Educação ou morte O americano estudioso do Brasil diz que o país é melhor do que se pensa, mas que tem desafios cruciais a superar
O americano Norman Gall especializou-se, como jornalista, desde 1961, em assuntos latino-americanos. Em 1977 radicou-se no Brasil. E aqui criou o Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, com sede em São Paulo, cujas atividades abrangem de seminários reunindo personalidades brasileiras e estrangeiras (exemplo: "A educação e a modernização da Espanha", com a presença do ex-chefe de governo espanhol Felipe González) a ações sociais (exemplo: os Círculos de Leitura com jovens das escolas públicas de São Paulo, assunto da seção Ensaio, na última página desta revista). Gall acaba de publicar o livro Lula e Mefistófeles (editora A Girafa), reunindo alguns dos ensaios que escreve para os Braudel Papers, jornal do instituto que dirige. Nova-iorquino do Brooklyn, onde nasceu em 1933, ele não se limita aos diagnósticos, em seus trabalhos. Costuma acompanhá-los de propostas e, se possível, de ações. Assuntos como a violência e a escola pública no Brasil lhe têm merecido dedicação que vai além da teoria. Gall hoje se sente tão envolvido com o país que decidiu se naturalizar brasileiro. Veja – Por que o senhor decidiu ser brasileiro? Gall – O Brasil me acolheu com generosidade e me deu muitas oportunidades. Hoje me sinto parte desta comunidade. Aqui amadureci no meu trabalho e na minha visão da vida. V – Em outro lugar seria diferente? G – Eu vivi em três países latino-americanos, Porto Rico, Venezuela e Brasil, e, ao longo de uma carreira de 44 anos voltada para a América Latina, trabalhei em quase todos os outros. O Brasil tem uma largueza que possibilita a muita gente se realizar. Além disso, está engajado nas grandes questões da atualidade: urbanização, globalização, meio ambiente, violência, direitos humanos, educação universal e, sobretudo, no aprendizado de como operar sociedades complexas. O povo está aprendendo rapidamente. Em alguns aspectos, o Brasil se parece com os Estados Unidos do século XIX e da primeira metade do século XX. No Brasil posso dizer o que penso e não serei acusado de ser um gringo intrometido, como ocorreria em outros países. V – Nós, brasileiros natos, não costumamos pensar tão bem do Brasil. Será que ele é melhor do que achamos? G – O Brasil de hoje é muito melhor do que o de quando cheguei aqui, quase trinta anos atrás. Tem uma democracia que funciona, apesar das dificuldades, tem leis que funcionam melhor do que no passado. É difícil encontrar, na periferia de São Paulo, rua que não tenha pavimentação ou iluminação. Há muito mais escolas, ainda que de má qualidade. As taxas de homicídio estão baixando. Em 1999, houve 11 455 homicídios registrados na Grande São Paulo. No ano passado, essa cifra deve ter caído à metade. Em boa parte isso se deve ao trabalho das polícias e dos governos, mas não só. Deve-se mais ainda à consolidação das comunidades, à maior confiança entre as pessoas, ao crescimento do comércio. Este ponto é muito importante: o comércio ocupa muito espaço, e ao fazê-lo tira espaço das atividades ilegais. V – O senhor e seu instituto têm realizado muitos trabalhos na periferia e nas cidades-satélites de São Paulo. Um dos mais importantes teve lugar em Diadema, município onde havia muita violência e que conheceu melhora notável. O que despertou seu interesse por Diadema? G – Meu envolvimento começou com o episódio da favela Naval, aquele em que policiais foram filmados espancando moradores e até matando um deles. Fiquei muito comovido com aquilo. Fui a Diadema, conheci a favela Naval, entrevistei pessoas. Depois, com o apoio do Banco Mundial, montamos um Fórum de Segurança Pública na cidade. Eu tinha perguntado ao prefeito quantas vezes por mês ele se encontrava com os chefes locais da polícia, quer dizer, o delegado e o comandante da Polícia Militar. Ele me respondeu que nunca se falavam. No fórum, realizado na Câmara dos Vereadores, passamos a reunir os chefes da polícia, que se mostraram muito cooperativos, as autoridades civis e os cidadãos. V – Qual era o objetivo? G – Era analisar a situação e propor soluções. Fizemos um levantamento estatístico do crime na cidade. Contratamos estudantes de direito para pesquisar os inquéritos da Polícia Civil. As reuniões eram realizadas uma vez por mês. V – O senhor diria que o fórum foi decisivo para mudar a situação no município? G – Não. Foi um conjunto de fatores. Diadema tinha um dos mais altos índices de homicídio do mundo – 140 por 100 000 habitantes. Tinha chegado a hora de fazer algo. A prefeitura, a polícia, todos se engajaram na tarefa. Ocorreu um processo que culminou com a famosa lei seca, obrigando os bares a fechar às 23 horas. As taxas de homicídio caíram substancialmente. V – De todo