Os enlameados e a
bandeira ética
Eis que surge na cena
política uma figura esdrúxula: o “mafioso
Primeira premissa: sob certo aspecto, o exercício do poder no Brasil se confunde com a gestão de recursos escassos. Segunda: a administração dos recursos cruza a zona cinzenta da moralidade. Terceira: como política é competição, é preciso criar um "espaço de tolerância" para certas faltas, sem o qual é impossível governar. Provocou perplexidade e ira. Do meio acadêmico chegaram mísseis teóricos disparados por intelectuais ligados ao PT. "Não se pode falar em bens escassos distribuídos ao Banco Marka, nem em bens escassos distribuídos a parlamentares em momentos cruciais, nem em bens escassos que sempre comparecem para garantir alguma privatização", arremessou a filósofa Marilena Chaui, petista histórica. "A liberação de recursos é um poderoso instrumento para constranger parlamentares", criticou o historiador Marco Aurélio Garcia, agora assessor do presidente Lula. "O que Gianotti fez foi dar uma argumentação filosófica para justificar o fisiologismo de FH", sintetizou José Genoino, hoje presidente nacional do PT. Na última quinta-feira, na tarde em que o ministro José Dirceu deixava a Casa Civil depois da cascata de acusações do dep. Roberto Jefferson (PTB), Gianotti não se conteve: "Eu me sinto vingado". Não que o filósofo queira ver o governo Lula pegar fogo, ao contrário. Mas porque agora lhe parece que a tese da "zona cinzenta da amoralidade" foi experimentada por aqueles que mais a criticaram. "Eu não estava defendendo Fernando Henrique. É que as coisas acontecem assim, o que eu posso fazer?", indaga com a ironia de quem se define um "tucanóide que pode dar voto a candidato petista, sem problema". Na moral política o desvio ético é inevitável? Que história é essa de zona cinzenta da amoralidade? Existe uma vacina antifisiologismo para curar as mazelas do Parlamento? O problema é "espaço de tolerância" ou "casa de tolerância"? Respostas para essas questões envolvem relações complexas. Ao analisar a mais grave crise do governo, num momento em que o presidente se despede do homem forte de sua equipe e se vê obrigado a fazer uma reforma ministerial relâmpago, José Arthur Gianotti repassa o roteiro que fez da corrupção na política um balcão de negócios digno da Máfia. "Essa não é uma história para anjos falantes", avisa. Como o cinema mostra, mafiosos levam seus pares para o túmulo. Ainda que seja o túmulo da vida pública. Eis a entrevista com José Arthur Gianotti: - "Sem uma dose de amoralidade é impossível governar o Brasil." O senhor acha que a sua tese está comprovada? - Eu me sinto vingado (ri). Foi difícil me fazer entender anos atrás. Não estava saindo em defesa de Fernando Henrique, como se alegou. Estava, como estou agora, fazendo uma análise do jogo político. Que jogo é esse? Política não é jogo de xadrez. No xadrez, as regras são definidas e as peças seguem movimentos estabelecidos. Na política, não. Trata-se de um jogo impreciso, que está sempre construindo suas normas. E há uma zona de indefinição que é essencial ao próprio jogo, porque é nela que germinam as novas regras. - É o que o senhor chamou de "zona cinzenta da moralidade"? - Isso mesmo. A moral tem essa zona cinzenta, mas, no caso da moral política, é na zona cinzenta que se trava a luta entre aliados e adversários. - E onde entra a ética? - A ética mantém com a política uma relação dialética. Devemos ter comportamentos éticos? É o que se espera. Mas eles podem nos pôr em situação de risco, decorrente de ações que serão julgadas boas ou más. Conforme o julgamento dessas ações, instala-se a crise ética e, com ela, vem uma dualidade. Há grupos políticos que, diante da crise, reagem como se dissessem "vamos combater o problema e deixar que as instituições atuem livremente". E mais: "Vamos punir e tocar adiante". Mas há grupos que fazem da ética a sua bandeira, daí a coisa complica. Apresentam-se como portadores de um saber capaz de solucionar qualquer problema do país. Os autoproclamados éticos não podem ser flagrados num ato de imoralidade. Porque negarão sua bandeira. - Seria o caso do PT? - É o caso do partido que faz da ética a sua bandeira e, numa situação crítica, não se sente capaz de purgar seus membros. Cria-se uma situação curiosa: existe a corrupção, mas o partido não a reconhece. Política implica trocas de favores, dinheiro, cargos, influências. Resvalar para a imoralidade é fácil. Agora, quando o partido carrega a