Pelo
direito à ruindade
"Se
o aluno não está em universidade melhor, é sinal de que não tem condições
intelectuais
Já virou clichê afirmar que a educação é uma das ferramentas estratégicas mais importantes – provavelmente a mais importante – para um povo que queira se desenvolver nos dias que correm. Algumas pesquisas da década de 90, olhando para o crescimento econômico dos trinta anos anteriores, apontavam que a educação secundária era significativa para o crescimento, mas não a primária. É muito provável que os pesquisadores de 2040 identifiquem o ensino superior, e não mais o secundário, como a variável relevante para explicar o desenvolvimento dos países no começo deste milênio. Nos países mais avançados, a educação secundária já foi massificada há tempo, e vários desses países caminham rapidamente para 100% de matrícula no ensino universitário. Segundo os últimos dados da Unesco, a Coréia e a Finlândia já passaram dos 90%; a Suécia, a Dinamarca, os Estados Unidos e a Nova Zelândia já superaram os 80%. A média dos países da América do Norte e da Europa está em 70%. É no nível de ensino superior, portanto, que os países cada vez mais se diferenciarão. Esse é um fenômeno recente, ocorrido nos últimos 25 anos. Os países que buscavam o desenvolvimento rápido entenderam que a qualificação de suas populações era um caminho obrigatório e trataram de criar mecanismos que permitissem a massificação do conhecimento em seu nível mais alto. Entre 1980 e 1997, por exemplo, a Coréia aumentou sua taxa de matrícula universitária em 353%, a Turquia em 320%, Portugal em 255%, e assim por diante. O resultado é que vários países, inclusive aqueles que partiram de um patamar muito baixo, chegaram aos dias de hoje em condições de sonhar. O Chile, por exemplo, tem atualmente 48% dos seus alunos em idade universitária no ensino superior. O Líbano tem 46%. O Panamá tem 44%, o Uruguai tem 42%, a Venezuela tem 41%. A China vem assombrando o mundo com a rapidez da sua ascensão: de 6% de matriculados em 1999, passou para 22% em 2006. O Brasil foi mais uma vez a exceção negativa. Apesar de termos universidades tradicionais, no período 1980-1997 aumentamos nossa matrícula em apenas 36%, e mesmo o crescimento acelerado nos últimos dez anos ainda nos deixa com apenas 24% de matrícula no ensino superior. Praticamente um terço dos países desenvolvidos e metade de vários dos nossos vizinhos continentais, portanto. Estagnamos por três razões. A primeira é a péssima qualidade da educação básica, que gera um número pequeno de concluintes aptos a entrar no ensino superior. A segunda é o estrangulamento do modelo financeiro: as universidades públicas brasileiras estão entre as mais caras do mundo e sua replicação em escala é inviável, e falta renda na população para custear mais ensino privado. Finalmente, faltavam até há pouco opções de cursos superiores mais adaptadas às demandas desse novo contingente de estudantes, que querem programas mais curtos e mais direcionados às necessidades do mercado de trabalho, sem ter interesse em uma formação acadêmica, humanista. Nos países desenvolvidos, entre 15% e 30% da matrícula costuma ser nesses cursos mais curtos e profissionalizantes, contra 4% no Brasil. Em um cenário como esse, de tremenda defasagem do Brasil em relação ao resto do mundo, deveríamos estar correndo a todo o vapor para recuperar o tempo perdido, focando na melhoria do ensino básico, na expansão das vagas em universidades públicas, na criação de mecanismos de financiamento das universidades privadas e em campanhas antievasão dos alunos já matriculados. Causa estranheza e certo desalento, portanto, que nesse cenário o Ministério da Educação tenha iniciado uma campanha para monitorar e eventualmente fechar os cursos de baixa avaliação institucional, primeiro na área de direito, agora na área de pedagogia. A ação parte do pressuposto de que esses maus cursos são uma arapuca, que enganam seus alunos oferecendo um ensino que não os prepara para nada. Seriam meras fábricas de diploma, prejudicando seus alunos e pondo em risco a sociedade atendida por seus formandos. É mais um caso do viés ideológico antiliberal contaminando uma área estratégica para o país. A