modo, as periferias das cidades brasileiras continuam lugares de violência e de desesperança. G – Eu olho as tendências, e acho que elas são positivas. O Brasil não conhece conflitos étnicos ou religiosos como os que sacudiram recentemente a França. Nos bairros pobres do Brasil, as pessoas têm orgulho quando conseguem construir uma casinha, ou quando conseguem aumentá-la. No Brasil, populações de várias origens fundiram-se num povo só, que fala a mesma língua e alça a mesma bandeira. V – Até agora, o senhor tem falado nas coisas boas do Brasil. E os defeitos? G – Muitos nascem de arranjos institucionais defeituosos. Um deles é a rigidez da legislação trabalhista. Ela impede a geração de empregos. Outro é o excesso de gastos com a Previdência. O Brasil gasta com ela duas vezes mais do que com educação. Isso tem uma conseqüência perversa: o Brasil é um país jovem que investe mais nos velhos, mais no passado do que no futuro. O gasto com aposentadorias seria perfeitamente aceitável se representasse uma proteção aos pobres e contribuísse para a distribuição de renda. Mas não – 61% destinam-se à quinta parte mais rica da população. Para ter uma medida de comparação, nos Estados Unidos não mais que 26% das aposentadorias vão para os mais bem aquinhoados. V – Como corrigir isso? G – A solução básica, adotada em outros países, é aumentar a idade mínima de aposentadoria. Esse processo já começou no Brasil, mas esbarra em resistências fortes. Aproximadamente 40% dos gastos com aposentadorias e pensões no Brasil contemplam o setor público. Isso significa que esses 40% beneficiam apenas 3 milhões dos 26 milhões de aposentados e pensionistas. Há quarenta anos, a Coréia do Sul era um país muito mais pobre que o Brasil. Hoje é muito mais rico. Os coreanos gastam com aposentadorias apenas um quarto do que gastam com educação. V – A escola pública é um dos temas mais presentes no seu trabalho e no do instituto que o senhor dirige. Por que ela se deteriorou tanto? G – Uma das vertentes em que temos insistido, em nossas pesquisas, é a de que as instituições públicas se viram sufocadas por problemas de escala. Havia escolas públicas-modelo no Rio, em São Paulo e em outras cidades. Mas elas eram para poucos. Quando a população começou a pressionar o sistema, ele respondeu com crescimento considerável, mas com sacrifício na qualidade. A educação é o desafio que ou o Brasil resolve ou terá seus problemas eternizados. O fato de que os brasileiros mais pobres tenham uma média de apenas 3,4 anos de escolaridade é chocante. Mas, para mim, mais chocante ainda é que os 20% mais ricos tenham apenas 10,3 anos de escolaridade. Uma elite com tão pouca instrução não será capaz de operar uma sociedade complexa. V – Há alguma chance de os governos conseguirem enfrentar essa situação? G – É muito difícil fazer um político se interessar pela educação. Você tem o problema de a classe política ser impermeável entre uma eleição e outra. Um executivo que já cumpriu sua missão no setor privado ou um empresário bem-sucedido poderiam prestar sua colaboração, assumindo o gerenciamento de escolas, de grupos de escolas ou de outras áreas do setor público. Seria um modo de pôr sua experiência e sua capacidade de liderança a serviço da sociedade. Mas, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, na Alemanha ou na Inglaterra, não há esse costume no Brasil. V – Por quê? G – Eu acho que a elite brasileira é cordial, para retomar uma idéia de Sérgio Buarque de Holanda, mas não é generosa. Veja o caso do prefeito Michael Bloomberg, de Nova York. É um empresário bilionário que resolveu passar para o setor público porque foi tomado da obsessão de enfrentar os problemas da cidade. Não me parece que ele tenha outras ambições políticas. Para gerenciar uma profunda reforma no ensino público, ele convocou um brilhante advogado de origem humilde, mas que conseguiu se formar em Harvard, Joel Klein. Em outras cidades, militares aposentados e empresários dirigem as escolas públicas. No Brasil não há isso. A filantropia só está começando. Os talentos do setor privado ainda não chamam a si a responsabilidade por setores que os preocupam. Não chegam ao governador e dizem: "Acho que teria algo com que contribuir nesta área. Deixe-me assumi-la". Nos seminários em nosso instituto sobre as grandes questões da atualidade, ouvimos muitos diagnósticos e muitas lamúrias. Mas é raro ouvirmos propostas. As elites falam muito dos problemas, mas não oferecem soluções. V – O senhor tem visitado escolas públicas em suas pesquisas. O que tem encontrado? G – A situação é muito insatisfatória. As escolas vivem trocando de diretor, os professores trabalham tanto que não decoram o nome dos alunos. Com muita freqüência os professores faltam e os alunos ficam sem ter o que fazer. Na sala de aula