Economia
Negativas férreas da Índia e dos Estados Unidos enterram a Rodada Doha
Cinco anos atrás, a diplomacia brasileira decidiu apostar todas as suas fichas na Rodada Doha, um projeto ambicioso de abertura econômica, que envolvia os 153 integrantes da Organização Mundial do Comércio (OMC). Ao fazer essa opção, o Brasil congelou as negociações que mantinha com os dois pólos econômicos mais ricos do planeta, a União Européia e os Estados Unidos. Pelas diretrizes impostas no início do governo Lula, a prioridade deveria ser o estreitamento das relações com os países em desenvolvimento, que, unidos, teriam mais força para combater o protecionismo dos ricos. Na terça-feira passada, no entanto, a Rodada Doha entrou num beco sem saída à vista – e a diplomacia do governo Lula sofreu a sua maior derrota até aqui. O colapso das negociações deveu-se ironicamente à intransigência de um dos supostos aliados do Brasil, a Índia, que se negou a abrir mão de um dispositivo que protegeria ainda mais o seu já fechado mercado interno, lançando-se num desentendimento insolúvel com os Estados Unidos. Pelas regras da OMC, ou todos estão de acordo ou não há acordo. Não houve acordo. A rodada de negociações, que tinha como objetivo dirimir os obstáculos ao comércio mundial, foi lançada na capital do Catar, Doha (daí seu nome), há sete anos. Para o Brasil e outros grandes produtores agrícolas, a principal meta era fazer com que os países ricos diminuíssem os subsídios bilionários que eles concedem a seus agricultores, prejudicando os produtores de nações pobres. Apenas os americanos gastaram perto de 200 bilhões de dólares em ajuda a seus produtores rurais entre 1995 e 2007. Para reduzirem os subsídios, no entanto, a Europa e os Estados Unidos buscavam um maior acesso de seus produtos industrializados aos mercados emergentes. Inicialmente previsto para 2005, o fim da rodada acabou sendo postergado devido a sucessivos impasses. A OMC decidiu então convocar um encontro que seria definitivo, em que deveriam ser superados vinte obstáculos que emperravam o consenso. Depois de nove dias de conversas na sede da organização, em Genebra, os negociadores conseguiram superar dezoito barreiras. Tropeçaram na 19ª, que tratava das salvaguardas, um dispositivo destinado a proteger a economia de um país contra a invasão repentina de produtos importados. A maioria absoluta dos países aceitou que esse mecanismo só deveria ser usado quando houvesse um aumento de 40% nas importações. Já o ministro indiano do Comércio, Kamal Nath, permaneceu irredutível na defesa de que as salvaguardas poderiam ser usadas quando as importações subissem meros 10%. A China, outro suposto aliado brasileiro, também endossou a proposta indiana. Nath se defendeu lançando mão de um discurso anacrônico e populista: "Tinha de fazer o que era certo em defesa dos pobres dos países em desenvolvimento". Uma explicação mais plausível para sua atitude é sua pretensão de se tornar primeiro-ministro da Índia nas eleições do próximo ano. Houve tentativas de costurar uma saída para contornar as diferenças, e o Brasil chegou a se afastar de seus aliados tradicionais, como a Argentina e a China. Mas daí foi a vez de a negociadora americana, Susan Schwab, endurecer o jogo e não ceder. Acabavam assim, na tarde da terça-feira, sete anos de esforços para tornar o jogo do comércio global mais aberto e equilibrado. É verdade que não houve avanços, mas também não deverá ocorrer um retrocesso, como em situações do passado. Na virada do século XIX para o XX, o mundo, impulsionado pela Revolução Industrial, registrou uma fase de rápido crescimento do comércio. Mas depois do estouro da I Guerra Mundial, em 1914, os países começaram a se fechar e a abraçar medidas protecionistas. Com a Grande Depressão de 30, houve um estiolamento ainda maior das transações internacionais. Existe a possibilidade de isso ocorrer agora? "Creio que não. O comércio mundial é hoje muito mais livre e deverá seguir impulsionado pelos grandes países em desenvolvimento, como o Brasil e a China", disse a VEJA o economista Kenneth Rogoff, da Universidade Harvard. No fim, o Brasil saiu do episódio como um dos principais derrotados. Primeiro porque, com o acordo, teria muito a ganhar – as exportações poderiam crescer 15 bilhões de dólares ao ano, principalmente nas vendas externas de etanol e carnes. O país perdeu também pela sua estratégia comercial, de se dedicar exclusivamente a Doha. Para o advogado Eduardo Felipe Matias, especialista em direito internacional, a escolha do Brasil se revelou ingênua: "Temos um mundo em que o interesse local é preponderante, daí a dificuldade de se chegar a acordos multilaterais. Paralelamente às negociações da OMC, o governo deveria ter mantido conversas para tratados bilaterais". Esse será o caminho a trilhar agora, com atraso. Mas já se esperam dificuldades. Na avaliação do embaixador Rubens Barbosa, o primeiro empecilho reside no próprio Mercosul, corroído pela disputa entre seus membros, que não conseguem defender uma política comum. "É preciso flexibilizar algumas regras do Mercosul, para que o Brasil possa negociar acordos bilaterais. Hoje estamos engessados em uma camisa-de-força, porque todas as negociações precisam ser feitas em comum acordo com os demais países do bloco", afirma Barbosa. "Do contrário, o governo Lula corre o risco de encerrar o mandato sem ter fechado nenhum acordo comercial significativo." Sem retrocesso Selar o acordo da Rodada