bandeira da ética, ele imagina que jamais fará trocas ruins por julgar saber como se separa o legítimo do ilegítimo, sempre. Mas é possível que um conjunto de seus membros não se comporte de maneira ética, até porque seria pretensão acreditar que todas as pessoas funcionem do mesmo jeito. O que faz, então? O partido ético nega a existência da imoralidade. E se desmoraliza. É assim no poder? Uma vez no poder, ele pode até tapar o nariz e assumir que é impossível escapar da política rasteira, porque ela faz parte do sistema. Então ele aceita se emporcalhar por um certo tempo, imaginando que mais tarde se vá restaurar a boa política. O raciocínio é este: eu me enfio na lama, depois me lavo e está tudo bem, porque sou intrinsecamente puro. Nasce a estranha figura do "corrupto por tempo determinado". O problema é que, entre éticos e puros, a corrupção se organiza como máfia. - Como assim? - Máfia política é a corrupção que se espalha não por um, mas por vários partidos, ainda que tentando resolver um problema real - o financiamento de campanhas. Outra característica: qualquer membro que tente pular fora do esquema, seja não honrando acordo, seja retirando palavra dada, seja tendo pruridos ou recaídas morais, correrá perigo. Poderá ser calado, destruído, morto. A essa altura o sistema já está sendo operado pela ética da máfia. Quando o grupo diz "vamos pegar um dos nossos e jogar as denúncias no colo dele", é evidente que o escolhido sairá metralhando. E vêm a delação, o fogo político, a crise. Mafioso é o sujeito que leva os outros para o túmulo. - Por que o senhor fala em termos abstratos? - Não é preciso dar nomes aos bois para dizer que estamos vivendo um momento grave. - Vamos sair dos modelos abstratos. O que o senhor achou da performance de Roberto Jefferson no Conselho de Ética da Câmara? - Mafioso que não está disposto a morrer pela organização tende a abrir a boca. Mas há regras para isso. O deputado fez as denúncias que quis, sem revelar os mandantes. Como conseguiu? Assumindo, de várias maneiras, que é também corrupto. "Eu peguei os R$ 4 milhões em malas", tal e tal. "Mas não como presidente do partido, peguei como cidadão." Jefferson disse isso várias vezes. Portanto ele trouxe uma prova arrasadora, que é a sua confissão. - O deputado continua atacando o governo. Aonde isso pode levar? - Não sei. Hoje o grau de incerteza da política brasileira é imenso. A coisa mais importante é preservar a Presidência da República. Não podemos entrar numa situação de impeachment e desestabilizar o país. Há condições para preservar o presidente? Até agora, sim. Insistir que ele não sabia de nada é também perigoso. Tanto assim que Márcio Thomaz Bastos foi logo dizendo que, ao tomar conhecimento de certos fatos, Lula mandou apurar. O ministro da Justiça conhece os ingredientes que fazem o crime da prevaricação. O governo, como qualquer outro, tentará conter os estragos provocados por essa CPI, mas os indícios são fortes e não dá para controlar tudo. Existem forças com dinâmica própria, como o Ministério Público, a imprensa, a opinião pública, e novos fatos criam situações imprevisíveis. - O ministro Dirceu deixou a pasta 48 horas após as denúncias. O governo fez um bom tempo? - Numa crise como a atual, não bastaria o presidente dizer "não ficará pedra sobre pedra". Teria sido melhor que ele dissesse, logo na primeira hora, que os que estão sob acusação devem esperar fora do governo o curso das investigações. Mas o presidente demorou. Aprendeu a fazer política num ambiente de negociação, de consulta, um ambiente sindical. A exclusão é prática difícil para ele, tanto que o desligamento do ministro mais parecia uma ação entre amigos. - O senhor diria que o PT, que perseguiu um projeto de poder por duas décadas, não previu a situação em que o presidente Lula teria de tomar distância do partido para decidir como chefe de Estado? - Essa idéia deve ter passado pela cabeça de pessoas, mas não foi incorporada pelo partido. Fernando Henrique também fez um governo de conciliação, com uma diferença. Ele desenhou uma espécie de círculo de giz no chão e disse ao partido: "Não passe para dentro, que eu reajo". Fernando Henrique tinha um tempo de agir diferente do tempo da política. Mas, dentro do círculo, ele decidia só. Tanto que demitiu amigo íntimo, criando situações pessoais difíceis. Sabe de uma coisa? Político não pode ter amigos. - Os governos FHC e Lula são mesmo parecidos? - O que se viu foi a preservação da