Dor e linguagem: em torno de Wittgenstein
Em uma série de aforismos, a partir do 244, Wittgenstein encontra na reflexão sobre a palavra “dor” um núcleo crucial para interrogar os limites de nossa reflexão sobre a linguagem. Existem vivências que poderiam, em princípio, ser partilhadas de maneira equivalente por diferentes seres humanos. No entanto, a essa expectativa se opõe a percepção de ser incompreendido pelos outros. O que se passa dentro do sujeito, em alguma medida, é inacessível ao outro. Se os homens partilham palavras convencionais, por que os mal-entendidos são comuns? Em sua dinâmica interrogativa, fragmentária e voltada criticamente para seus próprios fundamentos, a escrita de Wittgenstein elabora, em torno da palavra “dor”, a perturbação resultante do antagonismo entre a necessidade de integração com o outro e a vertigem do isolamento. Para vivências amenas e superficiais, somos capazes de criar taxonomias, e ensinar crianças a organizar suas relações com o mundo. Para o sofrimento interno, as sensações imprecisas, as palavras parecem escapar às suas finalidades sociais. No aforismo 302, Wittgenstein afirma “Se precisamos representar-nos a dor dos outros segundo o modelo de nossa própria dor, então isto não é uma coisa fácil: pois devo representar-me dores que não sinto, segundo dores que sinto.” Essa dificuldade pode suscitar uma projeção, em que não consigo compreender o outro fora dos parâmetros de minha própria vivência. Se ainda não passei pela vivência de uma sensação, o conceito abstrato que a designa não evoca lembranças suficientes para identificar o que se passa com o outro. Mais do que isso, o aforismo evoca a questão da especificidade do momento presente. Se o sujeito não vivencia nenhuma dor de imediato, a escuta da palavra “dor” da parte do outro pode ter atribuído um sentido muito diferente do esperado pelo outro. Pode ou não haver empatia. Pode ou não ser concedida atenção. O sujeito pode priorizar a si mesmo na orientação de seus interesses, de modo que seu grau de empatia com o outro pode variar, dependendo das suas próprias dores. As contribuições da literatura romântica ao tema antecedem historicamente as reflexões de Wittgenstein. Em escritores como Keats e Leopardi, a valorização da melancolia era crucial para a constituição do sujeito. A percepção da distância entre a finitude humana e o infinito do universo motiva a dor. A configuração estética da ironia, em que mortalidade e eternidade se confrontam, é a condição em que o sofrimento se encontra com o sublime. A construção teórica do inconsciente em Freud envolveu uma articulação entre a linguagem e o sofrimento. Nos sonhos, nos lapsos, em sintomas são manifestos elementos recalcados, que nos instabilizam e nos constituem. Com os traumas se delimitam contornos do ego. O emprego da linguagem é condicionado por essa dinâmica, contrariando a imagem segura do cogito cartesiano. No romantismo e na psicanálise encontramos reflexões importantes sobre as relações entre dor e linguagem, mais do que isso, sobre usos de linguagem que nascem da dor. A Segunda Guerra Mundial, arena em que o desentendimento entre os homens toma a proporção de genocídio e catástrofe, é o horizonte histórico dos estudos de Wittgenstein. Se o assunto aparecia nos românticos e em Freud, em Wittgenstein a relação entre dor e linguagem ganha uma nova escala de repercussão. À luz das Investigações filosóficas é acentuado o interesse pelos numerosos exemplos apresentados por Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros, de problemas contemporâneos ligados à violência. A autora reúne casos de fotografias e reportagens de televisão referentes à guerra, e discute em que medida sua exposição desperta apatia, ou conduz à exigência de mais violência. O livro de Sontag está centrado no problema da distinção entre a “minha dor” e a “dor dos outros”, e não se atreve a propor nenhuma conclusão didática, permanecendo no desassossego. Em certo ponto, na página 63 do livro, examinando um exemplo recente, a autora afirma: “o outro, mesmo quando não se trata de um inimigo, só é visto como alguém para ser visto, e não alguém (como nós) que também vê”. Com isso, a dor do sujeito é irredutível ao outro. Se fosse possível generalizar essa observação, poderíamos estabelecer a hipótese de que a relação contemporânea entre a mídia e a violência envolve, em larga medida, uma exigência de reflexão sobre o sofrimento. O maniqueísmo nesse ponto é arriscado. A mídia alega ter função esclarecedora, ser capaz de alertar, e mesmo de mobilizar. Por outro lado, sua presença pode eficientemente produzir condições para fortalecer preconceitos, ódios e ressentimentos coletivos. O problema do entendimento entre os seres humanos, pensado um a um, se articula com a exigência de interpretar, no campo da indústria cultural, as funções regressivas assumidas por segmentos das empresas de comunicação, em contribuição para a barbárie. Em ambos os pontos, é necessário discutir se o desentendimento é constitutivo das relações humanas. Os conflitos contemporâneos motivam a releitura atenta de Wittgenstein. Debruçado sobre temas como a mentira, o tempo, o espaço, a gramática, a pintura, a música, o filósofo perseguiu com intensidade as relações descontínuas entre linguagem e experiência. Nessa busca, o lugar ocupado pela dor é fundamental. A palavra “dor” não é a dor mesma; os referenciais interiores da palavra para o sujeito se distinguem dos referenciais adotados pelo outro; a confiabilidade limitada na palavra se vincula com uma confiabilidade limitada no outro. Nenhuma convenção social sobre o emprego da linguagem pode evitar que, sentindo dor, o sujeito se sinta incompreendido pelo outro. Como podemos elaborar a partir do aforismo 303, as relações humanas poderiam ser muito diferentes se fosse transparente a relação entre dor e linguagem, se sentíssemos a dor do outro ao ouvi-lo enunciando a palavra “dor”.
Edições consultadas:
SONTAG, Susan. Diante
da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
* Jaime Ginzburg é professor de literatura brasileira da FFLCH – USP e pesquisador do CNPq.
Fonte: Rev. ComCiência, SBPC, 10/5/2007. |