BRASIL E
EQUADOR
Experiências do governo Lula no Brasil e da administração Gutiérrez no
A vitória de Evo Morales na Bolívia, no final do ano passado, inaugurou um calendário eleitoral na América Latina que quando chegar a seu final, com o pleito na Argentina em abril de 2007, pode ampliar o número de governos de esquerda ou progressistas existentes hoje no continente. Até lá, também estão marcadas eleições presidenciais no Brasil, México, Peru e Venezuela, onde, não obstante as diversas colorações ideológicas, setores políticos críticos à avalanche neoliberal dos anos 90 têm boas chances de se manter ou conquistar o poder. Essa conjuntura aparentemente poderia ser motivo de comemoração para os movimentos populares latino-americanos, mas não foi esse o tom das intervenções feitas por lideranças sociais que participaram do seminário “Crise Hegemônica na América Latina e Pós-neoliberalismo”, encerrado sexta-feira (17) na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). O encontro, que reuniu intelectuais e ativistas de vários países do continente, foi promovido pelo Laboratório de Políticas Públicas (LPP) e pela Fundación por la Europa de los Ciudadanos, com transmissão pela TV Carta Maior. Na raiz do problema, está a decepção com as experiências eleitorais recente de partidos e setores políticos que, inicialmente apoiados por movimentos sociais, imprimiram rumos a seus governos distintos dos acordados durante as campanhas. Pelo menos este é o caso do Equador, cuja conjuntura foi analisada por Pablo Dávalos, militante do movimento indígena e membro do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, e do Brasil, segundo o coordenador do MST Gilmar Mauro. “Uma parte da esquerda parte do pressuposto de que o Estado será o principal agente das mudanças, o engenheiro da transformação social, e que nossa tarefa é eleger um bom maquinista, para ele promover as mudanças na sociedade. Essa metáfora é corrente. Mas eu não acho que mudança nenhuma vem de cima para baixo”, disse Mauro. Para ele, a presença de um governante progressista pode abrir portas e pavimentar caminhos, mas a tarefa de construção de uma plataforma de transformação social tem de ser feita pela classe trabalhadora. Citando Karl Marx diversas vezes, o dirigente do MST afirmou que não nega a relevância de partidos políticos, que seriam importantes instrumentos para se realizar a transformação social. Mas, além de eles historicamente se afastarem dos movimentos sociais que os sustentam, quando conquistam o governo, jamais poderiam assumir uma tarefa que cabe aos trabalhadores. “Nenhum partido pode substituir a classe. As mudanças ou são feitas pela classe trabalhadora ou não se sustentam”, apontou. Essa experiência vale para o Brasil de hoje, onde o presidente Lula e o PT chegaram ao governo federal com apoio do MST. Uma vez no comando do Executivo, esperava-se que a reforma agrária fosse acelerada pelos petistas, mas não foi isso o que ocorreu. Segundo Gilmar Mauro, os obstáculos vão além da disputa de poder dentro do governo, e passam por questões mais amplas como a própria “estrutura econômica”. Nesse caso, avalia Mauro, os trabalhadores se defrontam, desde os anos 60, com a implantação de políticas neoliberais, cujo objetivo seria a destruição da própria classe trabalhadora e de sua identidade comum. Por isso, o dirigente do MST avalia como incongruente qualquer tentativa de partidos de esquerda ou movimentos sociais se aliarem a uma burguesia, ainda que ela se diga “nacional”. “Não vejo setor burguês que queira fazer acordo para derrotar neoliberalismo. Por isso a aliança tem de ser a partir da luta dos trabalhadores, uma luta que é de médio e longo prazo. O grande desafio dos movimentos sociais é avançar na perspectiva de contrução do poder popular”, disse Gilmar Mauro, elogiando o projeto de conselhos populares criado pela prefeitura petista em Fortaleza. LUTA INDÍGENA Se no Brasil a relação entre o governo Lula e os movimentos sociais é contraditória, variando entre a contestação e o apoio, no Equador a história é de um rompimento dramático. Segundo Pablo Dávalos, a experiência recente do movimento indígena, o principal grupo popular organizado de seu país, com o poder político tradicional foi de tal maneira traumática que hoje se vive uma fase de afastamento e reconstrução. A última experiência negativa ocorreu com a vitória de Lucio Gutiérrez nas eleições presidenciais de 2003, que venceu com apoio dos indígenas, nomeou representantes desse grupo para o ministério – inclusive Dávalos, que foi vice-ministro das Finanças –, mas logo em seguida declarou-se "aliado" dos Estados Unidos no continente e assinou um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). “Caímos no conto da democracia burguesa. Pensamos que a via eleitoral era suficiente para mudar o poder, mas o poder era mais denso”, comentou o cientista social. Apesar da decepção, Dávalos diz que o movimento indígena