Especial
O
projeto que cria cotas raciais nas universidades federais brasileiras exige
mais atenção
Nas próximas semanas, deverá ser votado no Senado um projeto que, já aprovado na Câmara dos Deputados, implanta o sistema de cotas raciais nas 55 universidades federais brasileiras. Essas instituições ficarão obrigadas a reservar 50% de suas vagas para alunos egressos de escolas públicas. Dentro desse universo de cotistas, negros, pardos e índios serão os principais beneficiados: terão garantido um número de vagas proporcional à sua representação demográfica em cada estado. O projeto visa a ampliar a presença desses grupos étnicos e raciais no ensino superior. O objetivo é justo. Negros, pardos e índios, em especial os mais pobres, têm pouca ou nenhuma chance de se equiparar social e economicamente aos brancos sem que se lhes abram maiores oportunidades na vida. Mas essa questão é complexa e não se esgota em sua justeza. Há fortes razões para acreditar que transformar o projeto em lei da maneira como ele chegou ao Senado, vindo da Câmara dos Deputados, pode ser contraproducente, ilógico e ruinoso para todos os brasileiros, inclusive e principalmente aqueles que o texto da lei visa a beneficiar. A primeira e mais grave reflexão a fazer é se o papel das universidades federais deve passar a ser o de reparar injustiças históricas. Se for isso, há que ter em mente que se trata de uma mudança radical. As universidades existiram desde sempre para produzir conhecimento. A produção de conhecimento de qualidade só é possível em ambientes de porta de entrada estreita e com rígido regime de mérito. É o contrário do que propõe o sistema de cotas em votação no Senado. Se ele for aprovado, metade dos calouros terá acesso à universidade usando como passaporte de entrada o vago e cientificamente desacreditado conceito de raça. Adeus ao mérito individual. Com ele se despedem também a produção de conhecimento e o avanço acadêmico. Deve haver formas menos destruidoras de reparar injustiças históricas.
A experiência com cotas no ensino superior começou no Brasil em 2002, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro as instituiu pela primeira vez no país. Outras oitenta faculdades fizeram o mesmo, com modelos variados. Nenhuma dessas experiências tem resultados positivos conclusivos e tampouco unanimidade quanto a sua constitucionalidade. Ainda neste ano, o Supremo Tribunal Federal deve julgar a validade de dois desses modelos. A novidade do projeto que tramita no Senado é que ele pretende institucionalizar as cotas. A ideia conta com forte apoio oficial e, felizmente, com a oposição de muitas lideranças negras do país que enxergam no favorecimento das cotas um risco para todos. Como é de praxe quando se contraria uma decisão oficial do governo, a retaliação é automática. Diz Leão Alves, do movimento Nação Mestiça: "Não apoiar as cotas, como é o meu caso, significa abrir mão de financiamentos e cargos públicos". A contaminação ideológica do projeto é seu ponto fraco. Por qual critério se chegou ao porcentual de 50% das vagas das universidades federais para cotistas? Segundo o ministro Edson Santos, da Secretaria da Igualdade Racial (Seppir), pelo critério da "sensibilidade". Acontece que, para preencher todas essas vagas, será necessário admitir alunos classificados entre os piores no vestibular. O matemático Renato Pedrosa, um dos coordenadores do vestibular da Unicamp, fez simulações com base na lei e concluiu: "Cotistas entrariam com notas até 25% mais baixas do que os aprovados apenas pelo mérito e não conseguiriam ter um bom desempenho ao longo do curso". Outro efeito da pressão das ONGs negras é que um mecanismo para beneficiar candidatos de baixa renda só foi incorporado ao projeto na última hora, e quase como um remendo. A redação da lei deixa no ar muitas dúvidas, entre as quais se um branco pobre saído da escola pública poderá se beneficiar das cotas.
