Entrevista: David
Livingstone Smith
Engana que eu gosto!
O
filósofo afirma que políticos mentem mais do que a média e que nosso cérebro
está programado para aceitar falsidades
"A mentira traz vantagens indiscutíveis. Bons mentirosos são
mais populares e bem-sucedidos. Têm mais status social e
melhores salários" |
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"Políticos
são mentirosos profissionais. Mentem habilmente e têm
consciência disso. Não estão preocupados em cumprir promessas.
Mentem para se dar bem. Quando acreditam na própria mentira, seu
poder de persuasão se torna infinitamente maior" |
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"Quando
dizem com convicção que vão melhorar a sua vida, como não querer
acreditar nisso? Podemos até desconfiar em um primeiro momento,
mas, como é um alento, acabamos nos convencendo. A sensação de
prazer trazida por acreditar em algo é inebriante"
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O
americano David Livingstone Smith acostumou-se a polêmicas ao defender suas
idéias. Afinal, propalar que o ser humano é mentiroso por natureza e que a
mentira é útil à sociedade vai contra o senso comum. Aos 53 anos, diretor do
Instituto de Ciência Cognitiva e Psicologia Evolutiva da Universidade de New
England, nos Estados Unidos, ele defende que o mundo seria um caos se todos
decidissem falar a verdade. Em seu livro Por que Mentimos – Os Fundamentos
Biológicos e Psicológicos da Mentira (Editora Campus/Elsevier), lançado no
fim de 2005 no Brasil, Smith afirma que somos programados para enganar desde
os primórdios da humanidade. Seja para nos proteger, seja para levar
vantagem. Quem mente com desenvoltura, diz ele, pode até sobressair entre os
demais. O exemplo clássico é o dos políticos, que mentem por profissão e
continuam tendo o ouvido de milhares de pessoas. O motivo? A dissimulação é
parte da vida em sociedade e são raras as pessoas com o dom de distinguir um
comportamento normal da mentira patológica.
Veja – Por que
mentimos?
Smith – A mentira está por toda parte. Ela é normal. Todos mentimos e quem
diz o contrário mente. Temos dificuldade em nos reconhecer como mentirosos
porque há um julgamento moral contrário. Mentimos para obter vantagens e
para nos proteger de algo, o que significa que estamos, de certa forma,
passando a perna em alguém. Quem mente bem costuma se dar melhor do que quem
não consegue fazê-lo.
Veja – Por quê?
Smith – Porque a mentira traz vantagens indiscutíveis. Bons mentirosos são
mais populares e bem-sucedidos. Alguns conseguem enganar por muito tempo e
atingem status social mais alto e até melhores salários. A mentira está em
toda a natureza. Vírus enganam o sistema imunológico de seus hospedeiros,
plantas dissimulam para se livrar de predadores, animais blefam para
conseguir comida. Não é só uma questão de sobrevivência. É levar vantagem. E
ser melhor do que os concorrentes. E assim é a vida humana também.
Veja – Então mentir é
razoável?
Smith – A mentira é o pilar das relações sociais. Há pais que dizem: "Ensino
meu filho a não mentir". Isso é falso. Somos nós que os ensinamos a não
dizer a verdade. Ensinamos que é errado dizer à vovó que os seios dela são
caídos. Ensinamos as crianças a agradecer pelo presente de Natal mesmo
quando elas o odeiam. Isso pode ser chamado de "tato", "boas maneiras", mas
são mentiras. A mentira não é boa ou ruim, ela é necessária. Imagine o mundo
em que todos fossem verdadeiros uns com os outros. Seria o caos.
Veja – Quem mente bem
é mais inteligente?
Smith – Eles são socialmente mais inteligentes. Conseguem perceber o que a
outra pessoa quer ouvir, o que é pertinente contar naquela hora, têm
sensibilidade para notar a vulnerabilidade alheia. São melhores
manipuladores. Mas é preciso dizer que mentimos melhor quando não sabemos
que estamos mentindo. Ou seja, quando enganamos a nós mesmos. A melhor
mentira é contada por aquele que acredita no que está dizendo.
Veja – É o caso dos
políticos?
Smith – Políticos são mentirosos profissionais. Eles mentem habilmente e, na
maioria das vezes, têm consciência disso. O que eles fazem é captar com
precisão os anseios do eleitorado. Eles não estão preocupados se vão
conseguir fazer o que prometem ou não. O político mente para se dar bem.
Quando ele acredita na própria mentira, seu poder de persuasão se torna
infinitamente maior. Hitler foi um exemplo disso. Era um enganador
brilhante. E claramente acreditava no que dizia.
