A crise política e quatro possíveis lições
A crise política que atingiu o PT e o governo Lula em 2005 já foi objeto de muitos artigos, matérias, teses e hipóteses. O maior partido da esquerda brasileiro atravessou o inferno astral de sua existência e ainda está em fase de elaboração sobre o que aconteceu. Há um consenso, entre todos aqueles que pretendem tirar lições da crise, que não é possível fingir que não aconteceu o que aconteceu e que, portanto, deve-se refletir e tentar investigar suas causas mais profundas. Uma boa contribuição neste sentido é o livro “Leituras da Crise – Diálogos sobre o PT, a democracia brasileira e o socialismo”, uma coletânea de entrevistas publicada pela Fundação Perseu Abramo e coordenada por Juarez Guimarães, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e editor do boletim eletrônico mensal “Periscópio”, da Perseu Abramo. Guimarães escolheu quatro entrevistados para falar sobre a crise política: Marilena Chauí, professora da Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), João Pedro Stédile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Wanderley Guilherme dos Santos, professor titular de Teoria Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Leonardo Boff, escritor, e um dos principais nomes da Teologia da Libertação. São quatro olhares diferentes sobre a crise. Diferentes porque partem de lugares distintos e procuram lançar alguma luz sobre aspectos distintos da mesma. Na avaliação de Juarez Guimarães, o livro fornece talvez “a melhor reflexão pública que se produziu sobre a crise vivida pela democracia brasileira em 2005 e os caminhos para superá-la. Defendendo que “a inteligência crítica é companheira inseparável da esperança”, Guimarães acredita que o livro representa um instrumento valioso para pensar sobre o que aconteceu e para evitar que velhos erros se repitam. Cada um dos entrevistados procura extrair lições da crise. Em cada uma das quatro análises há pelo menos um importante ensinamento sobre o que aconteceu se seus desdobramentos no presente. “A sociedade brasileira vive uma crise de destino, uma crise de projeto. Não basta o governo ficar respondendo se há ou não corrupção. O que é importante é o governo recuperar o debate na sociedade sobre a necessidade de um novo modelo econômico para o país”, defende João Pedro Stédile. “O PT está no meio da parte mais substancial da problemática do país no curto e médio prazo. “Qual é a versão que o principal partido da mudança no Brasil, que se chama Partido dos Trabalhadores, tem a respeito de si próprio nas suas relações com o mundo privado?”, interroga Wanderley Guilherme Guimarães. “Não pode existir uma ética petista própria e separada de uma construção democrática e republicana das instituições brasileiras”, sustenta Marilena Chauí. “Vale a pena investir esperança no resgate do PT, bebendo do capital de esperança que não se esgota no PT e, por isso, não deixa que a crise vire uma tragédia”, propõe Leonardo Boff. ORIGENS DA CRISE: VOLTANDO A 1989 Para João Pedro Stédile, as origens da crise remontam a 1989, quando Lula foi derrotado por Collor de Mello nas eleições presidenciais. “A eleição de 1989 é enigmática por que só agora compreendemos que ali decidimos um momento da nossa história e a nossa derrota política produziu um descenso do movimento de massas que tem reflexos até hoje”. Outro efeito daquela derrota foi uma profunda mudança dentro do PT que, a partir das eleições seguintes, adotaria sucessivas flexibilizações táticas e programáticas. Stédile descreve do seguinte modo o ápice deste processo: “Nas eleições de 2002 tivemos um problema do ponto de vista das esquerdas, já que o controle da campanha eleitoral de Lula foi hegemonizado por uma visão de ganhar as eleições a qualquer preço, e para isso se priorizaram as formas de marketing político, todo tipo de aliança partidária eleitoral, e não se priorizou – até se desdenhou – um debate com a sociedade brasileira sobre que projeto alternativo teríamos necessidade de discutir para colocar no lugar do neoliberalismo”. O resultado disso, acrescenta, foi que “ganhamos as eleições, mas ganhamos num quadro de disputa eleitoral rebaixado politicamente, em que não houve um debate do projeto”. Em um primeiro momento, observa ainda Stédile, dizia-se que a manutenção das políticas neoliberais era transitória. Mas após alguns meses “percebemos que aquela política não era transitória, mas que havia uma decisão de manter uma política econômica neoliberal”. A partir dessa avaliação, Stédile considera que a verdadeira natureza da crise política não está no terreno da ética. “Era, na verdade, uma disputa que se estava travando entre as classes dominantes brasileiras que tentavam transformar o governo Lula em refém das políticas neoliberais”. E acrescenta: “não basta o governo ficar respondendo se há ou não corrupção – isso