O custo social da dívida brasileira

 

Dinheiro usado com juros poderia assentar 16 milhões de sem-terra e duplicar gastos com saúde e educação; dos 815 contratos da dívida pública, apenas 238 têm prova documental no Senado

O pagamento antecipado da dívida externa no valor de R$ 15,5 bilhões em dezembro de 2005, pelo governo federal, foi divulgado como um ato inédito que levaria o país a economizar 900 bilhões de dólares, em juros até 2007, prazo que o país tinha para quitar esta quantia. Ledo engano.

Os números registrados pela a economia até este momento não confirmaram a expectativa do governo. Ocorre que, para pagar

adiantado, o Banco Central comprou dólares no mercado financeiro, elevando o endividamento interno do país. Eu entendo que medida foi mais simbólica e política do que tecnicamente racional. Pagamos uma dívida que iria vencer em dois anos. Essa dívida tinha um custo baixo de juros comparado aos juros da dívida interna. Mas entendo que por simbolismo, para deixar claro que não devemos mais para o Fundo Monetário Internacional, faz sentido, mesmo que isso não seja verdade", avalia o economista da Universidade Estadual de Campinas, Márcio Pochman.

A conseqüência dessa opção foi um crescimento das despesas com as dívidas corrigidas pela taxa Selic, os juros médios da economia que seguem sendo os maiores do planeta, apesar das sucessivas reduções promovidas pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central (Copom) (Leia mais sobre os juros no quadro). Em toda essa engenharia financeira, quem paga o preço é a classe mais pobre, a que mais sofre com a prioridade que o Estado dá ao pagamento da dívida em detrimento do investimento em áreas sociais.

Menos para o social

Para pagar os juros da dívida interna, o governo corta seus investimentos. Neste ano, os gastos em educação tiveram a redução de R$ 561 milhões, na área da saúde não foi diferente, a área que é uma das principais deficiências no país, terá uma redução de R$ 548 milhões.

Em 2005, foram destinados apenas R$ 4 bilhões para a reforma agrária e menos de R$ 16 bilhões para a educação. No entanto, com a dívida pública, foram gastos R$ 139 bilhões. A previsão é de que, nos quatro anos do governo Luiz Inácio Lula da Silva, mais de R$ 700 bilhões tenham sido consumidos pela dívida pública (interna e externa), sem reduzí-la. Em dezembro de 2005, a dívida pública alcançou R$ 1 trilhão. Nos últimos meses, teve um crescimento de mais de R$ 150 bilhões.

O valor gasto nos quatro anos seria o suficiente para assentar cerca de 4 milhões de famílias sem-terra (16 milhões de pessoas) e duplicar os gastos previsto no orçamento da união com saúde e educação, de acordo com a Rede Jubileu Sul, que desde 2001 é responsável pela campanha de auditoria cidadã da dívida. Ou seja, seria possível eliminar parte da dívida social do Estado brasileiro com seus cidadãos.

"No ano passado, até o programa Fome Zero sofreu cortes para que se produzisse a tal economia de recursos, para se cumprir a meta do superávit primário. Essa dívida está amarrando toda a nossa economia. Estamos em uma armadilha", analisa Maria Lúcia Fatorelli, vice-presidente da Unafisco (sindicato nacional dos auditores fiscais) e coordenadora da campanha auditoria cidadã da dívida.

Estado desequilibrado

Para conseguir honrar esses compromissos, além de se endividar mais e cortar recursos de seu orçamento (o superávit primário), o governo estimula as exportações e gera receita em dólares. No entanto, políticas pautadas por esse objetivo aprofundam a desigualdade. Um exemplo é o apoio dado pelo governo ao agronegócio em detrimento da agricultura familiar.

Outra política prejudicial é o crescente aumento da carga tributária. No Brasil, mais de 60% dos tributos incidem sobre o consumo e são cobrados até mesmo nos bens de primeira necessidade, como leite. Em países menos desiguais, o imposto maior incide sobre a renda e não sobre o consumo. Ou seja, varia de acordo com o poder aquisitivo de cada um, o que representa uma cobrança equilibrada, proporcional.

"A justificativa que os governos têm para todas as reformas neoliberais apresentadas, como a da Previdência, e até para as privatizações lançadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso é de pagar a dívida para os juros caírem. Nada disso ocorreu", critica Maria Lúcia Fatorelli. Segundo ela, a justificativa enganosa manipula a sociedade para que assuma esse modelo: "Se falarem a verdade, que esse modelo prejudica a sociedade, compromete o futuro do país e entrega nossa soberania, a sociedade vai gritar", considera Fatorelli.


