De costas para a vida
Quem
são os hikikomoris, jovens japoneses que se recusam a sair de casa e chegam
a ficar
até vinte anos trancafiados no quarto
Kazutaka
Tashiro tinha 32 anos quando brigou com seu chefe e abandonou o emprego
que tinha como instrutor de mergulho em uma escola de Tóquio. Por um
ano, viveu só de bicos, pintando paredes. Ao final desse período, algo
que ele não sabe definir aconteceu: "Um fio dentro de mim se quebrou".
Tashiro cortou relações com o mundo. Parou de trabalhar, de falar e de
sair de casa. Trancou-se em seu quarto e lá permaneceu por dois anos sem
nem sequer abrir a janela. O pai, com quem ele morava, depois de algum
tempo não suportou a situação: vendeu a casa e deu ao filho parte do
dinheiro, dizendo que, se ele quisesse continuar vivendo daquele jeito,
que fosse viver sozinho. Tashiro, então, alugou um pequeno apartamento –
onde continuou sua reclusão por mais oito anos: dormindo durante o dia,
montando quebra-cabeças à noite e saindo para comprar comida de
madrugada, de modo a não ser visto por vizinhos e não ter de falar com
ninguém.
O governo japonês
estima que existam entre 600 000 e 1 milhão de pessoas como Tashiro no
Japão. Os hikikomoris, termo que significa "pessoas reclusas" ou
"isoladas da sociedade", são, em 80% dos casos, |
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PRISIONEIROS DE SI PRÓPRIOS
80% dos hikikomoris são homens, metade tem mais de 30 anos e quase todos
se isolaram depois de experimentar pequenos fracassos. |
homens. Metade
deles tem mais de 30 anos, e quase todos registram, no período anterior
ao início do enclausuramento, um fracasso de alguma ordem: perderam a
namorada, falharam na tentativa de entrar na faculdade, foram demitidos
do emprego. "O gatilho que aciona esse comportamento varia enormemente,
mas a sensação de não conseguir corresponder à expectativa da família ou
da sociedade está sempre presente no hikikomori", diz o psiquiatra
Tamaki Saito, criador do termo que serve para designar tanto o distúrbio
quanto a pessoa que sofre dele. Até o início dos anos 90, não se falava
em hikikomoris no Japão. Embora haja registros da existência deles desde
os anos 70, só passaram a chamar atenção no fim da década de 90 – não
por coincidência, o período em que a recessão e o desmantelamento do
tradicional regime de trabalho japonês, aquele do emprego garantido e
praticamente vitalício, produziram hordas de jovens sem trabalho fixo.
Numa sociedade influenciada sobremaneira pelo confucionismo, em que o
estudo e o trabalho são valores supremos, esses jovens se transformaram
numa nova espécie de pária, condição em que muitos hikikomoris de fato
se encaixam. "É como se eles fossem peças que não passaram pelo controle
de qualidade", afirma o publicitário Masayuki Okuyama, cujo filho,
Yoichi, se tornou recluso aos 15 anos. Nessa idade, ele parou de ir à
escola. Mais tarde, deixou de sair de casa. Tempos depois, começou a
atacar fisicamente os pais. Por mais de uma vez, Okuyama teve de chamar
a polícia para contê-lo ou foi obrigado a dormir com a mulher em um
hotel, para escapar das suas agressões. Há três anos, o publicitário
tomou a decisão de expulsar o filho de casa. Hoje, Yoichi tem 28 anos,
vive em um apartamento comprado pelos pais e não mantém nenhum contato
com eles. "Eu não tinha outra opção. Havia violência na minha casa", diz
Okuyama. |
DE JANELAS BEM FECHADAS
Kazutaka Tashiro (na foto, ao lado das cartas que ajudaram na sua
recuperação) ficou sem sair de casa por dez anos, dois dos quais viveu
encerrado no quarto, sem abrir as janelas. Ele conta que passava dias e
noites na penumbra, montando quebra-cabeças e jogando videogame. O pai
deixava as refeições para ele atrás da porta. "Eu sabia que precisava
sair de lá, mas não conseguia". |
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Mesmo nas
situações que não envolvem agressão física, o publicitário acredita que
afastar o hikikomori dos pais pode ser a única opção para ele. "Há
famílias que mantêm filhos nessa situação por quinze ou mesmo vinte
anos. No fim, eles acabam se transformando em bichos de estimação que
você alimenta três vezes por dia. Mandá-los embora, muitas vezes, é a
única forma de forçá-los a voltar à vida." Okuyama diz, no entanto,
ressentir-se do fato de que, no período em que Yoichi atravessava sua
pior fase, a família não encontrou ninguém a quem pudesse pedir
orientação. Foi pensando nisso que ele fundou há dois anos a Associação
de Pais de Vítimas de Hikikomori. A organização já reúne 10 000
pessoas em todo o Japão, e seu criador considera o número ainda pequeno.
