Entre as
diversas atividades que marcaram ontem, dia 23, o início da terceira
edição do Fórum Social Mundial, realizada em Porto Alegre, uma pretendia
posicionar a Educação Superior diante de todas as discussões que serão
tratadas no evento. Trata-se da Jornada de Debates: "O Ensino Superior
no Contexto do Fórum Social Mundial", promovida pela UFRGS (Universidade
Federal do Rio Grande do Sul).
A Jornada permitiu a visão de um amplo panorama de temas: a reitora da
UFRGS, Wrana Panizzi, fez um histórico das lutas travadas pela defesa da
Educação como um Direito Humano Universal; o professor de Medicina da
USP (Universidade de São Paulo), Sérgio Ferreira, tratou da questão da
produção do conhecimento nas IES; enquanto o professor de Educação da
Universidade do Porto (Portugal), Stephen Stoer, alertou para o fenômeno
da formação voltada para " performance". Já o secretário-executivo da
AUGM (Associação de Universidades do Grupo Montevidéu), Jorge Brovetto,
falou sobre o processo em marcha de mercantilização do Ensino, enquanto
o assessor da Universidade das Nações Unidas, Marco Antonio Dias,
abordou a inclusão da Educação na lista de serviços do GATS.
O painel abriu espaço
ainda para a apresentação, pelo presidente da UNE (União Nacional dos
Estudantes), Felipe Maia, das direções da luta estudantil e também para
uma reflexão sobre a política de concessão de cotas para minorias, tema
tratado pela reitora da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro),
Nilcea Freire. Acompanhe os pontos principais de cada uma dessas
abordagens:
A
defesa da Educação como um Direito Humano Universal
Em sua fala como
coordenadora da mesa de debates, a reitora da UFRGS, Wrana Panizzi,
relembrou uma série de encontros e reuniões organizados justamente com o
propósito de tratar dos destinos do ensino superior no mundo
"globalizado". Iniciando com a "Conferência Mundial sobre Ensino
Superior", realizada em Paris (França) em outubro1998, que resultou na
"Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação"
e que estabelecia as definições do conhecimento como patrimônio
social e da educação como bem público - dever do Estado e
direito de todos. No entanto, segundo a reitora um mês antes deste
encontro, o secretariado da OMC (Organização Mundial do Comércio)
propunha a regulamentação da educação superior como serviço comercial,
objeto de negociação no âmbito do GATS (Acordo Geral sobre o Comércio de
Serviços). Em novembro do mesmo ano, o encontro "Universidade,
Globalização e Identidade Ibero-Americana", realizado em Córdoba
(Argentina), fez, em sua Declaração, eco aos compromissos estabelecidos
em Paris, abordando o ensino superior como "um dos mais importantes
direitos humanos".
Wrana afirma que, a
partir destas reuniões, articulou-se um novo espaço de intercâmbio
internacional, voltado para o debate da Universidade como instituição,
tendo como resultado deste processo, a realização das Cumbres -
encontros periódicos de reitores de universidades públicas
iberoamericanas. "É interessante observar, no entanto, que na segunda
Cumbre, realizada em 2000, na Argentina, que o tema da regulamentação do
ensino superior como serviço comercial esteve absolutamente ausente do
debate", afirma. "Assim, embora a iniciativa da OMC já fosse do
conhecimento de alguns especialistas bem informados, ela somente chama a
atenção da comunidade universitária a partir da terceira Cumbre,
realizada em Porto Alegre em abril de 2002". A Carta de Porto Alegre,
resultante do encontro repudia veementemente a transformação da Educação
em simples mercadoria.
Com esta
retrospectiva, a reitora mostrou que a discussão sobre a mercantilização
do ensino não é um tema novo e apesar de já muito debatido, ainda está
longe de uma definição. "É preciso assumirmos esta luta, cuja
responsabilidade cabe a todos nós. Sabemos, nas nossas atividades como
reitores, que é sempre necessaria uma boa dose de teimosia. Teremos
ainda muito mais discussões e ações. Que elas possam recuperar o ânimo
de todos nós, pois esta luta nos irá exigir mais e mais empenho",
complementa.
Produção de conhecimento
O ex-presidente da
SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e professor de
Medicina da USP (Universidade de São Paulo), Sérgio Ferreira, abriu o
debate defendendo que a pesquisa na universidade deve se voltar para a
ciência básica e não fixar-se apenas no desenvolvimento tecnológico,
como tem acontecido. O cientista explicou que a ciência tem como
resultado teorias e conceitos que serão remodelados pelo tempo e
servirão como base para diversos avanços. Já a busca tecnológica tem
como resultado-fim um processo ou produto determinado. "O senso comum
diz que fazer ciência básica é mais fácil do que trabalhar o
desenvolvimento tecnológico, mas isso não é verdade", afirma Ferreira.
