A cor faz a indiferença

 

Os brancos podem até não admitir, mas as estatísticas são devastadoras ao revelar
como o preconceito e a história põem o negro em desvantagem

A história é comum a muitos brasileiros. Neste caso, o relato é de Douglas Bernardo, de 27 anos, nascido na Paraíba e morador em Itapecerica da Serra (cidade-dormitório na Grande São Paulo). Resultado das misturas de cor entre a mãe negra e o pai branco, o jovem namora uma moça descendente de alemães. E tem dúvidas. “Tenho o maior orgulho da minha cor e, se pudesse, escolheria ser assim mesmo, do jeito que sou. Mas tenho dúvidas se gostaria que o meu filho fosse como eu. Pai não quer ver um filho sofrer e eu sei o que ele teria de enfrentar se nascesse negro como eu.”

O depoimento de Bernardo, que pensa em descontinuar a própria cor entre os seus descendentes, choca pela sinceridade e por revelar como é a vida de 50% da população brasileira, formada por negros e pardos. O País não é branco, é uma mistura. Mas sua gente não admite as diferenças. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo feita em 2003 aponta que 89% dos entrevistados dizem haver racismo no Brasil. Se as pessoas não aceitam dizer que têm esse tipo de preconceito, quem são os racistas?

São, por exemplo, as pessoas do convívio de Bernardo, que recentemente chamaram seu irmão caçula, de 14 anos, de “macaquinho”. Primeiro, ele quis brigar com o ofensor, depois ameaçou dar queixa na delegacia, mas a mãe, responsável pelo menor, preferiu não ir adiante. “O que ocorre é pouca visibilidade dos efeitos do racismo com pessoas de origem negra no Brasil”, avalia Rosana Heringer, coordenadora-geral de programas e relações raciais e direito da mulher da ONG Actionaid. A estudiosa lembra que no Brasil existe o preconceito contra a classe social e a raça: “E quando uma pessoa combina as duas condições é ainda pior numa sociedade hierarquizada como a nossa”.

Outra pesquisa, feita pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) em 1988, mostra que muitos tentam escapar da própria cor, como se isso significasse um distanciamento do preconceito. Em pesquisas como as do IBGE, são os entrevistados que respondem sobre sua cor. No levantamento do Ibase, os entrevistadores foram orientados a perguntar a respeito da cor e depois fazer a própria avaliação. Entre aqueles identificados pela cor preta, 30% declararam-se pardos. O comportamento repetiu-se. Dos que disseram ser brancos, 30% eram pardos. “Daí acreditar que os números referentes à população negra serem subestimados. A tendência é sempre de branqueamento”, acredita a coordenadora da Actionaid.

Os negros são raridade no mundo corporativo. Uma das exceções é o músico e empresário Netinho de Paula, que há um ano lançou a TV da Gente. A emissora, segundo ele, é tocada por negros e com um conteúdo preocupado em mostrar a diversidade. Netinho enfrenta dias difíceis e corre risco de ter de fechar as portas. Isso porque não consegue negociar com a Net, operadora de TV a cabo, a inclusão do canal. Por enquanto, a programação só pode ser vista pelo UHF. “Estou passando por muitas dificuldades como empresário. Há um ano tento negociar com a Net, mas eles nos dizem que só podem pensar em incluir o canal depois que definirem a situação da TV digital. Sem visibilidade, como as pessoas vão assistir?”, diz. A curiosidade nessa história é que Netinho já foi garoto-propaganda na Net.

Sem visibilidade, o canal não consegue atrair anunciantes e se manter. Ao todo o orçamento da tevê desde o início das operações é de 12 milhões de dólares, falta gastar 20% desse valor para zerar o caixa. “Outro dia saiu na Folha de S.Paulo que o negócio não deu certo porque faço uma tevê de negros e para negros. E ainda por cima me chamaram de racista. Meu foco são as classes C, D e E”, afirma Netinho. Por conta dos problemas de caixa, o empresário demitiu cerca de 200 pessoas, hoje conta com 120 funcionários e pode demitir outros 30 no mês que vem se não conseguir resolver o problema.

