A educação na América Latina:
direito em risco
As
articulações, fóruns, movimentos e organizações da sociedade civil
latino-americana e global que estiveram reunidos em Brasília nos dias 8 e 9
de novembro de 2004, vem manifestar aos/às participantes da 4ª reunião do
Grupo de Alto Nível da Educação Para Todos (EPT), convocada pela Unesco,
realizada na mesma cidade, e às sociedades civil e aos governos de todo
mundo, preocupações e propostas com relação aos desafios para o avanço da
qualidade educacional. Tais considerações têm como base o entendimento de
que a educação é um direito humano fundamental, garantido pelo Estado, e
deve ser assumida como política estruturante de um modelo de desenvolvimento
comprometido com justiça social, cidadania e sustenta-bilidade.
-
a deterioração da
educação na América Latina
- A qualidade da educação e do processo de aprendizagem constituem um
desafio especial na América Latina, na qual se mantêm intacto um sistema
econômico altamente excludente e fonte de profundas desigualdades sociais.
A deterioração da educação no continente está refletida na baixa
qualidade, na diminuição dos orçamentos de educação em vários países, na
precarização das condições de trabalho dos profissionais de educação e no
estancamento do acesso à educação. Verificamos um retrocesso que amplia a
brecha entre a situação vigente e as metas dos governos e dos organismos
internacionais.
Nesse
contexto, os sistemas educativos enfrentam inúmeras dificuldades para dar
respostas efetivas às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa e
desigual, não garantindo o acesso devido às diferentes etapas e modalidades
da educação, não garantindo a permanência e o direito à aprendizagem para a
gigantesca maioria de alunos e alunas, sejam eles crianças, adolescentes,
jovens e adultos. Apesar dos avanços com relação ao acesso à educação
primária nas décadas passadas na América Latina, persistem graves problemas
de acesso ao conjunto da educação pública, em especial, na educação
infantil, ensino médio e superior, bem como na educação de jovens e adultos.
Além disso, a baixa qualidade da educação reproduz as inequidades e
aprofunda a exclusão social, política, econômica e cultural no continente,
afetando de forma perversa as populações mais marginalizadas. Além do mais,
os indicadores hoje assumidos pelos organismos internacionais não aferem os
graves problemas da educação no continente, limitando-se às questões de
acesso e não captando permanência e sucesso.
Entendemos que a qualidade em educação é um conceito político, em disputa na
esfera pública, que deve ser referenciado nos contextos, necessidades e
desafios do desenvolvimento de uma região, de um país, de uma localidade. A
qualidade é um processo que exige investimentos financeiros de longo prazo,
participação social e reconhecimento das diversidades e desigualdades
culturais, sociais e políticas presentes em nossas realidades. Queremos uma
qualidade em educação que garanta aprendizagem, gere sujeitos de direitos,
inclusão cultural e social, qualidade de vida, contribua para o respeito à
diversidade, o avanço da sustentabilidade e da democracia e a consolidação
do Estado de Direito em todo o planeta.
O déficit latino-americano nos mostra um desenvolvimento precário
da educação: sem alcançar ainda a alfabetização das pessoas adultas e o
acesso geral das crianças e jovens no sistema escolar. A América Latina se
insere obrigatoriamente no modelo de globalização com um déficit de 10% de
analfabetismo adulto e 40% na escolaridade básica.
-
O reducionismo da
agenda global da educação
– A agenda global de educação, a partir da década de 90 vem sofrendo um
forte retrocesso. As metas se tornaram mais tímidas, os prazos para o
cumprimento foram estendidos (de 2000 a 2015), o financiamento foi
limitado e a abrangência se restringiu, estimulando a focalização de
políticas públicas, destinadas sobretudo a grupos, países e regiões mais
excluídos do planeta, do qual a iniciativa do Fast Track (Via Rápida) –
com seus limites e contradições – constitui um perfeito exemplo vinculado
a essa lógica. Dessa forma, efetivamente, não estão garantidas condições
concretas para o desenvolvimento e consolidação da educação enquanto
política pública universal.
