"O país do tudo bem"
As
histórias exemplares da mulher que defende o bandido e São duas senhoras entradas nos 50, com jeito de boas tias, ou de devotadas patronesses de bazares beneficentes. Uma delas apareceu na televisão, um dia desses, dizendo, num tom sofrido: "O Marcola? O Marcola é uma espécie de Jesus. Não faz nada, e apanha de todo lado". A outra tem sido vislumbrada brevemente ao ser transportada da prisão à Polícia Federal, para prestar depoimento. Ela está implicada no escândalo das ambulâncias, também conhecido como escândalo das sanguessugas. As duas, ambas de nome Maria, ilustram, cada uma de seu lado, facetas típicas do período que o país atravessa. A primeira é Maria Cristina Rachado. É a advogada flagrada quando comprava de um técnico de som os depoimentos secretos de dois delegados da polícia paulista na CPI do Tráfico de Armas da Câmara dos Deputados. Segundo ficou escancarado a partir desse episódio, ela advoga em favor de Marcola, o bandido tornado famoso desde a explosão de violência ocorrida em São Paulo. Maria Cristina Rachado estava na sala onde se realizaria a sessão da CPI em que deporiam os dois delegados. Ao lado dela, sentava-se outro advogado, Sérgio Weslei da Cunha. Ao notarem a presença deles, os delegados, que sabiam se tratar de advogados de bandidos, pediram que a sessão fosse secreta. Assim foi feito, com a retirada do público da sala. Terminada a sessão, Maria Cristina e Sérgio Wesley subornaram (por 200 reais) o técnico de som encarregado de gravar os depoimentos e conseguiram dele uma cópia da gravação. Isso foi só para refrescar a memória. O que se quer enfatizar aqui é o seguinte: Maria Cristina Rachado é casada com um delegado da polícia de São Paulo, José Augusto Rachado. Qual seja: a advogada do bandido número 1 do estado, tido como chefe supremo da organização criminosa/terrorista conhecida pela sigla PCC, partilha a casa, o leito e a vida com um agente da lei. Mas, vamos lá, nem bem esse é o ponto principal a enfatizar. O principal é que os dois delegados presentes à CPI, Godofredo Bittencourt e Ruy Ferraz Fontes, sabiam que Maria Cristina Rachado era advogada do bandido, tanto que pediram sua retirada da sala. Também sabiam que ela era casada com um delegado. Isso significa que era voz corrente, na polícia paulista, que uma mulher de delegado advogava para o mais graduado bandido do estado. E tudo bem? Mais recentemente, quando se soube que o delegado Rachado andou agindo em favor do advogado Sérgio Weslei, Rachado foi suspenso de suas funções, até que se apure o caso. Mas isso foi só recentemente. Durante um bom tempo, o casal Rachado atuou com desenvoltura, cada um em seu campo, em tese um a favor e o outro contra o bandido. E tudo bem? Tudo bem? A segunda senhora é Maria da Penha Lino, ex-assessora do ministro da Saúde encarregada de liberar as verbas para a aquisição de ambulâncias que, entre outros benefícios, rendiam uns trocados ao bolso de parlamentares. Uma empresa de Mato Grosso, a Planam, dedicada à venda de ambulâncias, fazia a intermediação entre municípios interessados em obtê-las e parlamentares que, por meio de emendas ao Orçamento, destinariam verbas federais para comprá-las. Maria da Penha, trabalhando diretamente com o ministro, liberava o dinheiro. As ambulâncias saíam a preços superfaturados, de modo a fazer sobrar algum para a Planam e algum para o parlamentar autor da emenda. Isso foi também para recapitular. O ponto, aqui, são os caminhos que levaram Maria da Penha Lino, sem a qual nada feito para os negócios da quadrilha, a implantar-se na ante-sala do ministro. O ministro, na época da nomeação dela, era Saraiva Felipe, deputado mineiro ungido na cota do PMDB. Ele diz que não escolheu Maria da Penha. Apenas atendeu a um pedido irrecusável do líder do PMDB na Câmara, Wilson Santiago. Wilson Santiago, por sua vez, diz que atendeu a um pedido irrecusável do deputado José Divino, destacado membro da bancada evangélica. Agora, note-se o seguinte: o último cargo de Maria da Penha, antes do ministério, foi na Planam. A mesma Planam que, segundo as investigações da Polícia Federal, arquitetou e comandou toda a negociata.
Mesmo admitindo-se,
com boa vontade, que nenhum dos três personagens que empurraram um para o
outro o ônus da indicação de Maria da Penha conhecesse os duvidosos
procedimentos da Planam, temos a situação seguinte: a funcionária de uma
empresa que vende ambulâncias troca o emprego pelo posto no governo que
compra ambulâncias. E tudo bem? Tudo bem? Esse é o primeiro ponto. Outro
ponto é que a articulação para a nomeação de Maria da Penha passa por um
ministro e pela liderança do PMDB na Câmara. Ou seja, por altos escalões do
partido. E tudo bem? Bom, claro que tudo bem. Tanto que o PMDB é cortejado
seguidamente pelo próprio presidente Lula, interessado em integrá-lo à sua
campanha reeleitoral. As duas Marias protagonizam histórias que contam, com
boa ênfase e exemplares enredos, o que já se sabia, ou seja: que este é o
país do tudo bem. Se é assim, então... então o quê? Então, tudo bem. Fonte: Rev. Veja, Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo, ed. 1959, 7/6/06. |