Cota, sim, mas com
mérito
Um programa gaúcho leva estudantes da rede pública à universidade – e
sem assistencialismo |
Atualmente,
no Brasil, 42% das vagas nas universidades estaduais e federais são
preenchidas por estudantes vindos do ensino público. Dito desse modo, não
parece um número tão pequeno. Ocorre que ele reflete apenas parcialmente a
realidade. Grande parte desses alunos só conseguiu furar o bloqueio do
vestibular porque optou por cursos pouco disputados. No caso de carreiras
mais concorridas, como medicina e odontologia, o índice de aprovação de
alunos egressos da rede pública cai drasticamente: é de apenas 15%. Um
programa criado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio
Grande do Sul, mostra que esse quadro pode ser mudado com a adoção de
medidas relativamente simples. Para aumentar as chances dos estudantes
vindos da rede pública de brigar por uma vaga na universidade em condições
mais próximas das daqueles que tiveram acesso ao ensino privado, a
universidade foi à raiz do problema: montou um programa destinado a melhorar
a qualidade do ensino médio no estado. Os resultados têm sido
extraordinários. Hoje, 66% dos estudantes da UFSM vieram do ensino público e
34% dos seus alunos de medicina (mais do que o dobro da média nacional)
idem. "Passar num curso de medicina era um sonho distante para mim", diz
Évelin Flach, de 18 anos. Filha de um casal de agricultores, ela tornou-se,
no início deste ano, um dos 8.700 estudantes da universidade que passaram
pelo programa.
A DOUTORA
Évelin Flach: filha de agricultores, ela conquistou uma vaga no
disputado curso de medicina |
|
Fotos: Jefferson Bernardes
OS FINS E OS MEIOS
O programa de Santa Maria possibilitou a entrada de Andiara na
universidade. O auxílio-moradia permitiu que ela continuasse lá
|
Batizado de Peies
(Programa de Ingresso ao Ensino Superior), funciona da seguinte maneira:
anualmente, a equipe da UFSM aplica exames para estudantes das três séries
do ensino médio em 1 094 escolas. Com base na avaliação, produz um detalhado
relatório ressaltando as deficiências de cada escola e elabora programas
pedagógicos que, ministrados pelos professores da universidade aos
professores das escolas públicas, têm como objetivo suprir as lacunas
identificadas. Quando chega a época do vestibular, os alunos têm duas
opções: prestar normalmente o vestibular (já com o reforço do programa) ou
apresentar as notas obtidas nos exames aplicados pela UFSM. A universidade
reserva 20% de suas vagas aos alunos que tiverem tido melhor desempenho nas
provas.
O exemplo de Santa
Maria funciona como uma alternativa concreta ao projeto de implantação
de cotas destinadas às minorias nas universidades federais, que o MEC
sonha ver sair do papel ainda neste ano (veja quadro). Ambos querem
levar à universidade os menos favorecidos. O projeto oficial, no
entanto, ao desprezar a defasagem de preparo entre cotistas e alunos
regulares, acaba por prejudicar os segundos. Um estudo feito pela
Universidade de São Paulo mostra que, caso o projeto federal seja
colocado em prática, estudantes com notas até 40% mais altas do que a
dos cotistas correm o risco de ficar de fora no processo de seleção. O
projeto de Santa Maria também reserva cotas – mas elas não são
destinadas a nenhuma minoria, e sim àqueles que tiverem obtido boas
notas nos exames aplicados pela UFSM. Ou seja: são os melhores alunos
que entram na universidade. "O programa de Santa Maria optou pelo
sistema meritocrático, ao contrário da proposta do MEC", diz Claudio de
Moura Castro, especialista em educação superior e articulista de VEJA. |
|
SONHO POSSÍVEL
O mestrando em geografia Juliano Andres: "Os jovens da minha cidade
agora podem ver na universidade um objetivo de vida" |
Há ainda um outro
aspecto em que o projeto gaúcho ganha do projeto do governo. O segundo
aumenta as chances das universidades de absorver um grande número de
estudantes despreparados, o que contribuiria para a queda do nível do
ensino. No caso de Santa Maria, ocorre o contrário: com 60% a mais de
estudantes vindos do ensino público do que a média nacional, ela figura
entre as sete universidades com melhores resultados no Enade 2004 (Exame
Nacional de Estudantes, do MEC). O programa gaúcho, diferentemente do
programa do governo federal, oferece também moradia, vale-transporte e
alimentação para os alunos mais pobres. Com isso, o índice de evasão na
UFSM já é três vezes mais baixo do que no resto do país. "Não
conseguiria me manter na universidade sem esse auxílio", diz Andiara
Mumbach, 18 anos, aluna de música. |
Mais do que contribuir
para o aperfeiçoamento do ensino médio e implantar um sistema de inclusão
universitária que privilegia o mérito em detrimento do assistencialismo, o
programa de Santa Maria, que completa dez anos, conseguiu o que talvez seja
o seu maior feito: colocar a universidade no horizonte de perspectivas de
jovens que, sem ele, jamais poderiam sonhar com essa possibilidade. "Meus
irmãos mais velhos passaram a vida ouvindo dizer que existia uma
universidade boa em Santa Maria, mas nunca sonharam que um dia pudessem
estudar lá", diz Juliano Andres, 23 anos. Estudante de mestrado em
geografia, ele nasceu em Pirapó, cidade de 3.000 habitantes, onde seus pais
ganham a vida como pequenos agricultores. "Com o programa, essa situação
mudou. Hoje, os jovens da minha cidade vêem a universidade como uma meta
concreta."
Fonte: Rev. Veja, Camila Pereira, ed. n.
1927, 19/10/2005. |