Variações em torno do nojo
Roberto Aguiar*

 

A palavra nojo, no senso comum, significa repulsão, asco a tudo que agride o mínimo do senso estético, ético, costumeiro ou visceral. Mas ela também tem dimensões mais profundas como luto, desgosto, tristeza, pesar, tédio ou repugnância. Podemos dizer que a cidadania está com nojo dos problemas que vivemos.

A cada momento, as pessoas com que convivo perguntam-me sobre o estranho sentimento que avassala grande parte dos brasileiros perante um suceder de acontecimentos inesperados. Uns dizem que é perplexidade, outros apontam o de indignação, além de indicarem o da perda dos sonhos, o desânimo ou a impossibilidade de visualização de futuro dada a reiteração de condutas desagregadoras no interior da incipiente democracia brasileira. É evidente que esse âmbito de perguntas não tem resposta para certos cientistas políticos e sociais, ainda presos a um ranço positivista, ou a um objetivismo redutor dos problemas. Para eles, esse é um problema para terapeutas, para analistas freudianos ou psicólogos analíticos junguianos, pois a questão chafurda numa profundidade subjetiva não mensurável, impossível de se submeter à quantificação e à mensuração.

A perplexidade está ligada irresolução, à paralisia e à surpresa, mas ela é e uma palavra que traduz um sentimento imediato, superficial e conjuntural, que não atinge o âmago da interioridade, que pode ser ferido com muito maior dor e intensidade. A indignação indica aversão e repulsão, mas, se de um lado, é um sentimento negativo pelo repulsivo, também é um sentimento positivo que enseja reações de enfrentamento. A perda dos sonhos é um sentimento derivado de situações anteriores, de experiências negativas que contestam a capacidade de visualizar o futuro. A perda dos sonhos não existe por si mesma, ela é o fruto cumulativo de problemas anteriores. Logo, a perda de sonhos é parenta do desânimo e da incapacidade de se construir o futuro, que passa a ser um panorama difuso, acontecendo sem nossa interferência, em virtude de nossa incapacidade de participar no seu desenho. Assim, todos esses sentimentos conceituam facetas do problema, mas não se configuram como um disposição originária do mal estar da cidadania brasileira.

Aproximando-nos desse sentimento e antes de procurar uma palavra que o configure, podemos dizer que a cidadania brasileira está desgostosa, sofrida e de luto pelas sucessivas mentiras, farsas e agressões que observa ou sofre em sua carne e espírito. Em suma ela está de luto por todo esforço e dedicação que determinaram suas escolhas e pela frustração quanto à conduta de seus representantes escolhidos e pelos princípios e projetos não realizados e negados pela política oficial do Brasil. Quem vive esse sentimento pode ser chamado de nojoso, estado que une o desgosto com o luto, mais ainda, com estar vestido de luto. Em termos mais diretos, estar com nojo.

A palavra nojo, no senso comum, significa repulsão, asco a tudo que agride o mínimo do senso estético, ético, costumeiro ou visceral. Mas ela passa por dimensões mais profundas como luto, desgosto, tristeza, pesar, aborrecimento, tédio ou repugnância. Podemos dizer que a cidadania está com nojo dos problemas que hoje vivemos, que ensejam o luto, a quebra de esperanças, o descrédito, pela ausência de um futuro para o país, para as gerações vindouras e pela impossibilidade de se encontrar representantes legítimos de suas aspirações.

Esse sentimento provoca no cidadão uma conduta desgostosa que o paralisa, retira horizontes e transforma sua vida em tédio, em virtude de sua exclusão dos processos de transformação fundamentais na sociedade. É um ser aborrecido, entediado, com repugnância pela política e pouco afeito a novas lutas, ferido que está pelas traições e decepções. Sintetizando: é um ser com nojo, a melhor conceituação de seus sentimentos subjetivos.

A reiteração dos espetáculos de pretensos julgamentos, as manobras por cima e por baixo do pano, a busca de análises sobre fatos secundários, o esconder das reais razões dos fatos, acontecimentos e das fontes efetivas de corrupção e a possibilidade concreta das ações efetuadas permanecerem impunes, ainda mais, acirram esse sentimento e a desesperança em relação a seres humanos e ideários que pareciam estar comprometidos com determinados horizontes, mas que, ao primeiro contato com o poder efetivo, desenvolveram sua trajetória lastreada em seus próprios umbigos, ao arrepio da ética e da cosmovisão que pretendiam defender. Além disso, para ainda mais aumentar o nojo, representantes de uma biografia libertadora, jogaram-na no lixo e ratificaram um comportamento adversarial e disputante, mais adequado para facções criminosas do que para grupos humanos que desejavam uma prática política libertadora. Essas pessoas, com essa conduta, passam a ser conservadoras e repetidoras do que existe de pior em nossa historia. Sua grande bandeira de êxito é justamente uma política econômica que combateram durante tanto tempo. Tornam-se amedrontados, dúbios, a contrapé de tudo pelo qual lutaram ou disseram que lutaram.

Mas sua grande culpa e a de perseguir o fim do futuro das crianças, dos sonhos dos jovens, da mínima segurança dos idosos, do ímpeto dos criadores, da solidariedade dos cidadãos e da busca de novas alternativas pelos grupos sociais. Todos estão sob o efeito direto ou indireto do nojo, a grande obra dos que traíram sua trajetória.

É contra esse sentimento que a cidadania deve acumular suas forças, transmudando suas antigas crenças e conceitos, mas acreditando em sua própria capacidade de organização local e universal, com e para além de um estado em crise e de uma política dominadora que nada mais faz do que repetir a afirmação do personagem de Lampedusa: é preciso que as coisas se transformem para permanecerem como estão.
 

* Roberto Aguiar, ex-secretário de segurança pública do Distrito Federal e do Rio de Janeiro, é advogado e professor titular da Universidade de Brasília (UnB).

Fonte: Ag. Carta Maior, 19/10/2005


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