Só a educação salva? Especialistas explicam como a educação reduz índices de violência A sociedade brasileira mudou de cara nas últimas décadas. Caiu a ditadura, a população foi às urnas, instituiu-se um regime democrático Isso tudo veio acompanhado de problemas que já existiam, mas que ficaram exacerbados: o crescimento das desigualdades sociais, de uma abissal divisão de renda, do fortalecimento do crime organizado. O resultado é que a violência aumentou e as estatísticas crescentes de furtos, homicídios, seqüestros e outros crimes estão aí para comprovar. Fica a questão: a educação pode ser remédio contra a escalada da violência e da criminalidade? A resposta dos especialistas entrevistados pelo Universia é clara. Sim, é possível, desde que haja uma transformação na linha pedagógica e no processo de ensino, e que a própria educação seja utilizada não apenas como uma forma unilateral de se transmitir conhecimento, mas de formar cidadãos. Este é o tema do especial Universia desta semana.
Especialistas apontam importância da educação no combate à violência Uma análise sócio-econômica do País nas últimas três décadas deixa evidente que a sociedade brasileira mudou de cara. Caiu a ditadura, a população foi às urnas, instituiu-se um regime democrático, cresceu a participação das mulheres no mercado de trabalho, de jovens nas universidades, a presença do Brasil no cenário internacional tornou-se mais concreta. Isso tudo veio acompanhado de problemas que já existiam, mas que ficaram exacerbados: o crescimento das desigualdades sociais, de uma abissal divisão de renda, do fortalecimento do crime organizado, da criação de uma legião de excluídos sociais nas principais cidades brasileiras. O resultado é que a violência aumentou em nossa sociedade e as estatísticas crescentes de furtos, homicídios, sequestros e outros crimes mais ou menos hediondos, envolvendo indivíduos de todas as classes sociais, estão aí para comprovar. Fica a questão: a educação pode ser remédio contra a escalada da violência e da criminalidade? A resposta dos especialistas entrevistados pelo Universia é clara. Sim, é possível, desde que haja uma transformação na linha pedagógica e no próprio processo de ensino, e que a própria educação seja utilizada não apenas como uma forma unilateral de se transmitir conhecimento, mas de formar cidadãos. Conforme os entrevistados, dar às crianças e jovens acesso contínuo à educação é um dos fatores que diminuem as estatísticas de criminalidade e reduzem a incidência (ou reincidência) de casos de violência de qualquer espécie. Mas frisam também que ela, sozinha, não pode resolver todos os problemas. "A educação é fundamental na melhora da qualidade de vida de um indivíduo, mas não pode ser considerada um elemento redentor. Existe uma percepção errada em nossa sociedade de que, quando todo o resto falha, a escola tem de resolver. A maioria dos casos de violência dentro das escolas reflete apenas um problema trazido de fora", opinou o pesquisador do Crisp/UFMG (Centro de Estudos de Criminalidade da Universidade Federal de Minas Gerais), Robson Sávio Reis Souza. Apesar de soar como afirmação óbvia, o pesquisador - que também ministra aulas de políticas públicas de educação na PUC/MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) -, frisa: "várias pesquisas apontam para coincidências entre indivíduos vulneráveis sócio e economicamente e a violência. Existe um senso comum de que pobre é violento, e isso se exacerba sobretudo com quem tem problemas de moradia, saneamento básico e educação", conta. O psicólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência da USP (Universidade de São Paulo), Renato Alves, concorda e vai além: "A violência está disseminada na sociedade, já é cotidiana. A escola é apenas mais um cenário. A educação, para atuar como elemento de correção, precisa estar encaixada dentro de políticas públicas estruturadas, que envolvam o acesso das pessoas à saúde, ao trabalho, à cultura, ao esporte. A educação, sozinha, não dá conta da violência", diz. Com pesquisas de campo em colégios da periferia das zonas Leste e Sul da cidade de São Paulo, com destaque para o Jardim Ângela, o pesquisador da USP revelou que, em conversas com gestores, docentes e alunos, duas constatações sempre eram tiradas: ou a escola era violenta demais ou não existia nenhum indício de violência no local, apenas eventos esporádicos. À conclusão de Alves segue uma terceira via: a escola nada mais é do que o reflexo da própria comunidade onde está instalada. Na companhia de dois colegas do Núcleo - criado em 1987 pela instituição de ensino -, ele se prepara para lançar, no próximo dia 8 de maio, o livro "Violência na Escola". "Elaboramos a obra pensando justamente em estratégias de como a educação pode conter a violência", explicou Alves. Ficamos, assim, diante de um paradoxo: se a escola é um reflexo de uma sociedade violenta e, sozinha, não tem muito como contribuir, como justificar a idéia de que a educação pode funcionar como um antídoto para isso? Para Renato Alves, da USP, é simples: "a escola, por si só, é um espaço conflitivo, de