idéia de que os alunos são enganados não se sustenta. Quem está em idade universitária e já passou por todo o sistema de ensino, e trabalha para poder pagar suas mensalidades (dos sessenta cursos de pedagogia, 57 são privados; todos os oitenta de direito também), não é exatamente um ingênuo, uma criança perdida. Todas as instituições brasileiras passam por um amplo processo de avaliação, tanto externa como por meio de exames feitos pelos próprios alunos, e seus resultados estão disponíveis na internet. Quando um aluno se matricula em um curso barato de uma instituição de pouco prestígio, ele não está atrás de uma posição de presidente de empresa ou de eminência intelectual: ele quer subir um pouco na vida, ganhar um pouco mais. Como em qualquer área, há serviços melhores e piores, com preços correspondentes. Se o aluno não está em universidade melhor, é sinal de que não tem condições intelectuais ou financeiras de chegar lá. Sem a universidade ruim, esse aluno não cursará faculdade alguma. A pergunta que faz sentido não é se seria melhor para esse aluno e para o país que ele cursasse a USP ou a faculdade da esquina. A pergunta certa: é melhor que ele curse a faculdade da esquina ou faculdade nenhuma? A resposta a essa pergunta é dada de forma categórica pelo mercado de trabalho. Uma pessoa com ensino superior concluído ganha cerca de três vezes mais do que outra que tenha cursado apenas alguns anos do ensino superior, e quase cinco vezes mais do que aquela que cursou somente o ensino secundário. Estudo recente aponta que a taxa de retorno a um diplomado de ensino superior – isto é, o aumento salarial decorrente desse nível de estudo, descontado o seu custo – é de incríveis 19% a 20% ao ano. Educação superior, no Brasil, é melhor do que qualquer investimento – e não precisa ser economista para ter esse conhecimento intuitivo. A idéia de que universidades, ou o sistema escolar como um todo, possam ser meras fábricas de diplomas é antiga. Sua formulação acadêmica já surgia na década de 70. Faz sentido imaginar que um empregador busque, no meio da incerteza do mercado de trabalho, um indicador para garantir a competência e a confiabilidade do futuro empregado. Um diploma seria esse indicador. A escola não agregaria muito em termos de conteúdo, mas seria mera ferramenta de sinalização, como que dizendo: "pode me contratar. Eu passei dez anos sem bater nas minhas professoras quando tirava nota baixa nem ficar pelado cada vez que me sentia atraído por uma coleguinha. Não vou espancá-lo se não me der um aumento, nem lhe causar processos de assédio sexual". Se essa hipótese fosse correta, os salários das pessoas – com diploma e sem – tenderiam a seguir um padrão aleatório ao longo do tempo, à medida que a produtividade de cada uma determinasse seus ganhos. Em realidade, acontece exatamente o oposto: não só as pessoas com maior instrução recebem maiores salários ao longo de toda a vida como a diferença entre os com e os sem-instrução aumenta com o passar dos anos. O mercado de trabalho não paga maiores salários aos mais instruídos pela beleza do seu diploma: paga mais porque essas pessoas vêm mais preparadas e aprendem mais com a sua experiência profissional. As reportagens e editoriais que reclamam dos bacharéis que viram donos de armazém cometem erro duplo: primeiro, ao retratarem a exceção como se fosse regra; segundo, por não entenderem que é preferível para o país ter um balconista com diploma superior a outro analfabeto. Os alunos que cursam faculdades ruins não estão sendo enganados nem vitimados. Estão dando duro para galgar o seu degrau na escada social, com poucos recursos e tendo como ponto de partida uma péssima educação de base.
O estado não precisa
proteger o cidadão de si mesmo. Melhor seria se o protegesse da inépcia do
próprio governo. Teríamos um país muito melhor se nossos líderes voltassem
sua atenção para melhorar a área que lhes compete – a educação básica e as
universidades públicas – em vez de se preocuparem em limitar a oferta de um
serviço já fiscalizado pelo MEC e controlado pelo mercado. * Gustavo Ioschpe é economista. Fonte: Rev. Veja, ed. 2047, 13/2/2008.
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