Segundo ele, os
defensores da expansão das telecomunicações e da tecnologia da
informação afirmavam que este processo estaria assegurando o
desenvolvimento de países menos favorecidos e traria benefícios diretos
à população em geral, o que não se mostrou ser verdadeiro. "A sociedade
da informação foi uma invenção gerada pela necessidade capitalista de
obter, com muita rapidez, informações sobre os mercados globalizados",
sustenta. "A difusão do conhecimento pode, sem dúvida nenhuma, aumentar
a Educação de vários setores da população, mas ela não vai capacitar a
sociedade para entrar nos grandes mercados mundiais. Para isso é
necessário criar um conhecimento que gere novos conceitos, projetos e
produtos inovadores e de valor agregado".
Ferreira acredita que é preciso mudar radicalmente a visão de ensino
existente atualmente. "Temos de preservar a curiosidade, a capacidade de
indagação dos nossos alunos. Temos de ensiná-los a aprender e não
sufocá-los com uma montanha de conhecimentos tecnológicos e científicos,
que hoje é a forma utilizada pelo professor - para justificar o seu
salário - e pelas IES - para justificar os seus currículos". O
professor, no entanto, defende a universidade da crítica de que a
produção acadêmica estaria distante dos interesses da sociedade. "Quem
não está integrada às necessidades da comunidade é a indústria".
Formação voltada para "performance"
O professor de
Educação da Universidade do Porto (Portugal), Stephen Stoer, apresentou
um panorama da realidade da Educação em Portugal que, apesar de gratuita
e universal em todos os níveis de ensino, está vivendo uma mudança no
tipo de formação gerada por ela. "Estamos passando de um modelo que
visava gerar competências - aqui entendida como a capacidade do
indivíduo de atuar em vários campos do conhecimento - para um modelo de
performance - ou seja, a capacidade de produzir bem no momento certo e
no local certo determinada demanda". Para o professor, este novo
conceito estabelece que "o conhecimento deve fluir como dinheiro, ou
seja, para onde possa criar vantagens e lucros; ou mais além, não como
dinheiro, mas se transformando no próprio dinheiro."
Ferreira alerta para
o grande problema surgido com este novo conceito. "Este processo acaba
com o comprometimento e dedicação pessoal e faz com que as pessoas
possam ser levadas de um lado para outro, substituídas a qualquer
momento e colocadas para fora do mercado". Segundo o educador, toda esta
mudança na formação universitária tem gerado uma polarização nas
discussões: um grupo critica esta alteração e pretende isolar-se em um
outro modelo, limpo destas interferências, e outro segue na defesa da
performance. "É preciso ter cuidado com esse fosso, que acaba
contribuindo para que este modelo de performance ganhe cada vez mais
espaço", alerta. O professor enxerga, no entanto, uma brecha que deveria
ser aproveitada para se alterar esta situação. "Pesquisas realizadas com
empresários indicam, no entanto, que eles têm procurado jovens com
mentes abertas e espírito de equipe, o que favorece a volta da noção de
formação voltada para competências."
Mercantilização do Ensino
O
secretário-executivo da AUGM (Associação de Universidades do Grupo
Montevidéu), Jorge Brovetto, iniciou sua participação contando uma
parábola. "Certa vez ouvi um economista do Banco Mundial contar a
parábola da Gazela e do Leão, segundo a qual, todos os dias, a gazela
acorda pensando que precisa ser ainda mais rápida para não morrer na
boca do leão e o leão acorda todos os dias pensando que precisa ser
ainda mais rápido para pegar a gazela e não morrer de fome. Com isso, eu
cheguei à conclusão de qual é o pensamento dos organismos internacionais
financeiros sobre a Educação , que são os mesmos daqueles que promovem a
globalização neoliberal. O que deve reinar é a lei da selva e não da
solidariedade. E que a integração com os mais lentos, ou os menos
desenvolvidos, pode ser uma ação desastrosa."
Segundo Brovetto, as
políticas impostas pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento),
Banco Mundial, OMC (Organização Mundial do Comércio) e FMI (Fundo
Monetário Internacional), têm um forte impacto na Educação Superior. Ele
cita como exemplo uma publicação de 1993 do Banco Mundial, intitulada
"Educação Superior - As lições da experiência", que determinava que o
ensino de terceiro grau não deve ser prioridade nos países em
desenvolvimento, especialmente naqueles que não desenvolveram o ensino
primário. As propostas apresentadas pelo estudo envolviam maior
eficiência com menor gasto público; controle do acesso às universidades;
estabelecimento de condições favoráveis para o desenvolvimento da
iniciativa privada no setor; financiamento público a atividades mais
sensíveis às necessidades no mercado, entre outras. O Banco explicitava
que iria ajudar financeiramente os governos que estabelecessem estas
políticas. "A reação a este documento, no entanto, foi bastante forte e
esta pressão obrigou o Banco Mundial a realizar ajustes", conta
Brovetto.