Estabelecer direitos distintos com base na cor da pele, como prevê o atual projeto, significa dar amparo legal à ideia de que negros e brancos devem ser tratados diferentemente – em oposição ao que diz a própria Constituição brasileira. É uma armadilha. À guisa de reparar uma injustiça coletiva histórica e socialmente definida, entroniza-se por lei uma discriminação indelével que recai sobre cada indivíduo tendo como base certos caracteres físicos que se aceitam como definidores de sua raça. Isso equivale à oficialização do racismo. Com outras intenções, foi essa mesma ideia absurda a base do único regime contemporâneo erguido sobre o conceito de separação racial, o apartheid da África do Sul, que de 1948 até ser desmontado, em 1994, justificou a segregação entre grupos de pessoas e a supremacia de um deles, os brancos, sobre outro, os negros. Raça é hoje um conceito desmoralizado pela ciência, pois podem ser medidas mais variações genéticas entre dois indiví-duos loiros do que entre um loiro e um negro. Raça não é, portanto, base sólida para legislar. Nos Estados Unidos, país com longa experiência em ações afirmativas, caminha-se na direção justamente oposta à que pretende o Brasil. A Suprema Corte americana nos anos 70 julgou inconstitucionais as cotas para negros e outras minorias. Recentemente, também considerou inconstitucional o "bônus" nas notas que algumas universidades instituíram para ajudar no ingresso dos estudantes negros. Resumiu o juiz Anthony Kennedy em um voto sobre as ações afirmativas: "Preferências raciais, quando corroboradas pelo estado, podem ser a mais segregacionista das políticas, com o potencial de destruir a confiança na Constituição e na ideia de igualdade". Incentivados a responder sobre a própria cor no último censo escolar, 65% dos alunos brasileiros deixaram a questão em branco. A maioria dos brasileiros também não se define com base na raça. Conclui a antropóloga Yvonne Maggie: "A luta contra o racismo consiste em destruir essa identidade racial – e não em reforçá-la". Impor cotas raciais por lei pode ir contra o bom senso e contra a realidade brasileira, acirrando divisões apenas embrionárias na sociedade.
A biologia do ensino médio explica que o biótipo (carga genética) não tem manifestação completa e automática sobre o fenótipo (aparência). Isso significa que pessoas de ancestralidade negra podem parecer menos negras do que alguns brancos com um "pé na cozinha", como era comum no passado se referir a brancos com algum antepassado negro na família. Na Universidade de Brasília, uma das primeiras a implantar o sistema de cotas no país, uma comissão foi formada com o objetivo de arbitrar, a partir de fotografias, sobre quais candidatos se enquadravam no critério racial a ser favorecido. Dois irmãos gêmeos idênticos, univitelinos, tentaram o acesso – mas apenas um foi considerado negro. A universidade decidiu, então, substituir a foto por uma entrevista. Logo outra injustiça flagrante será produzida pelo novo sistema. Isso é inevitável. Em todos os tempos históricos e geográficos, o critério racial como balizador de políticas públicas produziu favoritismo e abuso de poder. Essa maldição foi magistralmente materializada no famoso desabafo de um funcionário nazista exasperado com a vagueza dos critérios instituídos para separar arianos de judeus: "Na Alemanha, judeu é quem Goebbels (ministro da propaganda) diz que é judeu". É previsível que, se implantado nacionalmente no Brasil o sistema de cotas, negro será quem o agente do estado petista disser que é negro.
Os defensores das cotas dizem que está passando da hora de reconhecer a dívida histórica do Brasil com os descendentes de escravos. A boa intenção esbarra na realidade, como explica o historiador José Roberto Pinto de Góes: "Há registros de que muitos negros, uma vez libertos, se tornaram proprietários de escravos". Será que o agente do estado encarregado de reparar a injustiça histórica conseguirá saber se o candidato é descendente de um negro que foi dono de escravos? Difícil. Antevendo essa e outras armadilhas práticas, o projeto de cotas que chegou ao Senado recebeu um remendo que tenta aliviar sua pesada carga de racismo com a inclusão da pobreza entre os critérios para um brasileiro ser beneficiado por cotas nas universidades. O projeto prevê que os contemplados, além de negros, pardos ou índios, sejam egressos de escolas públicas. Metade das vagas seria reservada para aqueles estudantes de famílias de baixa renda. A intenção do remendo é evitar que os brasileiros negros de classe média ou os alunos das escolas públicas de elite sejam os principais beneficiados pelo novo sistema. É um bom remendo. Mas ele só vale para 50% das vagas sob o sistema de cotas. A lei, da maneira como chegou ao Senado, é confusa quanto a que benefício teria direito o brasileiro branco e pobre. O texto afirma que as vagas devem ser preenchidas por negros, pardos e índios, "no mínimo" na proporção em que suas etnias participam da composição da população em cada estado. Ao usar a expressão "no mínimo" e não se referir aos brancos, a lei abre espaço para que as demais vagas também sejam ocupadas por negros, pardos e índios.