é secundário nesta altura da luta de classes. O que é importante é o governo recuperar o debate na sociedade sobre a necessidade de um novo modelo econômico para o país”. Mas o coordenador do MST também vê elementos mais profundos entre os fatores causadores da crise política. “A sociedade brasileira vive uma crise de destino, uma crise de projeto”. Para Stédile, a crise é econômica, política e de valores. “A economia brasileira não está crescendo, nem mesmo do ponto de vista capitalista; a economia brasileira não está produzindo a solução para as necessidades do povo brasileiro” (...). “Há uma crise das práticas políticas dos partidos, em especial os de esquerda – nem vou falar dos da direita porque eles não refletem nem a vontade da classe dominante. E há uma crise ideológica na sociedade brasileira, não naquele sentido de utopias, mas no sentido de que as pessoas não se mobilizam mais em torno de valores, as pessoas estão lutando pela sobrevivência, e isso afeta o povo, na base, os militantes e os dirigentes. Essa crise ideológica de valores talvez seja uma das conseqüências mais graves do neoliberalismo”, diagnostica. LUTA NUA E CRUA PELO PODER Na avaliação do professor Wanderley Guilherme dos Santos, a crise traduziu-se, essencialmente, em uma disputa pelo poder político sem guardar relação com uma suposta disputa entre grupos econômicos do país. “É um dos casos raros em que se vê a luta nua e crua pelo poder, estritamente pelo poder. Subsidiariamente, é evidente que não havia nenhum interesse econômico envolvido nesta tentativa, tanto assim que em nenhum momento esse movimento estritamente político contou com a aprovação pública, irrestrita ou explícita de nenhum segmento da economia brasileira. Este foi um movimento estritamente de partidos fora do poder”, defende. Segundo ele, que houve foi “um caso estritamente de tentativa de golpe por parte de forças políticas fora do poder”. “Ambição de poder clara, somente isso”, resume. Os principais setores econômicos, reforça, mantiveram-se totalmente neutros em relação ao que estava ocorrendo. Ele critica o comportamento dos dois maiores partidos de oposição, PSDB e PFL, e fala da existência de uma “retórica da jagunçagem”. “A linguagem política atual recorda os tempos da Primeira República, em que os verbos, as imagens, as analogias eram muito fortes”. E faz um paralelo sobre o comportamento do PT durante o governo FHC e o da oposição agora no governo Lula. “O PT, quando na oposição dizia ‘Fora FHC’, não só não tinha força como não tinha legitimidade para pedir aquilo, não teve mandato para fazer aquele pedido. Outra coisa é quando um PSDB, um PFL se juntam no Parlamento para acusar o presidente de atos ilícitos sem nenhuma evidência concreta. Esses dois partidos não podem se permitir essa leviandade porque têm um mandato muito comprometido com uma parte expressiva da opinião pública. Então, é precisamente porque se trata de partidos com expressão séria na sociedade brasileira que não podem se permitir esse tipo de política de baixo nível”. Wanderley Guilherme dos Santos concorda com a idéia de que a eclosão da crise pode ser positiva para a democracia brasileira, mas questiona o encaminhamento da mesma, que pode resultar em nada, do ponto de vista do aperfeiçoamento institucional no país. “O que é surpreendente não é o fato de que tenham sido descobertos estes casos – e mais serão. O fato é que, tendo em vista o encaminhamento que as oposições têm dado à questão, estritamente partidário-eleitoral, tem impedido uma avaliação e um aprofundamento muito mais sério do problema real da corrupção, de que não escapa o PT, de que não escapam todos os partidos”. Ou seja, após meses de grande exposição midiática, como ficou mesmo o encaminhamento dos temas relacionados às causas históricas da corrupção? Em que avançou a proposta da reforma política? Há alguma possibilidade de essa reforma sair da gaveta no início do próximo governo? O PT, ator central da crise política, tem algo a dizer sobre essas perguntas. Se não disser nada, terá sucumbido à crise. Para Wanderley Guilherme dos Santos, o partido está no meio da parte mais substancial da problemática do país no curto e médio prazo. “Qual é a versão que o principal partido da mudança no Brasil, que se chama Partido dos Trabalhadores, tem a respeito de si próprio nas suas relações com o mundo privado? Quando é que esta discussão vai ser feita de uma maneira não-mitológica, não-analógica, não metafórica e abertamente? Quando vai ser possível? Quando o partido vai fazer isso?”