Cotas dividem o Judiciário
Uma guerra de liminares envolve o debate sobre a reserva de vagas nas universidades
O assunto divide juízes, a exemplo do que ocorre entre políticos e acadêmicos. Na guerra de liminares, a tendência dos tribunais tem sido a de validar o sistema de cotas, respeitando a autonomia universitária. No Tribunal Regional Federal da 4aRegião, em Porto Alegre, já se fala numa jurisprudência pró-cotas. Mas não faltam decisões que passam por cima da reserva de vagas e determinam a matrícula de quem concorreu pelo sistema universal. Na última segunda-feira, quando começaram as aulas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 13 estudantes estavam lá por força de decisões judiciais que contrariaram o regime de cotas. Dezenas de outros candidatos tentaram o mesmo, mas não tiveram êxito. Em janeiro, o tribunal restabeleceu o sistema de cotas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que fora suspenso por liminar da Justiça Federal de primeira instância. A UFSC reserva 20% das vagas para alunos de escolas públicas, e 10% para negros. Quem move a ação é o Ministério Público, convencido de que as cotas são inconstitucionais. Ao acolher o recurso da universidade, o desembargador federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz citou um acórdão do tribunal que tem servido de base para liminares favoráveis às cotas: “O interesse particular não pode prevalecer sobre a política pública. (...) Não se poderia sacrificar a busca de um modelo de justiça social apenas para evitar prejuízo particular”, escreveu o desembargador Luiz Carlos de Castro Lugon. Nessa decisão, Lugon votou contra uma liminar que ele próprio havia concedido em benefício de uma estudante de odontologia que ficara sem a vaga na Universidade Federal do Paraná. O novo entendimento prevaleceu no acórdão da 3aTurma do TRF-4, em abril do ano passado. Recentemente, o mesmo tribunal reduziu à metade o percentual de vagas reservadas no curso de engenharia mecânica da UFSC — de 20% para 10%, no caso de alunos de escola pública, e de 10% para 5%, no de estudantes negros. Juiz diz que maioria dos catarinenses são brancos O juiz convocado Marcelo de Nardi argumentou que apenas 11% da população catarinense é negra ou parda, segundo o último censo do IBGE. “Um sistema que, a título de promover ações afirmativas, impõe percentuais elevados de reserva de vagas, flagrantemente distanciados da finalidade a que se propõe, por certo não é razoável e acaba constituindo, em efeito inverso, fator de discriminação”, escreveu Nardi. O TRF-4 também rejeitou um pedido de cinco alunos que queriam que as regras especiais das cotas já fossem usadas na primeira fase do vestibular da Universidade Federal de Santa Maria (RS). A universidade adota um mecanismo que só favorece negros que passam para a segunda etapa. Nesse caso, o TRF-4 invocou o princípio da autonomia universitária para garantir o direito da instituição de restringir o benefício. “A concretização das ações afirmativas dentro das universidades está sujeita à autonomia didático-científica de que gozam aquelas entidades”, escreveu o juiz convocado Loraci Flores de Lima. Em 2007, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio, rejeitou uma ação de 48 alunos de escolas particulares que tentavam evitar a reserva de vagas na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Agora, estudantes reprovados no vestibular vão fazer o mesmo. Desta vez, porém, o objetivo não será acabar com as cotas, mas simplesmente garantir a própria matrícula. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) também é alvo de ações de candidatos preteridos por causa das cotas. Como se trata de instituição estadual, os casos são julgados no Tribunal de Justiça. O diretor jurídico da Uerj, Maurício Mota, diz que a maioria das decisões favorável à instituição, que segue lei estadual reserva 20% das vagas para alunos de escola pública e 20% para negros, desde que sejam de famílias de baixa renda. Outros 5% são para deficientes físicos e filhos de policiais, bombeiros agentes penitenciários mortos em serviço. Já as universidades federais têm autonomia para decidir se adotam ou não ações afirmativas e qual o seu formato. A desembargadora Maria Lúcia Luz Leiria, do TRF-4, registrou que 20 universidades federais e 19 estaduais já adotam esse