Um endividamento sob suspeita

De 815 contratos da dívida pública brasileira, apenas 238 foram encontrados no Senado Federal, como obriga a Constituição. Esse levantamento foi um dos resultados do trabalho desenvolvido pela Campanha Auditoria Cidadã da Dívida desde o plebiscito popular realizado em 2000. Na ocasião, 6 milhões de pessoas votaram pela realização de uma auditoria da dívida. Porém, enquanto a auditoria oficial da dívida, prevista no artigo 26 da Constituição Federal, não é realizada, a Rede Jubileu iniciou um processo paralelo, a partir do reforço de mais de 40 entidades, que buscam resgatar documentos e analisar o processo de endividamento brasileiro.

Este ano, a auditoria cidadã formou um conselho político, que teve como primeira ação a busca e a análise dos contratos de endividamento externo no Senado Federal. Além de contratos não encontrados, a Campanha contabiliza que, de 1978 até 2005, foi feita uma transferência líquida de 241,7 bilhões de dólares. Isso é o que o Brasil pagou a mais do que recebeu do exterior. "Mesmo assim, em 2005, a dívida alcançou 188 bilhões de dólares. Pegando os números do próprio Banco Central, essa conta não fecha. Por isso, questionamos a legitimidade da dívida. Somente aprofundando essa auditoria para rever esse processo, pois estamos sofrendo uma subtração de recursos que está sacrificando nossa sociedade", explica Maria Lúcia Fatorelli, coordenadora da campanha.

Além da investigação nos contratos da dívida externa, a Campanha também aguarda a decisão para uma ação judicial promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que exige do Congresso Nacional a realização da auditoria. Uma frente parlamentar também foi formada, mas espera a leitura do relatório. (GB)


Avanços da auditoria cidadão da dívida

. Resgate dos documentos das comissões que analisaram o problema no Congresso Nacional, em 1987 e 1989

. Análise e denúncia do erro anunciado pelo Banco Central em 2001, na contabilidade da dívida

. Publicação de cartilhas de 2000 até este ano e organização do livro Auditoria da dívida externa: questão de soberania, em 2003.

. Compilação de argumentos jurídicos que embasam o não pagamento da dívida e estudos sobre o "risco país"

. Atuação junto à frente parlamentar de acompanhamento da dívida, que obteve as assinaturas necessárias para instalação de frente sobre a auditoria

. Estudo sobre a experiência da auditoria em 1931

 
Por que os juros altos?

A dívida pública brasileira é composta por títulos com pagamento de longo, médio e curto prazo. Nos papéis com vencimentos mais imediatos, os donos desses títulos têm grande autonomia para impor ou não aceitar taxas de juros de custos baixos.

Essa pressão do mercado financeiro, de certa forma, acaba direcionando a política econômica do governo federal, que precisa fixar juros elevados para atrair o recurso externo e , assim, prestar conta do serviço (juros e amortizações) dessa dívida que, nos últimos anos, tem representado 8% do Produto Interno Bruto (PIB).

Ao final de junho, a dívida total do setor público aumentou R$ 5,52 bilhões, somando R$ 1,024 trilhão, o que representa cerca de 50% do PIB.
 

A ampliação da desigualdade

Aprovado somente em maio deste ano, o contingenciamento de recursos no Orçamento da União em 2006 (ou seja, a economia feita para pagar juros e serviço da dívida) foi de R$ 37,5 bilhões. O número é quase quatro vezes maior do que o de 2005, R$ 9,9 bilhões.

Embora o discurso seja de manutenção dos programas sociais, o governo determinou um corte de R$ 2,82 bilhões nas verbas de custeio e investimento dos sete ministérios da área. A suspensão dos gastos foi necessária para acomodar uma elevação das despesas obrigatórias em R$ 11,6 bilhões e um aumento da meta de superávit primário.

"Consideramos que 20% do gasto público no Brasil estão orientados para pagamentos financeiros, são gastos improdutivos, não geram emprego. Na verdade, geram uma concentração de recursos enormes. Se nós olharmos a composição dos detentores dos títulos públicos, verificaremos que é um segmento ínfimo da sociedade brasileira – 20 mil clãs de famílias no Brasil concentram algo equivalente a 70% dos títulos da dívida pública. Então, temos uma quantidade expressiva de recursos, servindo para o aumento e concentração da própria riqueza", diz Márcio Pochman, economista da Universidade Estadual de Campinas.
 

Fonte: Ag. BrasildeFato, Gisele Barbieri, 01/08/2006


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