Netinho quer dar visibilidade ao problema num ato em frente à sede da Net, em São Paulo, marcado para 1º de dezembro. O empresário vai reunir artistas negros como MV Bill, Leci Brandão, Mano Brown e Rappin’ Hood, além de representantes da Liga das Escolas de Samba de São Paulo e do movimento do hip-hop. “O que estão fazendo é nos tratar com uma invisibilidade puramente racial”, opina o dono da TV da Gente. Segundo a Net, a inclusão de outros canais na programação está atrelada a um limite técnico. “Estamos num momento de transição do mundo analógico para o digital. Nesse período, temos limitação para colocar novos canais”, explica Fernando Magalhães, diretor de Programação da Net Serviços.

Ao mesmo tempo que iniciativas como a de Netinho de Paula para ampliar o mercado de trabalho para os negros emperram, alguns movimentos no mundo corporativo mostram que nem tudo é retrocesso. A Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares (UniPalmares), em São Paulo, uma faculdade com predominância de negros entre os alunos, fez uma parceria com algumas instituições financeiras para incluí-los na disputa por vagas de trainees e estagiários.

Douglas Bernardo, aluno do segundo ano de Administração Financeira da Unipalmares, faz estágio em uma das agências do Citibank, na zona oeste da cidade. Trabalha seis horas por dia no departamento de cobrança e recebe uma bolsa-auxílio de 1.128 reais, mais 300 reais em vale-refeição. O estudante diz estar feliz no novo ambiente de trabalho: “É bom saber que nesse processo de expansão dos bancos também há espaço para os negros”.

Numa primeira fase, iniciada no fim do ano passado, o programa de estágios do Citibank contratou seis estudantes da UniPalmares. No mês passado foram mais 30. Até então, o banco só fazia esse tipo de parceria com universidades de primeira linha. Fernanda Pacheco, superintendente de Planejamento Estratégico de RH da instituição, explica que a proposta é valorizar a diversidade dentro da organização. “É um programa social, não é racial. Não barramos um branco no processo”, detalha.

A executiva do Citi percebe duas diferenças entre os estagiários da UniPalmares, normalmente de origem mais humilde (as mensalidades são de 260 reais). Uma delas é a força de vontade entre os alunos da faculdade paulistana. “Há um consenso de que essas pessoas, quando têm uma oportunidade, agarram com unhas e dentes. A competência é a mesma, o que comprovamos nas avaliações. Mas elas se dedicam mais.” Na recepção aos novos estagiários, Gustavo Marin, presidente do banco, disse: “Não estamos aqui fazendo nenhum favor. Essa diversidade é boa para a organização e vocês devem agarrar essa oportunidade”.

Mesmo com iniciativas de bancos como a do Citibank, o mercado de trabalho para os negros e pardos continua dramático. Pesquisa divulgada na sexta-feira 17 pela Organização Internacional do Brasil (escritório do Brasil) mostra que, enquanto a taxa de desemprego entre as mulheres negras cresceu 58% entre 1992 e 2005, entre os homens brancos o aumento foi de 26%. Para Solange Sanches, coordenadora nacional do projeto de igualdade de gênero e raça da OIT, os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) apontam que aumentou a participação das mulheres (independentemente da cor) na atividade econômica. No entanto, o crescimento foi maior para as brancas do que para as negras. “Os números mostram que há uma tendência de melhora da desigualdade a longo prazo. Mas a discriminação racial está presente o tempo todo”, observa Solange.

Dados do IBGE/Pnad (clique para ver o mapa) indicam que as diferenças entre as raças não estão apenas na empregabilidade, mas na remuneração. Negros recebem salários mais baixos. Isso está claro na distribuição do rendimento. No Brasil, 66,6% das pessoas negras ou pardas compõem os 10% mais pobres. Quando se fala da fatia de 1% dos mais ricos do País, ela é composta por apenas 15,8% de pretos e pardos. Brancos também permanecem mais tempo nas salas de aula, são maioria esmagadora nos cursos superiores e representam pouco no total de analfabetos do Brasil.

“A diferença entre a renda dos negros e dos brancos é histórica. A mulher negra recebe menos da metade do salário da branca. Na comparação entre o homem branco e a mulher negra essa diferença pode chegar a 70%”, mostra levantamento feito por Gesner Oliveira, presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia. Para o economista, a base do problema está na educação. “A maior contribuição para a renda do indivíduo está nos anos de escolaridade básica.”