tipo de política. Advogados, pais e estudantes apostam que palavra final será dada pelo Supremo Tribunal Federal, à medida em que os recursos chegarem à Corte. Na Câmara, está engavetado o projeto que reserva 50% das vagas das universidades federais para alunos da rede pública. Foi enviado pelo governo Lula em 2004, está pronto para votação em plenário, mas não há consenso. Procurado pelo Globo, o ministro da Educação, Fernando Haddad, não quis falar sobre o assunto. Desembargadoras têm decisões divergentes no Rio Grande do Sul Cada cabeça uma sentença. No Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, desembargadores têm acolhido e rejeitado recursos de estudantes contra as cotas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A instituição adotou a reserva de vagas pela primeira vez no vestibular de janeiro. No mês seguinte, a desembargadora federal Maria Lúcia Luz Leiria acabou com a pretensão da candidata Lilian de Freitas Fernandes de cursar odontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Já a desembargadora Marga Barth Tessler autorizou a matrícula da auxiliar de enfermagem Juliane Gering. As duas vestibulandas tiraram notas mais altas do que cotistas, mas não foram classificadas. Lilian ficou em 75º lugar no vestibular, que oferecia 88 vagas — 60 pelo sistema universal e 28 para cotistas. A UFRGS reserva 30% das vagas para alunos da rede pública, sendo que metade delas deve ser preenchida por estudantes negros. Ela concorreu pelo sistema universal. A desembargadora Maria Lúcia decidiu que, para ser aprovada, a vestibulanda deveria ter tirado uma das 60 notas mais altas. Maria Lúcia rebateu o argumento de que as cotas ferem o princípio da igualdade. O raciocínio é simples: é preciso tratar de forma desigual aos desiguais, com “disciplinas jurídicas distintas ajustadas às desigualdades fácticas existentes”. Ela lembrou que o Brasil é signatário de tratados internacionais que preconizam ações afirmativas. Além disso, a Constituição já prevê cotas para deficientes físicos em concursos públicos e incentivos para a contratação de mulheres no mercado de trabalho, assim como a legislação eleitoral fixa cotas mínimas para candidaturas femininas: “Em nenhuma das previsões anteriores houve fortes contestações de inconstitucionalidade, talvez a revelar, por via oblíqua, o grau de ‘racismo cordial’ que permeia o imaginário brasileiro”, escreveu Maria Lúcia. A desembargadora Marga, no entanto, acolheu o recurso de Juliane Gering, que ficou em 39º lugar no vestibular de psicologia. O curso oferecia 40 vagas — 28 pelo sistema universal e 12 para cotistas. Como freqüentou escola particular em parte do ensino básico, Juliane não pôde concorrer pelo sistema de cotas. Marga defendeu o princípio do mérito acadêmico. Ela argumentou que a auxiliar de enfermagem enfrenta dificuldades financeiras, já que paga aluguel, gasta com remédios para asma e tem renda familiar inferior a R$ 1.900 mensais. “A resolução universitária (que criou as cotas) não poderia afrontar relevante e fundamental postulado expressamente consagrado pela Constituição, o mérito acadêmico, que, neste caso, não está sendo observado”, escreveu a desembargadora. Reitor defende sistema e diz que todos os concursos têm suas regras previstas em edital O advogado de Juliane, Gustavo Bohrer Paim, diz ter outros dois clientes que foram matriculados na mesma situação. Ele critica as regras: — É uma falácia dizer que existe cota racial se o negro que estudou em escola particular não pode participar. É como se fosse menos negro. Não há tampouco cota social. Existem boas escolas públicas no Rio Grande do Sul, onde estudam alunos de classe média. Eles podem concorrer pelas cotas, enquanto estudantes que fizeram colégio particular com bolsa de 100%, não — diz Bohrer Paim. O vice-reitor Pedro Cézar Dutra Fonseca defende o sistema. Ele argumenta que um estudante de baixa renda que tenha freqüentado escola particular estaria apto a disputar as vagas pelo regime universal. — A universidade promoveu uma discussão enorme. Daqui a cinco anos, vamos avaliar se deu certo ou não. Do contrário, fica tudo no achômetro. O edital já informava sobre as cotas. Qualquer concurso estabelece os seus critérios. O Judiciário vai julgar. Acataremos as decisões.
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