Pelas estimativas, se
aprovado como está, o projeto beneficiaria efetivamente 75 000
brasileiros, a metade dos calouros que entra nas universidades a cada ano.
Tais vagas seriam destinadas preferencialmente a negros, pardos e índios.
Esse contingente, é de presumir – pois do contrário não faria sentido ter
cotas –, é menos preparado academicamente do que dezenas de milhares de
estudantes rejeitados pela simples razão de terem nascido brancos e de pais
que suaram a camisa para galgar um degrau mais alto na pirâmide social
brasileira. Os efeitos de longo prazo dessa injustiça são ruinosos. Ela pune
o esforço individual e cria uma casta de "profissionais das cotas", cuja
maioria pode até ser muito bem aceita em empregos de segunda linha, mas,
certamente, será discriminada no preenchimento de postos de trabalho mais
bem pagos e com exigências curriculares impecáveis. O projeto de cotas não
toca nesse vespeiro. E desvia a atenção de algo bem mais relevante: o fato
de que a encrenca começa bem antes do vestibular. Para se ter uma ideia,
apenas 20% dos alunos mais pobres concluem o ensino médio. Pior ainda: entre
os que chegam à formatura, uma minoria tem condições reais de cursar uma
faculdade, ainda que ela seja gratuita. Metade dos alunos conclui o ensino
básico sem conseguir executar as operações fundamentais da matemática e sem
entender o conteúdo de textos simples. "Não há solução mágica para a
democratização do acesso à universidade. Isso apenas ocorrerá quando mais e
mais estudantes forem preparados para competir de igual para igual por uma
vaga", diz Eunice Durham, especialista em ensino superior. Não há, claro,
uma maneira de fazer isso que ignore o investimento maciço na melhoria do
nível dos professores das escolas públicas brasileiras. As cotas ferem o princípio da meritocracia Como explicar a um aluno classificado na 65ª posição num dos vestibulares mais concorridos do país que sua vaga será ocupada pelo milésimo colocado no mesmo concurso? É esse tipo de distorção que ocorrerá nas universidades brasileiras, caso as cotas sejam adotadas na proporção em que prevê o projeto que tramita no Senado. Os números vêm de um estudo feito pela Universidade Federal de São Paulo. O perigo é pôr em xeque o reconhecimento ao mérito individual. Nos Estados Unidos, onde as cotas já foram julgadas inconstitucionais, as ações afirmativas ferem menos esse princípio. Lá, o objetivo é garantir a diversidade: fazer com que no ambiente universitário se encontrem pessoas não só de uma pluralidade de origens, mas também com talentos peculiares. Com esse critério, podem ser beneficiados candidatos negros, mas também mulheres, estrangeiros ou esportistas. Só entra, no entanto, quem tirar boas notas. No caso brasileiro, as cotas levam a um arremedo de diversidade. São consideradas apenas as variáveis branco, negro, pardo e índio, além de um indicador de renda – as qualidades do indivíduo não são avaliadas. Tampouco está previsto mecanismo algum para preservar a qualidade do ensino. Para preencher todas as vagas reservadas, as universidades precisarão aprovar candidatos com notas baixas. Para os que são preteridos, como o estudante gaúcho Getúlio Ost, 18 anos, fica a frustração. "Consegui uma boa nota no vestibular, mas meu esforço não valeu de nada", diz ele, que perdeu a vaga na Universidade Federal do Rio Grande do Sul para um cotista. Já para as universidades, resta um duro desafio: preservar o nível acadêmico dos cursos.
Fonte: Rev. Veja, Camila Pereira, ed. 2102, 4/3/2009.
|
|