Doha seria ótimo, mas o colapso das negociações não significa, a princípio, nenhum retrocesso, e o comércio mundial deverá continuar em expansão. A análise é do economista americano Kenneth Rogoff, da Universidade Harvard. "O único risco seria uma guinada protecionista nos Estados Unidos", afirma. Um dos maiores especialistas em economia internacional da atualidade, Rogoff virá ao Brasil nesta semana para dar uma palestra no Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, na quarta-feira (6 de agosto). O economista falou ao editor Giuliano Guandalini. O fracasso da Rodada Doha representa um retrocesso na abertura comercial? Não creio. Independentemente de Doha, o mundo deverá seguir em seu caminho rumo a um ambiente de maior liberdade. Obviamente seria melhor ter um acordo agora, mas, no geral, o processo de abertura tem sido bastante positivo. O irônico é que os países emergentes, que seriam os mais favorecidos, são em diversos aspectos os que mais resistem. Todos os estudos sérios demonstram que, quando um país reduz unilateralmente as suas barreiras, ele se beneficia muito mais do que os seus parceiros comerciais. A competição internacional amplia a eficiência e reduz preços. O Brasil e a Índia, que ainda oferecem grandes barreiras às importações, teriam muito a ganhar, em termos de aumento de produtividade. Os Estados Unidos são um exemplo de que essa estratégia funciona. Exceto pelos subsídios agrícolas, a economia americana é uma das mais abertas do mundo – e tem se beneficiado enormemente disso. Como então interpretar a resistência à abertura? Em geral, fatores políticos, que nem sempre obedecem à lógica econômica, pautam essa resistência. Outro motivo é que a idéia de que um país ganha com a abertura comercial vai contra o senso comum, por isso ela nem sempre é bem-aceita. Por que os países ricos se negam a reduzir os subsídios agrícolas? O setor rural costuma ter uma representação desproporcionalmente favorável a ele nos parlamentos. Isso é verdade em diversos países, como o Japão. Veja o Congresso americano. Estados pequenos como Dakota do Sul, Dakota do Norte e Montana possuem, cada um deles, dois senadores, o mesmo que Nova York, o que dá a eles um enorme poder para influir em questões como a política agrícola. Esse tipo de distorção na representação de estados no Congresso é típico de países que passaram pelo processo de industrialização. Quando isso ocorre, a população tende a deixar o campo e migrar para as grandes cidades. Mas fica o legado de um equilíbrio de forças decidido no passado, quando o setor rural era o mais relevante. Existem também fatores simbólicos que levam ao protecionismo agrícola: os franceses, por exemplo, consideram os camponeses a alma de seu país. Nos Estados Unidos os agricultores também são vistos como uma espécie superior, o que não deixa de ser curioso, porque, quando olhamos para quem estão indo esses subsídios, vemos que eles na verdade chegam a grandes empresas agrícolas, com faturamento multibilionário. Logicamente os subsídios deveriam ser removidos. Mas, no fim das contas, o crescimento mundial demandará mais alimentos, e o Brasil certamente ganhará muito com isso, a despeito dos obstáculos existentes. A crise financeira pode tornar os países ricos mais protecionistas? A verdade é que os europeus já possuem instintos protecionistas bem aguçados, e o Japão continua a ser extremamente protecionista. Esses países se abrem à concorrência internacional esperneando e chorando, eles não fazem isso porque gostam. Nesse campo o papel de liderança tem sido exercido pelos Estados Unidos, que sempre foram o primeiro país a se mover na direção de maior abertura. Se pensarmos nas exportações asiáticas, elas dependem maciçamente do consumidor americano. Há cadeias de produção extensas, envolvendo diversos países, para fabricar um televisor ou outra mercadoria qualquer cujo destino acaba sendo os Estados Unidos. Aproximadamente 40% de todo o comércio mundial de manufaturados vai para o mercado americano, e isso tem sido ótimo para o crescimento mundial. No entanto, temo pelo que possa acontecer a partir de 2009. Existe uma crítica crescente ao aumento das importações nos Estados Unidos, e ganha força a idéia de que a classe média do país tem empobrecido em decorrência da exportação de empregos. Independentemente de quem ganhe as eleições presidenciais, Barack Obama ou John McCain, o Congresso que sairá das urnas será majoritariamente democrata, partido no qual as idéias protecionistas são mais arraigadas. Meu temor é que um Congresso democrata e um presidente democrata adotem uma agenda protecionista, o que certamente representaria um revés para o comércio global. Se esse for o caso, a esperança é que os grandes países em desenvolvimento – Brasil, China, Índia e Rússia – assumam a liderança e mantenham vivo o processo de abertura mundial. Existe o risco de ocorrer um grande retrocesso, como aquele visto depois da I Guerra Mundial? Na verdade, o grande refluxo do comércio internacional veio após a Grande Depressão de 30, quando os Estados Unidos elevaram drasticamente suas tarifas de importação e outros países retaliaram essa medida. As transações comerciais ficaram congeladas por praticamente três décadas. Penso que, desta vez, haverá bom senso e não veremos uma situação tão dramática como aquela. Mas sempre existe o risco. Fonte: Rev. Veja, Giuliano Guandalini, ed. 2072, 6/8/08.
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