troca de experiências e culturas. Mas, também, tem de ser entendido como um espaço de socialização, e seu papel é ensinar às crianças a respeitar essas diferenças, o espaço dos outros, o que passa pela mudança nas linhas pedagógicas adotadas atualmente", conclui. O especialista entende que o erro da maioria das instituições de ensinos é se omitir diante de pequenos conflitos, como brigas no recreio, "naturalizando" essas situações. "Está errado. O papel da escola é, desde cedo, transmitir valores, noções de cidadania e deveres para todos. É o que lá na frente chamamos de exercício da democracia e ninguém entende. E isso passa, inclusive, pela relação professor-aluno, que é muito ruim. Em uma situação em que a qualidade dos professores e alunos não é boa, o ensino é precário e os estudantes não são ouvidos, a realidade de fora da escola se reflete lá dentro", conta. Os reflexos existem. Pesquisa divulgada nesta semana pelo Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) feita com 684 docentes, no fim do ano passado, revela que 87% afirmaram conhecer algum caso de violência dentro de unidades escolares. Cerca de 76% dos entrevistados disseram acreditar que a principal causa dos problemas de violência residem nos conflitos entre os próprios alunos. Outros dados alarmantes referem-se ao fato de 70% dos docentes afirmarem saber sobre casos de tráfico de drogas dentro da escola e outros 74% disserem conhecer professores que já sofreram ameaças de agressão física ou até mesmo de morte. O sociólogo Lúcio Castelo Branco, da UnB (Universidade de Brasília), lembra que a escalada da violência é resultado, também, da própria mudança de estrutura das famílias brasileiras nas últimas décadas. "A família brasileira, hoje, é um problema gravíssimo, já que um quinto delas é chefiada por mulheres. Como fazer com que elas trabalhem, cuidem da casa e eduquem os filhos?", questiona. O professor, assim, reitera a opinião da importância da escola. "Mas tem-se não apenas de se preocupar com a educação, que é a internalização de hábitos, regras e costumes que tornam o sujeito controlado, equilibrado. É preciso oferecer instrução básica às crianças, que viria de uma perspectiva pedagógica mais criativa. Pressupõe-se, com isso, a criação de uma política nacional de superação da impunidade", comenta.
Violência sem classe social Cresce participação de universitários ligados à violência e ao crime É chavão dizer que a violência no Brasil nasce junto com as crianças que crescem em periferias, com condições precárias de moradia, saneamento básico, saúde, na maioria das vezes sem ter o que comer. Mas o que leva à vida no crime cidadãos que tiveram melhores condições de vida, como a universitária gaúcha Rosinara Schutz da Silva, presa em abril por negociar falsos financiamentos do governo para pesquisa, em um golpe avaliado em R$ 3 milhões? Ou mesmo a estudante da Unicamp (Universidade de Campinas), Ana Paula Jorge Sousa, acusada de formação de quadrilha? Na avaliação do pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), Renato Alves, são situações distintas, mas cujas raízes são muito próximas. No caso do Brasil, um dos grandes fatores de atratividade é a impunidade. "De certa forma está disseminado na sociedade que a contravenção às regras não é crime. Começa de pequeno, com o desrespeito ao professor, ao colega, quando jogamos papel na rua, passamos no farol vermelho. São pequenas coisas que imbutem na cabeça das pessoas que as regras não precisam ser respeitadas. E quando as pequenas convenções não são respeitadas, no final da cadeia vão se juntar às grandes questões de contravenções e criminalidades que discutimos aqui", opina. No caso do envolvimento dos universitários, o especialista entende que existe também uma certa glamourização, disseminada inclusive pela mídia. "A vivência em risco dá adrenalina", filosofa. O caso das drogas - a participação de universitários consumidores e vendedores cada vez maior é sintomático nessa questão. "Se na classe baixa o envolvimento com drogas tornou-se um mecanismo de ascenção, para as mais altas, tornou-se altamente corrosivo ao patrimônio. Mas também vivemos em uma sociedade de consumo onde a busca do enriquecimento pelas vias mais fáceis é difundida e valorizada", conclui. No mais, culpa as próprias estruturas de muitas escolas e universidades, incluindo aí as particulares, consideradas por ele "produtos de mercado". "Muitas dessas instituições são 'conteudistas', não transmitem ética, valores e cidadania. Formam técnicos, profissionais, mas não cidadãos, que acham que sabem mais do que os outros, valem mais do que os outros. E nossa Justiça vai nesse caminho. É seletiva e atua na lógica da casagrande e da senzala", critica. A crítica faz sentido. Algumas estatísticas mostram que os rumos tomados pela juventude levada à criminalidade não estão exclusivamente relacionados a quantos anos ela fica na escola - daí a importância levantada pelos especialistas de tornar a educação algo mais atraente. Alguns exemplos: apesar de ter, conforme o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), a