Veja – Quando os
políticos são apanhados em uma mentira, eles se safam mais facilmente do que
as outras pessoas. Por quê?
Smith – É uma questão de sobrevivência. Um político mentiroso quando é
obrigado a ir à televisão para se desculpar por suas lorotas está perdido.
Ele não ganha nada com isso. Não há nada de moralmente superior no fato de
confessar uma mentira, até porque, quando os políticos o fazem, é de modo
muito calculado. Mentir convincentemente e ser pego é coisa rara para um
político. Como profissionais no assunto, eles se tornaram experts em
respostas evasivas e desculpas esfarrapadas para encobrir inverdades.
Veja – Por que
acreditamos nas mentiras dos políticos mesmo sabendo que eles são treinados
para nos enganar?
Smith – Porque é mais fácil e seguro para nós mesmos nos convencermos delas.
Quando alguém diz com convicção que vai melhorar a sua vida, como não querer
acreditar nisso? Podemos até desconfiar em um primeiro momento, mas, como é
um alento crer nessa hipótese, acabamos nos convencendo. A sensação de
prazer trazida por acreditar em algo é inebriante. É um grande prazer para
os americanos acreditar que são superiores ao resto do mundo. Se pensassem
nisso por cinco minutos, saberiam que não é verdade. Mas não o fazem porque
isso lhes traz muita satisfação. É impressionante como nossas escolhas sobre
aquilo em que acreditamos são baseadas no que nos faz sentir bem,
importantes, esperançosos. É com isso que os políticos jogam.
Veja – Qual a
diferença entre uma mentira contada por um político e a contada por uma
pessoa comum?
Smith – A contada por políticos tem conseqüências mais graves, mas, na
média, não há muita diferença. Passamos a vida fabulando coisas, uma boba
aqui, outra mais inocente ali, e as grandes também. É preciso ter em mente
que não se trata de maniqueísmo. Da mesma maneira que os políticos mentem,
nós também nos enganamos porque queremos acreditar em suas mentiras.
Veja – Como isso se
processa na mente humana?
Smith – O princípio de tudo é o auto-engano. Como sabemos que mentimos para
nós mesmos, inconscientemente criamos um mecanismo de defesa que nos impede
de nos aprofundar muito naquele assunto. Se o fizermos, nós mesmos ficaremos
expostos como mentirosos. É nesse sentido que somos programados para aceitar
mentiras. Quando o presidente George W. Bush afirmou que existiam armas de
destruição em massa no Iraque, ele talvez tenha mesmo se convencido disso. A
realidade é que os métodos para entender como a mente processa a mentira
ainda são muito falhos.
Veja – O ex-presidente
Bill Clinton mentiu sobre o caso com a estagiária Monica Lewinsky, sobre
fumar maconha e não tragar, sobre casos de sua infância. Ainda assim, é um
dos maiores líderes mundiais. Por que esses fatos não parecem manchar sua
biografia?
Smith – O exemplo de Clinton não serve para o resto do mundo. Para os
americanos, a moralidade se resume a sexo e Deus. Quando alguém se mete em
algo assim, os americanos conseguem perdoar. O conceito de mentira é muito
flexível para os políticos. Ao se defender, Clinton inventou um padrão
técnico para encobrir uma mentira. Ele resolveu dar uma definição muito
pessoal sobre o que efetivamente era fazer sexo. O fato é que, na maior
parte das vezes, no fundo, sabemos que os políticos mentem. No fundo também
é isso que esperamos deles.
Veja – Como saber que
um político está mentindo?
Smith – Isso é muito difícil. Pesquisas mostram que apenas um em 1 000
indivíduos consegue detectar sinais de mentira em outra pessoa. No caso dos
políticos, profissionais treinados só conseguem identificar mentiras em 10%
dos casos. Políticos são brilhantes em nos distrair com o que dizem. Aqueles
que não conseguem mentir bem nunca chegam lá. É uma tragédia pensar que a
política é uma das atividades mais vitais nas sociedades em todo o mundo
pois é uma das mais irracionais e desonestas que existem.
Veja – Detectar uma
mentira depende de quê? Sensibilidade? Inteligência?
Smith – As pessoas que prestam atenção à linguagem corporal, ao tom de voz,
são melhores do que as que escutam as palavras. É simples assim. Algumas
poucas pessoas fazem isso naturalmente, a maior parte não consegue. Podemos
até achar algo estranho, mas somos enganados pelas palavras. De fato,
deveríamos prestar mais atenção ao nosso próprio instinto. Existem métodos
empíricos, como os do pesquisador Paul Ekman, da Universidade da Califórnia,
há trinta anos no ramo. Ele analisa os movimentos dos olhos, a respiração e
os sinais verbais. No entanto, quando estamos envolvidos emocionalmente,
perdemos a objetividade para perceber tudo isso. Na política estamos quase
sempre envolvidos emocionalmente.