é comum o professor ficar de costas para a classe, escrevendo no quadro-negro, enquanto os alunos copiam mecanicamente o que ele escreve. E comportamentos como esse são tidos como normais! Num outro plano, há a questão de o país estar empregando errado os recursos que possui. O Brasil gasta com um aluno do curso primário um quinto do que gasta a Grã-Bretanha. Mas gasta com um aluno universitário duas vezes mais que a Grã-Bretanha. V – A dificuldade de enfrentar essas questões evidentemente tem a ver com o sistema político e a corrupção. Dá para esperar uma mudança, nesse aspecto, a curto prazo? G – Em meu último trabalho, Lula e Mefistófeles, eu avancei algumas sugestões. Acho que no Brasil o Congresso tem muito poder e pouca responsabilidade. Sugeri que os ministros, após nomeados pelo presidente, tenham de ser aprovados pelo Senado. Isso não só permitiria um escrutínio maior de suas qualidades profissionais e de sua postura ética como tornaria o Congresso co-responsável pelas nomeações. Os escândalos de 2005 mostram que o sistema de CPIs deve ser profundamente revisado, para produzir resultados mais concretos, sem tanto falatório nem perda de tempo. Também sugeri que todos os partidos e todos os candidatos sejam obrigados a divulgar suas prestações de conta pela internet. Dessa forma, um partido vigiaria o outro, um candidato vigiaria o outro, e o eleitor que o desejasse vigiaria todos. V – O senhor esteve recentemente na Venezuela. Que encontrou por lá? G – Hugo Chávez agora comanda todos os instrumentos de governo. Controla o aparato militar, tem o sistema eleitoral nas mãos, possui os meios para constranger a liberdade de expressão. Mas não creio que dure mais do que dois ou três anos. Ele afundará na bagunça. Experiências populistas como as de Chávez, de Kirchner (sem Lavagna) na Argentina e de Evo Morales na Bolívia geralmente são perda de tempo na evolução histórica de seus países. Chávez usa o dinheiro do petróleo para bravatas como a compra de 1 bilhão de dólares em bônus argentinos, mas não investe na coleta de lixo em Caracas. A cidade está afogada em sujeira, com perigo para a saúde pública. Há hospitais públicos onde faltam chapas nos aparelhos de raios X e produtos químicos para exames de laboratório. A situação é patética. Quando morei na Venezuela fiz muitas pesquisas de campo na periferia de Caracas. Desta vez voltei a esses lugares, e os encontrei estancados no tempo. É o contrário do que percebo na periferia de São Paulo. V – Por que a América Latina não é uma prioridade na política externa dos Estados Unidos? G – Essa questão precisa ser posta em perspectiva. Quando as coisas esquentam por aqui, a região vira prioridade. Por outro lado, a América Latina não é prioridade para a própria América Latina. Um brasileiro não tem idéia do que se passa no Equador, e um peruano não se interessa pelo México. Conheço o caso de um alto personagem do governo brasileiro que, ao ser visitado por um governante boliviano, lhe perguntou se a Bolívia fazia fronteira com o Brasil. V – Por que os Estados Unidos são tão atacados na América Latina? G – Neste momento o presidente Bush é alvo fácil por causa do Iraque. Mas é impressionante como os Estados Unidos são incapazes de se defender contra o jargão da esquerda, que usa termos como "neoliberalismo", "Consenso de Washington" e "privatizações" como palavrões. O mal batizado "Consenso de Washington" representou um esforço para redescobrir as leis básicas de economia, especialmente das finanças públicas, quando vários países enfrentavam crises de hiperinflação e alto endividamento. As privatizações aconteceram porque as empresas públicas, na maioria dos casos, estavam perdendo muito dinheiro, sangrando as finanças públicas e alimentando a inflação crônica. Acho que os Estados Unidos, apesar de pecados como o apoio a ditaduras militares, têm atuado no último século como uma força revolucionária na América Latina, ajudando a melhorar a qualidade de saúde pública, a gestão de empresas, a produção agrícola e o consumo popular. Nas últimas três décadas, têm promovido e apoiado o fortalecimento da democracia. Por isso, não entendo por que não reagem ao jargão vulgar de seus acusadores. V – Será que vai valer a pena mesmo naturalizar-se brasileiro, com todos os problemas que o senhor apontou? G – Não são problemas do Brasil em si. São problemas de desenvolvimento comuns a muitos países. Mas não podemos esquecer os progressos já alcançados. O Brasil segue sendo um país de aspirações. Se tomar a decisão estratégica de por um longo prazo concentrar seus esforços no sentido de melhorar a qualidade do ensino público e da infra-estrutura física – estradas, portos, energia elétrica, saneamento –, podemos prever um futuro brilhante para o país. Fonte: Rev. Veja Ed. 1941, 1/2/2006. |