Se parte das metas da Dakar (2000) significou um recuo com relação às
metas da Conferência Mundial de Educação de Jomtien (Tailândia, 1990),
consideramos que as Metas do Milênio cumprem mais uma vez esse papel
ao limitarem as metas da educação ao acesso à educação primária
obrigatória. As Metas do Milênio deveriam permitir um tratamento mais
contextualizado e menos setorial da educação, reafirmando-a como eixo
de desenvolvimento, mas ao se limitar ao aceso à educação primária se
subordina à lógica do reducionismo da agenda internacional de
educação.
|
-
A sobreposição de
Planos e Instâncias Internacionais de Educação
– Consideramos que existe no cenário internacional um grande, conflitante,
incoerente e fragmentário conjunto de iniciativas e planos destinados a
melhorar a situação da educação no mundo com suas respectivas metas,
dinâmicas e instâncias, das quais uma delas é o Grupo de Alto Nível (High
Level Group) de Educação Para Todos (EPT). Somente com relação à educação,
estão em vigor na América Latina seis iniciativas com metas referentes à
educação. Tal situação gera dispersão de esforços e recursos,
sobreposição, falta de efetividade e transparência, desarticulação nos
níveis nacionais e inúmeras dificuldades para a participação da sociedade
civil, entre elas, o acesso a informações estratégicas.
-
Via Rápida (Fast
Track) –
A iniciativa Via Rápida vai à contramão do entendimento da educação como
direito universal obrigatório e gratuito, ao focalizar políticas e
programas para os grupos mais vulneráveis da população, a partir de uma
concepção compensatória e não como um direito de todos e todas. Por outro
lado, o financiamento da educação não pode estar à mercê dos organismos
financeiros internacionais como o Banco Mundial, instituição promotora das
políticas de ajuste fiscal que influencia os governos nacionais a retirar
recursos das políticas sociais e, em especial, da educação. Consideramos
que a iniciativa Via Rápida constitui um retrocesso em relação à
Iniciativa Global, pactuada na Conferência Mundial para Todos (Jomtien,
1990). Nos preocupa que esta iniciativa seja acolhida com centralidade na
estratégia EPT pela cooperação internacional, em particular pela Unesco.
-
A América Latina na
periferia da agenda global
– A América Latina vem ocupando um lugar cada vez mais periférico na
agenda global de educação, expresso nas diferentes reuniões
internacionais. Isso decorre, em grande parte, do empobrecimento da agenda
global, ao restringir as metas de educação ao acesso à educação primária,
sobretudo, de grupos mais vulneráveis, dos “pobres entre os mais pobres”,
dos quais fazem parte alguns dos países latino-americanos, segundo os
organismos internacionais. Esse lugar “periférico” decorre também da falta
de reconhecimento explícito do impacto nefasto das políticas de ajuste
fiscal no continente por parte dos organismos internacionais. Tais
políticas são reprodutoras de desigualdades sociais, da baixa qualidade e
das limitações de acesso da educação pública na América Latina.
-
As políticas
econômicas e de ajuste fiscal como obstáculos ao direito à educação
– A limitação do financiamento continua sendo um grande obstáculo para a
melhoria da educação no mundo todo e, particularmente, na América Latina,
ainda subordinada às políticas de ajuste fiscal, ao pagamento da dívida
externa e à geração de superávits primários. Não podemos esquecer que o
discurso predominante nas reformas educativas nos anos 90 no continente,
levadas adiante pelos Estados Nacionais com apoio e orientação do Banco
Mundial, pregava que não seriam necessários mais recursos para educação
pública, mas somente o uso mais eficiente dos existentes. Porém, inúmeros
estudos internacionais e nacionais, inclusive no âmbito da Educação para
Todos, apontam a urgência de mais recursos para a educação pública como
condição para o salto de qualidade e acesso e para o cumprimento das
demais metas da Educação para Todos. Entendemos que os organismos
internacionais ainda se omitem em fazer a crítica explícita às políticas
de ajustes fiscais como obstáculo à qualidade e ao exercício do direito
educacional para a maioria da população.
-
Educação como
Serviço e Mercadoria –
os acordos
internacionais de comércio (GATS, Tratado de Livre Comércio e a ALCA)
comprometem o direito à educação, ao tratá-la como mercadoria,
desresponsabilizando os Estados Nacionais e incentivando a sua
comercialização no mercado mundial. Tal situação transforma o cidadão em
mero consumidor, comprometendo assim a consolidação de um Estado Social de
Direito, fundamentado na democracia e na cidadania.
-
A precarização das
condições de trabalho e de vida dos/das profissionais de educação –
Ao longo das
últimas décadas, as condições de trabalho e de vida dos/das profissionais
de educação sofreram forte impacto negativo, com a queda acentuada dos
níveis salariais, diminuição de benefícios, processos de contratação com
base em tercerização, precarização da situação dos ambientes escolares, e
fragmentação das políticas de formação inicial e continuada. Tudo isso
contribui para o quadro de baixa qualidade da educação na América Latina.