Veja – Não existe
política sem mentiras?
Smith – Infelizmente, não. A democracia é algo maravilhoso, mas funciona por
um processo de venda e manipulação. Nesse processo, a mentira é intrínseca.
A única proteção que temos contra isso é sermos céticos, críticos e podermos
contar com uma imprensa justa, livre e que defenda os cidadãos.
Veja – Quando alguém
diz que "não sabe de nada" sobre um fato em que todas as evidências provam o
contrário, isso é mentir?
Smith – Qualquer coisa feita para iludir é uma mentira. Omitir-se ou
inventar um padrão técnico para se explicar sobre algo é mentira, sim. As
pessoas usam essas coisas apenas para escapar e, efetivamente, escapam.
Veja – Existem meia
mentira e meia verdade?
Smith – Algumas vezes mentimos dizendo a verdade. Digamos que eu não queira
que você saiba algo sobre mim. Posso relatar esse dado de uma maneira tão
exagerada que você o desconsideraria. Não menti, mas você não acreditou. Ou
seja: manipulei. Existem graus de distorção no que dizemos uns aos outros,
mas acho que o que caracteriza a mentira é fazê-lo com o objetivo de
vantagem.
Veja – Existem
mentiras aceitáveis?
Smith – Claro. Falar com alguém de quem você não gosta, omitir seu real
estado de espírito, dizer que a pessoa está magra, quando na verdade ela
está gorda, tudo isso são mentirinhas do dia-a-dia que fazem parte dos
padrões sociais de convívio. A mentira ocorre naturalmente a todos nós, e
muitas vezes não sabemos que estamos mentindo.
Veja – Com que
freqüência as pessoas mentem?
Smith – Há uma pesquisa relevante feita pelo psicólogo Robert Feldman, da
Universidade de Massachusetts, mostrando que as pessoas contam três mentiras
a cada dez minutos de conversa. É interessante, mas é uma definição estreita
da mentira. Não se mente só com palavras. Um político, querendo esconder
alguma coisa ou estando inseguro do que diz, pode chegar a um palanque ou a
um debate na TV e falar de maneira pomposa, mostrar-se indignado, aparentar
confiança. Ele vai convencer muita gente. Precisamos observar o
comportamento desonesto de forma muito mais abrangente. E, quando o
fizermos, descobriremos que o ato de mentir é muito mais amplo do que se
imagina.
Veja – Onde se mente
mais: na política ou nos casamentos?
Smith – Eu diria que é na política. O fato é que, quanto mais interesses
comuns as pessoas tiverem, menos terão de mentir umas para as outras. Se
estivermos do mesmo lado, ainda assim mentiremos um para o outro, mas menos
do que alguém que queira me vender um carro usado danificado. A política é
um sujeito tentando se vender a você. Então, a mentira é central.
Veja – Quando mentimos
mais?
Smith – Em geral, quando queremos algo de outra pessoa e esta não quer nos
dar. Nas conquistas amorosas, ocorre sempre. Queremos parecer mais atraentes
sexualmente ou mais inteligentes do que somos. Nas relações de trabalho,
mentimos sobre nossas habilidades e competências. É crucial saber que isso
ocorre involuntariamente. É como respirar.
Veja – Quem mente
mais, o homem ou a mulher?
Smith – Os homens tendem a dizer que as mulheres mentem mais, e vice-versa,
mas não acho que exista alguma evidência disso. Acredito que mentem
igualmente. Tudo depende do que se quer obter.
Veja – Nascemos
mentirosos?
Smith – Contar mentiras é uma tendência tão internalizada no ser humano como
a capacidade de falar e caminhar. Não temos a escolha de não mentir. Quem
não mente, no sentido estrito da palavra, são os autistas. Para que possamos
mentir, precisamos perceber como as pessoas nos vêem. Para quem não entende
isso, como os autistas, a idéia de esconder a verdade não faz sentido. Não é
por uma superioridade moral, mas por uma deficiência neurológica que os
torna inábeis para perceber essa sutileza. Então, com exceção dos autistas,
somos todos mentirosos por natureza.
Veja – O senhor mente
muito?
Smith – Sou péssimo mentiroso.
Veja – Mentiu nesta
entrevista?
Smith – Fiquei aqui, ao telefone, tentando dar a você a impressão de ser
melhor do que sou realmente. É uma mentira, não é?
Fonte: Rev. Veja, Daniela Pinheiro, ed. 1978,
18/10/2006. |