política econômica. Não só preservação, mas a repetição. Acontece que as políticas envelhecem, e talvez hoje aquilo que Fernando Henrique fez seis anos atrás não faça sentido, pode até ser um disparate. Se for, continuamos o disparate- juros altos, controle da inflação, superávit, e assim por diante. Não há uma ação consistente de mudança, compatível com a esteira do tempo. Como governo do PT conserva uma espécie de crença na sua virgindade original, sempre acredita que está fazendo o certo pela primeira vez. Comporta-se como se estivesse experimentando a primeira aventura amorosa. E paralisa o país. Numa democracia representativa, há que ter uma burocracia mais permanente, capaz de dar continuidade aos programas para que eles não precisem ser mudados a cada troca de governo, nem ser necessariamente refundados a cada conjuntura. O PT chegou ao poder querendo reinventar o Brasil das caravelas! - São muitas as denúncias de desvio de dinheiro para os partidos, com o intuito de financiar campanhas. Cria-se uma situação de culpa atenuada: não estou pegando para mim, mas para o partido. O Brasil é assim? - Isso é um problema. Mesmo o dinheiro que sai do governo para aquela escolinha lá do fim do mundo, mesmo este não chega na sua totalidade. É ilegal, mas infelizmente se vive desse tipo de apropriação no Brasil. Agora passemos para a política. E mais, passemos para uma situação em que os "puros" acreditam que podem se associar aos "não-puros", e todos viverem harmoniosamente como "mafiosos honestos". É uma situação sobre a qual não se tem controle. Os tribunais mostram que orçamentos públicos não estão sendo gastos, o que para mim é incompetência, mas, enfim, não estão sendo aplicados em projetos para o país. E há a fabulosa transferência das estatais para os fundos partidários, um dos temas de Jefferson. Fiquei impressionado: não sabia que elas poderiam render tanto aos partidos. Daí o tráfico de influência. - A corrupção ganhou capilaridade? - Não só capilaridade como novas formas. Toda cidade tem ratos. Mas os sanitaristas dizem que, quando os ratos começam a ser vistos, é porque aumentaram em número de tal maneira que há perigo para a saúde pública. Corrupção em governo existe desde a Grécia. Corrupção na Igreja, desde São Pedro. Ou seja, o problema não é novo. Mas o tamanho da corrupção altera suas formas. O que estamos vendo hoje é que ela chegou junto do coração do sistema. E sabe por quê? Porque o sistema foi ético, por absurdo que possa parecer. Os mafiosos encontraram a porta aberta, invadiram a casa dos puros e ainda se cobriram com o manto da ética. - Há uma fórmula para acabar com a corrupção entre partidos? - Não. Sempre será possível a corrupção se infiltrar no sistema. Até na Alemanha, que desenvolveu um modelo de financiamento de campanha organizado, controlado, tido como exemplar e exportado para outros países, de repente se pegou o Helmut Kohl com a boca na botija. O caminho seria ter instituições capazes de agir com rapidez. Apareceu a "coisa", puxa logo o tapete para ver o que está por baixo. Como se faz? Com autonomia para o Ministério Público. Com liberdade para a imprensa e, ao mesmo tempo, cobrando responsabilidade da imprensa. Enfim, com um sistema de vigilância mais efetivo. O MP já cometeu exageros, mas hoje vem aperfeiçoando sua atuação. A instituição não é só um estatuto, ela é também a sua prática. - Há um discurso, inclusive nos meios de comunicação, de que é possível resolver a corrupção de um golpe só, dando um "basta", passando o país a limpo... - E não é assim! Esse discurso vende a idéia de que lugar de criminoso é na cadeia, e tudo resolvido. Mas o sistema penitenciário brasileiro é uma excrescência, uma escola do crime. As instituições guardiãs das normas são altamente precárias no Brasil, o que é péssimo, pois a corrupção não se resolve de um golpe, mas sistemicamente. - Se nós tomarmos alguns fatos - a eleição para a presidência da Câmara dos Vereadores de SP, a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, a CPI dos Correios e a denúncia do mensalão –, o que se vê são políticos ávidos por cargos, verbas, benesses. O senhor acha que a vida parlamentar brasileira tem salvação? - Na democracia representativa, o político é duplo. Ele é o representante do povo e um profissional que precisa se manter. Existe um jogo entre o interesse público e o privado. A fronteira desses campos depende do quê? Das instituições e da relação entre os poderes. O Executivo não