quarta menor taxa de analfabetismo do País (4,8%), o Estado do Rio de Janeiro apresentou, em 2003, o segundo maior índice de homicídios dolosos (com intenção de matar) - 40,5 por cem mil habitantes. São Paulo, com 5,5% de taxa de analfabetismo em 2004, teve taxa de 28,3 homicídios por 100 mil habitantes em 2003 (quarto lugar no País). A segunda menor taxa de analfabetismo do Brasil (6,6%) não impediu a Região Sudeste de ser a primeira no ranking da violência, com 28,8 homicídios por cem mil habitantes. Estatísticas da ONU (Organização das Nações Unidas) e da Unesco, com dados mundiais, reforçam a tese de que mais escolaridade não representa necessariamente menos violência. A ex-república soviética da Geórgia tem, por exemplo, 100% dos seus adultos alfabetizados, mais do que o Brasil, que tem 88,4%, Peru (87,7%) e Egito (55,6%). Entre os quatro, o Brasil encabeça o item "número de homicídios por armas de fogo" (19,54 por cem mil habitantes). Mas a Geórgia apresenta índices maiores (2,97 por 100 mil habitantes) que os de Peru (0,67) e Egito (0,02), menos alfabetizados. O pesquisador do Crisp/UFMG (Centro de Estudos de Criminalidade da Universidade Federal de Minas Gerais), Robson Sávio Reis Souza, defende que a participação de universitários em atividades criminosas, bem como a do envolvimento de políticos, juízes e parlamentares, não é nova, mas começa a aparecer com destaque por pressão da própria sociedade e por uma atuação mais efetiva das autoridades. "Está cada vez mais claro para o brasileiro que a criminalidade não tem mais carimbo de classe. Antes a polícia prendia dentro da favela. Agora está agindo dentro do próprio estado e a sujeira começa a aparecer", diz. Para ele, a segurança pública tornou-se inimigo público número 1 no Brasil e o combate à criminalidade, cada vez mais, se tornará palavra de ordem. "Destaco a atuação da Polícia Federal, que sem alarde e sem disparar nenhuma bala mostra que já que estamos na democracia, a justiça tem de ser igual para todos. O crime organizado, que controla o tráfego, o jogo do bicho, a pirataria, está dentro do estado. Há necessidade de repressão. Ainda são ações periféricas, mas isso vai crescer", finaliza.
Universidades a serviço da cidadania Pesquisas saem do campus e tornam-se políticas públicas de segurança Posteriormente, eventuais soluções para os problemas de violência e criminalidade no Brasil. São os casos da USP (Universidade de São Paulo), que criou o Núcleo de Estudos da Violência, e da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), por meio do Crisp (Centro de Estudos de Criminalidade), dois departamentos de pesquisa especializados nesses temas. Criado em 1987, o Núcleo de Estudos da Violência da USP tem caráter interdisciplinar em suas pesquisas, que giram em torno de uma questão teórica comum: a persistência de graves violações de Direitos Humanos durante o processo de consolidação democrática. O NEV, como é conhecido, desenvolve projetos de pesquisa, cursos de extensão e atividades voltadas à promoção e proteção dos direitos humanos. O NEV também atua na denúncia de graves violações de direitos humanos e na promoção do acesso universal aos direitos humanos. Atualmente o NEV trabalha com três linhas de pesquisa, inovação e disseminação: a) Democracia, direitos humanos e violência: uma análise integrada; b) Monitoramento de Direitos Humanos no Brasil e particularmente em São Paulo; c) Democracia, direitos humanos e segurança pública: estudos comparativos. Para isso, conta com uma equipe de pesquisadores e auxiliares de pesquisa, com formação nas áreas de sociologia, ciência política, antropologia, história, direito, psicologia, literatura, saúde pública e estatística. Já o Crisp engloba um grande grupo de pesquisadores da UFMG, a maioria ligados a trabalhos de mestrado e doutorado. "Temos um grupo multidisciplinar, de profissionais ligados a áreas diversas como ciências exatas, medicina e sociologia", explicou o pesquisador Robson Sávio Reis Souza. O diferencial desse núcleo é que as pesquisas na área de segurança e criminalidade buscam sempre apontar soluções para os problemas. Transformam-se em projetos e, posteriormente, em políticas públicas. Com financiamento externo (Fundação Ford, Instituto Wilson Center e outras instituições), nacional (dos três níveis de governo (como por exemplo Ministério da Justiça, Secretaria de Segurança Pública, governo do Estado de Minas Gerais), o Crisp realiza trabalhos de consultoria e aplica os projetos junto a diversas prefeituras e governos estaduais. Destaque para a parceria com a prefeitura de Belo Horizonte, através do projeto "Liberdade Assistida" - em que profissionais como psicológos e assistentes sociais tiram os menores infratores das unidades de detenção e oferecem acompanhamento a eles e suas famílias -; e com a prefeitura de Itambira/MG, por meio do "Programa de Segurança Pública". "Também temos experiências com algumas prefeituras do Paraná, do Rio de Janeiro e agora estamos fechando parceria com o governo do Estado do Espírito Santo", finaliza Souza.
Fonte: UniversiaBrasil, Felipe Datt, 27/4/2007. |