados por discursos políticos quase delirantes que, apesar das evidências expostas na mídia, as negam de maneira veemente. Tudo leva a crer que as decisões são tomadas conspiratoriamente, isto é, em negociações secretas nas quais grupos de interesse fazem acertos sem dar satisfações públicas, o contrário do que deveria acontecer numa democracia. O segundo exemplo vem dos Estados Unidos, o que mostra que o problema não ocorre apenas na periferia do planeta. O presidente George W. Bush foi eleito de forma fraudulenta e tem alimentado guerras com base em falácias comprovadas. Em ambos os casos, às mentiras sistematicamente sustentadas contrapõe-se a realidade mantida em segredo em função de fortes interesses que eventualmente vêm à tona por motivos alheios aos que estão no poder. Assim, já não é tão fácil rotular de paranóico quem imagina que o poder é exercido por pequenos grupos que representam não o povo, mas os grandes conglomerados econômicos, que realizam acordos e alianças secretas, sem nenhuma transparência, muito distantes dos ideais democráticos nos quais teimosamente insistimos em acreditar. Dessa forma, ao veicular uma versão conspiratória da história, O Código Da Vinci expressa também o espírito dos tempos em que estamos imersos.
* Sérgio Telles
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psicanalista e autor de O psicanalista vai ao cinema (Casa do
Psicólogo/EdUFSCar, 2004) e de Visita às casas de Freud e outras viagens
(Casa do Psicólogo, 2006). Fonte: Rev. Mente&Cérebro, ed. n. 167, dez/2006. |