pode desinstitucionalizar o Legislativo, sob o risco de abalar o sistema de poderes. Quando isso ocorre, passam a predominar interesses individuais. É o que estamos vendo: o Congresso vai se tornando o lugar onde o deputado trata dos próprios interesses. Por quê? Porque não existe coerção. - O senhor diz "coerção"? - Coerção, sim. Significa que a imprensa, a opinião pública, o Executivo, enfim, as instituições têm de dizer ao parlamentar que ele não pode ultrapassar aquele limite. Quando um parlamentar aborda o Executivo em busca de favorecimento, o próprio poder tem instrumentos institucionais para dizer o seguinte: "O senhor volte para o seu lugar porque isso não é possível". Ministro não precisa decidir como se fosse o dono da bola. O que temos visto são ministros donos da bola. - O governo conta com 25 mil cargos de confiança. Isso é perigoso? - Isso é um escândalo. O PT conseguiu inchar a máquina e diminuir a força do Estado. Ah, dirão muitos, mas houve privatizações e o Estado precisa empregar. Concordo, mas o Estado precisa empregar pessoas competentes, capacitadas a formar uma burocracia permanente, seguindo uma agenda de melhoria dos serviços públicos. Os 25 mil cargos são um terreno propício à corrupção. Veja o exemplo da Itália. O país enfrentou inúmeras crises de governo, mas o capitalismo italiano vai bem. Porque a crise política ficou pelo andar de cima e, embaixo, o país seguiu funcionando. Aqui, não. Se o presidente Lula não for reeleito, seu sucessor que trate de pensar um plano estratégico de reforma da burocracia de governo. Até quando esse Estado vai poder se pagar? - Lula não se reelegerá? - Muito cedo para fazer previsões, mas é um cenário possível. Podemos ter outros. Por exemplo, nos próximos dias o presidente bate o punho na mesa, faz uma nova coalizão e põe o governo em movimento. E então? O jeito é ficar grudado na TV Câmara e na TV Senado, observando a política ao vivo. Na semana passada tínhamos uma situação. Hoje temos outra completamente diferente. - Essa crise desintegrará o PT? - Não sei. Nos próximos dias deve haver uma avaliação interna, e o PT, sob esse aspecto, oferece a liberdade da discussão interna, além de saber lidar com uma simbologia. Não creio em mudança estrutural do partido. - Qual é a sua avaliação do PSDB na oposição? - Fez bem ao PSDB. No governo, o partido ficou mole. O que deu sustentação a Fernando Henrique foi a aliança com o PFL. O que significa "partido mole"? - Ele era hesitante, era o partido do muro. Isso difere da crítica dirigida hoje ao PT, ou seja, a de que faz acordo e não cumpre. O líder Luiz Eduardo Magalhães, que era do PFL, podia ter defeitos, mas, dele, palavra empenhada era palavra dada. O PSDB de agora pode ter ganho uma definição ideológica mais nítida, mas ainda não sei se funciona melhor como máquina. - Há quem postule o diálogo PT-PSDB. Isso já foi possível? - Logo depois da eleição de Lula, eu disse que, com os dois partidos vindo para o centro, poderia haver um entendimento. Nunca imaginei que houvesse entendimento sem disputa. Mas aconteceu algo inesperado: a luta se acirrou. Hoje eles protagonizam a briga entre vizinhos, sempre uma briga e tanto. Aproximar como, em função de quê? O PSDB não pode participar do governo porque não quer enfiar azeitona na torta do Lula. E não vai querer abdicar da possibilidade de voltar a ser o pasteleiro. O que fazer? Uma agenda comum em torno de certos temas e certas votações, mas o PT fica no governo e o PSDB, na oposição. Porém, se pipocarem CPIs, isso deixa de ter importância. Daí não adiantará o governo entrar numa histeria produtiva, soltando MPs do Bem a torto e a direito, porque não haverá Congresso para efetivá-las. - O presidente falou num "gabinete da crise". Resolve? - Melhor que "gabinete da crise" é varrer a sujeira para fora da casa rapidamente. Parece que o presidente busca um gabinete mais amplo, que lhe dê sustentação e uma visão mais equilibrada das forças políticas. Mas isso não controlará a crise. Nem uma reforma política de urgência. É possível que votem um ou dois pontos do projeto de reforma que está no Congresso, como a fidelidade partidária. E só. O que mais me preocupa é a inexistência de um projeto para o Brasil. Não temos sequer uma agenda com dez pontos sobre o que se pode fazer concretamente neste país nos próximos anos. Se fôssemos mais modestos em política certamente seríamos mais eficazes.
Fonte: O Estado de S. Paulo, Laura Greenhalgh, 19/06/2005. |