equatoriano é o mais representativo do país e está se articulando. A própria queda de Gutiérrez, em 2005, sob pressão dos indígenas, é prova disso. “Desde 1996 tivemos sete presidentes, que deveriam ter governado por quatro anos. Devemos isso à luta do movimento indígena”, disse ele. E essa história de derrota e posterior superação não é novidade entre os indígenas do Equador. Segundo Dávalos, em outros dois momentos recentes o movimento obteve vitórias políticas, perdeu o controle da situação e teve de se reorganizar. Primeiro aconteceu em 1998, quando a realização de uma Assembléia Constituinte, defendida pelos próprios movimentos, assegurou direitos coletivos aos indígenas, mas ao mesmo tempo retirou do texto constitucional travas que haviam contra o avanço do neoliberalismo no país, como a privatização de empresas públicas. “Achávamos que tínhamos vencido com a realização da Assembléia, mas na verdade perdemos, porque não sabíamos manejar o sistema político”, admitiu Dávalos. Fato semelhante ocorreu em 2001, quando os indígenas se articularam para derrubar o presidente Jamil Mahuad e seu programa de ajuste econômico imposto pelo FMI. Mahuad caiu, mas a dolarização da economia permanece até hoje, prejudicando o desenvolvimento econômico equatoriano. Mais uma vez, como diz Dávalos, os indígenas obtiveram uma vitória, seguida por derrota e posterior rearticulação. Nesse processo, eles não abrem mão de uma pauta: a construção de um Estado plurinacional. No Equador, as legislações ainda não reconhecem muitas das peculiaridades dos povos indígenas. A Constituição de 1998 apenas amenizou isso. “Os indígenas pensam de maneira diferente, se relacionam com a natureza de maneira diferente e querem um Estado que os respeite”, diz o cientista social. Mas esse processo, para ter sucesso, não pode ser detonado mais a partir da via eleitoral, mas sim da mobilização social. Então, diz Dávalos, será possível discutir temas centrais para o Equador, como a dolarização, a pobreza, os tratados de livre-comércio, a plurinacionalidade do Estado, que costumam não servir de pauta para as campanhas eleitorais. SOCIALISMO BOLIVIANO Ao contrário de Brasil e Equador, a Bolívia talvez apresente um quadro mais favorável para a relação entre a luta dos movimentos sociais e o processo partidário-eleitoral. O governo do líder cocaleiro e sindicalista Evo Morales, o primeiro indígena a eleger-se presidente no país, gera a expectativa de que uma agenda de mudança social possa ser implantada sem grandes concessões à burguesia nacional. No entanto, segundo a comunicadora Shirley Orozco, que estuda o Movimento ao Socialismo, o partido de Morales, a vitória eleitoral é resultado de um processo de organização social iniciado nos anos 80 pelo movimento indígena. Um dos motivos foi o avanço das políticas de destruição da cultura da coca, patrocinada pelos Estados Unidos com a justificativa de combater o narcotráfico. “Havia pressão para que se substituísse a coca por outros produtos, como banana e abacaxi, mas não havia muito apoio para os produtores”, diz Orozco. Nessa época, indígenas e cocaleiros aperfeiçoaram suas táticas de resistência, como os bloqueios de rodovias e greves de fome. Em 1996, o movimento sindical, os camponeses e os indígenas finalmente convergiram na construção da Assembléia pela Soberania dos Povos, que serviu de articuladora política para os movimentos sociais. Mais próximos, puderam obter vitórias importantes contra o avanço das políticas neoliberais nos anos 90 e na década seguinte, com a chamada “guerra da água” em Cochabamba, quando a população local se revoltou contra a privatização desses serviços, e da “guerra do gás” em El Alto. Ao mesmo tempo, diz Shirley, não se descuidou da via eleitoral e a constituição do MAS, a partir do final dos anos 90, trouxe uma possibilidade de luta distinta da dos partidos tradicionais de esquerda. “Internamente, o MAS está organizado numa dualidade. Por um lado temos organizações sociais, como os cocaleiros, mas também há uma estrutura institucionalizada, departamental, que se estabelece em alguns momentos, como na campanha eleitoral, mas depois se dissolve”, explica Orozco. Entretanto, uma vez o MAS no governo, a dirigente avalia surgem uma série de desafios para que o governo não se distancie das demandas dos movimentos sociais que o ajudaram a se eleger. “As demandas de grupo e corporativas não devem se sobrepor às demandas nacionais. Temos de manter associações de classe entre os movimentos, realizar a assembléia constituinte, construir um Estado multicultural, garantir formação de quadros, nacionalizar de hidrocarbonetos, lutar contra o clientelismo e a corrupção, e devolver ao Estado o papel gestor da economia. Enfim, é trabalho para muitos anos”, diz ela.
É essa pauta que a
Bolívia tem em mãos para tentar escrever uma história diferente da de Brasil
e Equador. Fonte: Ag. Carta Maior, Marcel Gomes, RJ, 18/02/2006. |