-
Participação social
como direito e base da transformação
– uma educação de
qualidade para todos e todas somente é possível com a participação da
sociedade para além da comunidade educativa, inclusive considerando como
fundamental o envolvimento de crianças, adolescentes e jovens. Uma
participação que não se restringe a uma consulta com organizações
“amigas”, a mera formalidade, a rituais para legitimação de propostas já
fechadas, mas comprometida com a efetiva participação da sociedade civil
em sua diversidade política, na qual o conflito é inerente. É necessário
rever os processos, instâncias e demais procedimentos que permitam a maior
politização da participação social tanto nos níveis local, nacional e
internacional, garantindo uma gestão democrática em todo o sistema
educativo. Para isso é fundamental a transparência e a disseminação de
informações estratégicas que permitam uma participação mais qualificada.
PROPOMOS
QUE O GRUPO DE ALTO NÍVEL ASSUMA EM SUAS RESOLUÇÕES:
-
a educação como
direito humano fundamental, responsabilidade do Estado e eixo de uma
política de desenvolvimento comprometida com a justiça social.
-
resgate do sentido
ampliado de Educação para Todos
da Conferência de Jomtien, comprometido com o direito à educação e à
aprendizagem ao longo de toda a vida e no conjunto dos diversos espaços
educativos que constitui o habitat humano, revertendo o processo
reducionista das metas de educação.
-
tomada de medida
urgentes frente ao reconhecimento do não cumprimento das metas
no prazo estipulado,
de modo a reverter este processo.
-
a revisão e
articulação de iniciativas, políticas e planos internacionais,
sobretudo na América Latina, no sentido de uma maior efetividade,
transparência, participação e somatória de esforços de governos,
garantindo o envolvimento ativo da sociedade civil.
-
a necessidade
urgente de reconhecer as políticas de ajuste fiscal
como fonte de desigualdade social e obstáculo para o avanço da qualidade
em educação e a importância de encontrar outras alternativas.
-
o aumento urgente
dos investimentos em educação pública por meio da revisão dos termos da
dívida externa; da taxação da circulação do capital financeiro
internacional; da taxação do comércio de armas; do combate efetivo à
corrupção e do estímulo às políticas nacionais de tributação progressiva e
redistributiva.
-
a retirada
urgente da educação da pauta de negociação dos acordos internacionais
e bilaterais de comércio.
-
a regulamentação
do setor privado de educação.
-
a recomendação para
que os países orientem o financiamento educacional no sentido de
reconhecer e responder às diferentes necessidades nacionais e locais e
aos desafios da equidade (gênero, raça, etnia, situação econômica,
educação do campo, portadores de necessidades especiais, orientação sexual
etc) como condição para garantir a qualidade de educação.
-
o aprimoramento da
participação social nos processos e instâncias internacionais de
monitoramento, formulação e financiamento de planos e iniciativas,
garantindo o acesso à informação estratégica nos diferentes idiomas.
-
o resgate da função
social d@s educador@s, valorizando a profissão, sobretudo com
relação à piso salarial, carreira profissional, articulação e
aprimoramento das políticas de formação inicial e continuada e
participação efetiva d@s profissionais na definição das políticas
públicas.
Brasília, 9 de novembro de 2004.
Campanha
Global de Educação
Campanha Latino-americana pelo Direito à Educação
Conselho Internacional do Fórum Mundial de Educação
Campanha Nacional pelo Direito à Educação (Brasil) |
|
E as
demais redes, instituições e movimentos participantes da reunião da
sociedade civil: |
|
CEA -
Confederação dos Educadores da América
ICAE – Conselho Internacional de Pessoas Adultas
IEAL - Internacional de Educação da América Latina
Campanha Colombiana pelo Direito à Educação
Pronunciamento Latino-americano por Educação
para Todos
Repem – Rede de Educação Popular entre Mulheres
Save the Children Reino Unido
Plan Internacional
APTA/SP – Associação para a Prevenção e Tratamento de Aids e Saúde
Preventiva.
Fundación SES
Tarea
Undime – União Nacional dos Dirigentes Municipais
de Educação
CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores
em Educação
Sintet - TO
CONTEE
Sindiupes
Cepac-PI
Fetems
Eco Jovenes Bolívia
MIEIB – Movimento Interfórum de Educação Infantil
MIAC
Cedeca-CE
|
|
Centro de Cultura Luiz Freire
Ação Educativa
Uncme – União Nacional dos Conselhos
Municipais de Educação
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra
Instituto Paulo Freire
Instituto Sou da Paz
SERPA-PI
OMEP
Fórum de Educación de Bolívia
IDEAS – Argentina
Casa da Cultura – RJ
Ação Verde – TO
CEAAL
CDVHS
CONAM
CENAP
Fórum de EJA – RJ
Action Aid
IBISS
SINAIT
APP
Ceas
Cecodap – Venezuela
Ayuda en Acción |
|
Fonte: ANDES-SN, 22/11/2004. |