"Não faz parte do estilo japonês procurar ajuda. As pessoas preferem
esconder a situação com medo do que os vizinhos vão dizer", afirma.
O governo do Japão
demorou a acordar para o problema. Só no ano passado é que
programas de apoio aos |
hikikomoris
passaram a funcionar de forma sistemática na rede pública. Além de
serviços de aconselhamento de pais e oferta de estágio em empresas
visando a reintegrar os hikikomoris ao trabalho, o governo criou postos
de consulta voltados exclusivamente para tratar do assunto: são
cinqüenta unidades instaladas em 26 províncias do país. No ano passado,
esses postos atenderam 35 000
pessoas – em sua maioria, familiares de hikikomoris, já que os próprios
raramente vão à procura do serviço. Neste ano, entre os meses de abril e
julho, o número de consultas subiu para 38 000
– o equivalente a apenas 6% do contingente mínimo estimado de doen-tes.
Bem à frente das ainda tímidas iniciativas governamentais estão algumas
ONGs especializadas no assunto. A New Start, por exemplo, criou as
"irmãs de aluguel": estudantes de psicologia, artes e outras matérias
que, contratadas para visitar hikikomoris em sua casa, têm como missão
arrancá-los de lá – e, mais tarde, integrá-los aos programas de lazer e
capacitação de emprego que a entidade mantém. Foi por meio de uma dessas
"irmãs de aluguel" que Kazutaka Tashiro saiu de sua reclusão de dez
anos. Quando o dinheiro que recebeu do pai acabou, a ponto de ele não
ter mais como comprar comida, Tashiro pensou em suicidar-se. Chegou a
subir no parapeito da janela de seu quarto. Desesperado, decidiu pedir
ajuda à mãe, que, por sua vez, procurou a New Start. A partir daí, uma
"irmã de aluguel" passou a mandar cartas e postais a Tashiro. No começo,
ele mal os abria. Foi só depois de oito meses de correspondências
insistentes que ele concordou em receber uma visita da "irmã". Hoje,
considera-se recuperado e trabalha ele próprio como funcionário da New
Start, ajudando na recuperação de outros hikikomoris. Sua história é uma
das raras com final feliz. A taxa de recuperação entre os portadores do
distúrbio, segundo especialistas, não chega a 30%. |
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O SEU TORMENTO É O MEU TORMENTO
O filho adolescente do publicitário Masayuki Okuyama decidiu
trancafiar-se em casa aos 15 anos. Permaneceu assim por quase dez anos,
até que começou a agredir os pais. Depois de ver a mulher ser espancada,
Okuyama expulsou o filho de casa. Hoje, dedica-se a uma associação
destinada a dar aos pais de hikikomoris o apoio que ele não teve. |
Seriam os
hikikomoris um produto exclusivo da competitiva sociedade japonesa? O
psiquiatra Saito não acredita nisso. Ele conta que, há cinco anos, uma
equipe da BBC, rede inglesa de televisão, esteve no Japão para produzir
uma reportagem sobre o assunto. Quando o programa foi ao ar, a emissora
recebeu dezenas de telefonemas de espectadores dizendo ter problema
parecido na família. "Na Coréia do Sul e na Itália também há pessoas em
situação semelhante. Recebo muitos e-mails de lá", afirma Saito. "Todo
país tem jovens com dificuldades de adaptação." Mas há uma diferença.
Para o jornalista Yutaka Shiokura, autor do livro Hikikomori, a
juventude enfrenta uma realidade mais perversa no Japão: "A sociedade
japonesa não tem espaço para as diferenças – é como um trem de um único
vagão. Quem não consegue embarcar nele fica na plataforma para o resto
da vida". |
Fonte: Rev. Veja, Thaís Oyama, de Tóquio, ed.
2034, 14/11/2007.
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