O documento revisto
resultou em uma nova proposta, batizada de "Perigos e promessas: a
Educação Superior em países em desenvolvimento". Segundo o
secretário-executivo, o novo texto reconhece o papel fundamental do
Ensino para o desenvolvimento dos países, bem como a criação científica
e tecnológica, mas propõe: o aproveitamento das potencialidades da
iniciativa privada; um forte apoio da comunidade internacional nos
estabelecimentos de diretrizes; autonomia (aqui entendida como a
ausência de ação do poder público, que teria a função apenas de
supervisão); inclusão da Educação nos serviços regulados pelo GATS da
OMC (Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços da Organização Mundial do
Comércio), entre outros.
Para Brovetto, é
preciso uma resposta a estas propostas, como a garantia da Educação
pública, gratuita e de qualidade como Direito Humano Universal. "A
Educação é um dos pilares fundamentais dos direitos humanos, para a paz
e a democracia. O conhecimento é fonte primordial de poder e
democratizar o acesso a ele é, definitivamente, democratizar o poder",
finaliza.
A
inclusão da Educação na lista de serviços do GATS
O assessor da
Universidade das Nações Unidas, Marco Antonio Dias, relembrou à platéia
que, quando ocorreram as primeiras manifestações contra a possibilidade
da Educação entrar na lista de serviços regulamentada pelo GATS da OMC
(Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços da Organização Mundial do
Comércio), ventilou-se a idéia de que estas manifestações seriam
alarmistas, porque:
-
a questão da
Educação não estava na ordem do dia da OMC
-
o Brasil não tinha
firmando nenhum compromisso com a Organização
No entanto, Dias
afirmou que, agora, a realidade é de que:
-
a questão da
Educação ESTÁ na ordem do dia da OMC: "termina no final de março o
prazo dado para os países se posicionarem a respeito do tema; EUA,
Austrália e Nova Zelândia fizeram uma proposta que visa a ampla
abertura do mercado da Educação, segundo a qual os serviços de
Educação serão incluídos no GATS quando existir a concorrência com um
ou mais fornecedores. Ou seja, basta existir um estabelecimento de
ensino privado para ser considerada a possibilidade de concorrência".
-
o Brasil ainda não
firmou nenhum acordo com a OMC: "mas é preciso cuidado porque, a cada
rodada de negociações, a pressão aumenta mais. Na discussão das
telecomunicações, em 2000/2001, o Brasil afirmou que já tinha aberto
todo o mercado, deixando apenas um ponto de fora: a de que nenhuma
empresa de comunicação poderia ter participação acionária de grupos
estrangeiros. Só que este impedimento caiu no final do ano passado".
"Mas é verdade que
aqueles que protestaram e protestam contra esta inclusão são
alarmistas", afirma. "Porque em lugar de ser tratada como um Direito
Humano, a Educação só será acessível a quem puder pagar por ela; a
cultura e as necessidades nacionais deixarão de ser respeitadas no
Ensino; não haverá restrições e diplomas poderão ser expedidos por
qualquer um; e, por fim, as definições das políticas educacionais serão
feitas no exterior".
Dias vê uma
explicação para o grande interesse existente hoje na exploração de
serviços. "Uma pesquisa da The Economist, publicada em 7 de dezembro,
revela que dois terços da economia americana são gerados pela área de
serviços, o que representa 80% do mercado de trabalho daquele país, e
apenas 20% são gerados do comércio mundial", declara.
Para o professor,
como resistência a estas ações, os países em desenvolvimento devem ter
uma "Agenda positiva para o Ensino Superior", que vise:
-
garantir a Educação
como um Direito Humano Universal
-
melhorar o acesso
-
garantir maior
participação dos setores discriminados pela sociedade
-
reduzir a evasão
-
promover a melhoria
do ensino primário e secundário e trabalhar para uma maior integração
entre o Ensino Superior e demais níveis
-
fazer uma
utilização inteligente do Ensino a Distância
-
seguir o definido
no Estatuto dos Docentes, aprovado em 97, que estabelecia Plano de
Carreira e Salários
-
instituir um
financiamento do setor eficiente - "os reitores não podem continuar
correndo atrás de ministro para poder pagar suas contas de água, luz
etc"
-
estabelecer um
modelo de autonomia institucional
-
definir as regras
de avaliação institucional - "é preciso cuidado com manobras que visam
a importação de modelos de avaliação"
-
reconstruir a
extensão
No entanto, um ponto
que Dias considera fundamental é a definição ou redefinição por parte
das Universidades das suas missões. "Devemos ter um ideal histórico, um
projeto de nação e, se a sociedade não debate este projeto no momento de
definir suas IES, é impossível se definir o país que queremos. É preciso
construir um modelo de universidade moldado nos desejos de sociedade que
a comunidade quer ter, já que o que se quer alcançar é uma sociedade
mais justa, igualitária e democrática."