. O cientista político vê um problema de identidade programática a ser resolvido no PT. “Não é possível ter simultaneamente, fazendo parte do mesmo partido, a opinião de socialistas, religiosos e pragmáticos do crescimento econômico de qualquer maneira. E a verdade é que o PT está convivendo com isso e não tem tido coragem de enfrentar este problema”. NÃO EXISTE UMA ÉTICA PETISTA As relações dos partidos políticos com a esfera privada também são apontadas por Marilena Chauí, professora da Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), como um dos principais temas a serem enfrentados no debate sobre as raízes da corrupção. “Esta só acontece quando a fraqueza das instituições ou sua má qualidade permite a privatização do que é público. Uma ética pública só é possível pela boa qualidade das instituições públicas”, defende Chauí. E, neste contexto, ela toca num ponto que atravessa a história da esquerda. Indagada por Juarez Guimarães sobre a possibilidade de existência de “duas éticas”, uma da esquerda e outra da direita (“a moral deles e a nossa”), ela responde negativamente. “Não pode existir uma ética petista própria e separada de uma construção democrática e republicana das instituições brasileiras”. Essa é uma questão polêmica e que costuma não ser enfrentada abertamente. Durante a crise, de modo mais ou menos explícito, algumas vozes dentro do PT reivindicaram uma postura realista ao defender que não é possível vencer o adversário sem se utilizar de suas armas, como o caixa-dois, por exemplo. Uma das perguntas que se coloca, então, para os defensores dessa tese é: e que medida, ao se utilizar das “armas dos adversários”, você não se iguala a ele? O que garantiria uma espécie de imunidade ética nesta compreensão da relação entre meios e fins? Para Marilena Chauí, o PT tem um problema a resolver aí. “O PT interiorizou a idéia de ética ‘na’ política (isto é, a presença, na política, de virtudes e vícios dos indivíduos), em lugar de compreender que se trata de uma ética ‘da’ política”. Ela explicita a diferença entre esses dois modelos de construção através de uma pergunta: “Que qualidade das instituições públicas garantem a existência e a prática de uma ética pública, tanto partidária quanto governamental?”. Do ponto de vista das causas internas da crise que atingiu o PT, Chauí destaca a “transformação gradual do PT num partido de massas que passou a dar prioridade às eleições e a privilegiar, entre seus quadros, os políticos profissionais”. Neste processo, acrescenta, os movimentos sociais e populares passaram a ter um lugar subalterno na vida partidária e as lutas sociais tornaram-se menos importantes do que as vitórias eleitorais. “Como conseqüência, a formação de quadros partidários deixou de ser feita na e pela luta social e a organização partidária deixou de ser conduzida, renovada e combativa porque nela perderam espaço exatamente os agentes da ação democrática”. Esse fator, prossegue Chauí, “levou ao crescimento indiscriminado do partido, com filiados sem uma história política de esquerda e sem vínculos com os movimentos sociais e populares, interessados em vantagens eleitorais e em cargos no aparelho de Estado”. TUDO O QUE É SADIO PODE FICAR DOENTE Diagnóstico similar é feito pelo escritor Leonardo Boff que traça um paralelo entre o que aconteceu no PT e o processo de burocratização da Igreja Católica. A hierarquia da Igreja, segundo Boff, “dogmatizou a história e assim sepultou a força estruturante dos ideais originários que apontam para formas participativas de poder, como comunhão de pessoas, como serviço comunitário, e não como centralização em poucas pessoas”. No PT, de uma maneira semelhante, acrescenta, “grupos do partido, especialmente da direção, identificaram o sonho Brasil-diferente com o projeto do PT, como se o partido tivesse o monopólio da representação e dos meios para realizá-lo”. “Esses estratos se burocratizaram, impediram a emergência da crítica interna e criaram obstáculos à criatividade que vinha dos ideais originários”, diz ainda Boff. Apesar disso, ele defende que vale a pena investir no resgate do PT e na defesa de seu patrimônio de 25 anos de lutas.
“Tudo o que é sadio
pode ficar doente”, defende Boff. “Essa doença não é mortal. Ela pode ser
curada especialmente a partir da parte sã. Assim, vale a pena investir
esperança no resgate do PT, bebendo do capital de esperança que não se
esgota no PT e, por isso, não deixa que a crise vire uma tragédia. A parte
sã vai curar a doente, e o organismo PT poderá continuar a desempenhar sua
missão histórica de inauguração de outro tipo de política, de outra forma de
inclusão do povo e de outra maneira de contribuir para uma globalização
menos vitimatória da grande maioria da humanidade”. A esperança expressa por
Boff depende de vários fatores para se tornar realidade. Uma delas é que as
origens e desdobramentos da crise não sejam varridos para debaixo do tapete
e esquecidos lá para sempre. O livro “Leituras da Crise” fornece elementos
suficientes para refletir sobre o que aconteceu. Para quem recusa a via do
tapete, é uma leitura obrigatória. Fonte: Ag. Carta Maior, Marco Aurélio Weissheimer, 20/06/2006 |