Luta
estudantil
"É um alento saber
que os reitores se reúnem num espaço como o do Fórum Social Mundial,
pois a luta contra a inclusão da Educação no GATS da OMC (Acordo Geral
sobre o Comércio de Serviços da Organização Mundial do Comércio) deve
ser travada pelo conjunto da comunidade. Não basta os estudantes saírem
às ruas", afirmou o presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes),
Felipe Maia. "Não é preciso termos os mesmos programas, métodos ou forma
de ação. Precisamos construir espaços conjuntos, que reúnam todos os
setores que estão dispostos a uma outra forma de globalização: não a
financeira, mas sim a solidária".
Maia ressaltou que a
luta estudantil tem se tornado internacional em razão das políticas
serem internacionalizadas e destacou os dois pontos centrais criticados
pelos estudantes:
-
a substituição e
invasão dos espaços públicos por iniciativas privadas, com a
conseqüente implatanção da lógica empresarial na oferta de serviços
educacionais;
-
currículos mais
voltados para a formação de profissionais para o mercado de trabalho,
formando pessoas descomprometidas com as grandes causas sociais. "É
inconcebível que um médico recém-saído da universidade possa realizar
uma cirurgia de retina, mas não pense em uma solução para o sistema de
saúde pública; ou um arquiteto que seja capaz de estruturar uma obra
avançada mas que não discuta tecnologias alternativas para a
construção de casas populares", exemplifica.
Maia afirmou também
que os estudantes estão organizando, entre outras manifestações, uma
jornada latino-americana contra a inclusão da Educação no GATS - no dia
27 de março - e outra para ser realizada em setembro, durante a reunião
interministerial que deverá debater o assunto em Cancun (México)
Cotas
para minorias
Antes de explanar
sobre a política de concessão de cotas para minorias, a reitora da UERJ
(Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Nilcea Freire, conclamou os
presentes a assumir um compromisso com a construção das novas bases que
vise a uma sociedade mais justa. "A Universidade, através de seus
segmentos, como associação de reitores, de docentes, de funcionários e
de estudantes, foi convocada, pelo novo governo, a participar desse
esforço. A temática da desigualdade, que antes era tratada enfática e
estritamente no campo oposicionista ou secundarizada pelo poder público,
passa a ser o eixo central do discurso oficial. Isso coloca a
universidade diante de uma realidade inteiramente distinta da qual está
habituada. Todos devemos responder a esse chamamento, mesmo sabendo que
esta nova relação que se anuncia gerará conflitos novos, e até mesmo
revividos. Mas o tempo é de esperança e a gente cresce no conflito e,
sobretudo, na superação dele".
Nilcea afirmou que a
construção desta nova sociedade passa pela formulação de políticas
includentes que visem à formação de quadros que possam atuar com
competitividade, sensibilidade e cidadania. E que estas políticas
precisam ter soluções de curto, médio e longo prazo. Ela conta que,
quando sua universidade, obrigada por uma lei, adotou cotas (50% das
vagas são voltadas para estudantes do ensino médio e 40% das vagas devem
ser preenchidas por quem se autodeclarar negro ou pardo), a discussão
foi ampla, de questionamentos sobre a existência de democracia racial no
Brasil, passando pelas reais origens da exclusão e chegando a uma
polêmica sobre a estrutura universitária que tem seu acesso pelo mérito.
"De início, houve uma forte recusa por parte da comunidade acadêmica em
aceitar as cotas. No entanto, a questão agora nos parece uma
oportunidade ímpar de revisar nossos conceitos", diz, exemplificando:
"percebemos, por exemplo, que temos de tratar mais a fundo as causas da
evasão de alunos - muitos deles com perfis parecidos com os que vamos
receber agora, com o resultado deste vestibular no novo sistema".
Para Nilcea, no
entanto, a adoção da cota é uma solução paliativa. "O estabelecimento
das cotas sem um trabalho de fortalecimento da qualidade do Ensino Médio
e Fundamental é apenas uma medida populista. Estas propostas de
políticas afirmativas inclusivas se extinguirão quando tivermos uma
sociedade realmente inclusiva", finaliza. |