As cotas para negros nas universidades, apesar de aos poucos servirem como uma ferramenta para diminuir as diferenças no ensino superior, ainda são um tema muito polêmico. Há quem defenda que essa seja também uma forma de preconceito. Outros acreditam que a falta de oportunidade na educação não atinge a negros e a pardos de forma discriminatória, mas sim aos pobres de uma forma geral. O problema é profundo. Não são poucos os casos de cotistas que tiveram de abandonar a universidade por falta de recurso financeiro. As diferenças, como lembra a ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (entrevista abaixo), vêm de longe. O erro começou como foi feita a abolição da escravatura. Os negros ganharam a liberdade, mas continuaram sem ter direitos.

Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Carlos Alberto Reis de Paula é negro. Lembra que sempre teve acesso à educação de qualidade, mas nem por isso escapou de várias situações de preconceito racial. Já no atual cargo, em um evento oficial promovido por um ministério, via uma funcionária do cerimonial passar para lá e para cá atrás do ministro do TST. A tal moça perguntou a todos – brancos, é claro –, menos a ele onde estava o representante do tribunal. Na sua opinião, as cotas são necessárias. “Precisa haver uma política de universalização. Nela, os que são mais oprimidos e com menos recursos precisam de uma atenção especial. Não se trata de privilégios, mas de compensação.”

José Vicente, presidente da ONG Afrobras e reitor da UniPalmares, concorda com o ministro: “A educação, de qualidade, é a chave para a inserção”. Para o especialista, além das vagas para alunos negros, também é preciso que haja representatividade entre os que ensinam. Na Universidade de São Paulo, há cerca de 5.400 professores e, segundo José Vicente, apenas quatro são negros.

Na saúde, os contrastes também estão presentes. Recentemente, o ministro da Saúde, Agenor Álvares, reconheceu a presença do racismo e a desigualdade étnico-racial. Negros têm um atendimento pior que os brancos no sistema público, com diagnósticos incompletos e exames que deixam de ser feitos. Os atendentes do setor reclamaram, acharam o resultado injusto. O ministério propôs, a partir desse diagnóstico, ações como o treinamento dos profissionais e pesquisas junto aos movimentos negros que possam auxiliar na identificação de outros problemas.

O Atlas Racial Brasileiro de 2004 já mostrava um quadro depauperado. Os dados revelaram que a população negra brasileira tem mais dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Os brancos consultam-se mais vezes – 2,29 vezes por ano, ante 1,83 entre os negros. Entre as mulheres, mais diferenças. As brancas usam mais pílulas como contraceptivos, enquanto a laqueadura tem maior incidência entre as negras. Levantamento recente feito por pesquisadoras do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem) apontou que 27,3% das mulheres brancas nunca fizeram um exame clínico de mama. O índice sobe para 44,5, no caso das negras.

Apesar de a situação ser mais alarmante no Brasil, nos Estados Unidos, mesmo com garantias dadas pelos Direitos Civis, a discriminação também existe e chega ao sistema financeiro. Negros, ao lado dos latinos, encontram barreiras na hora de tomar empréstimos, como apontou recente estudo divulgado pelo presidente do Federal Reserve (o banco central dos EUA), Ben Bernanke. Ele admite que existe uma chance maior de esses dois grupos pagarem mais pelos recursos do que brancos. Bernanke prometeu um maior comprometimento da instituição no sentido de impedir a discriminação bancária.

Na cultura e na publicidade, no entanto, há menos sinais de desigualdade entre as raças do que se costuma ver em outros setores. Cobras & Lagartos, novela das 7 da TV Globo, teve como protagonista o casal de negros Thaís Araújo e Lázaro Ramos. Antes, a atriz já tinha sido protagonista em Da Cor do Pecado, na mesma emissora. Depois do sucesso do programa Cidade dos Homens, a tevê lança agora Antônia, que mostra a vida de quatro jovens negras da periferia de São Paulo. A Record, além do programa dominical apresentado por Netinho de Paula por quase cinco anos, investiu na série Turma do Gueto. A emissora também bancou um concurso feminino de beleza negra.

Esse movimento aconteceu quase ao mesmo tempo que a indústria brasileira passou a investir mais nas particularidades da raça negra. O resultado é que a publicidade, embora aos poucos, vem deixando de ser tão branca. “Antes, o consumidor negro não existia para a publicidade. Mas as empresas começaram a acordar para essa característica. Quem não der importância aos negros nesse mundo vai cometer um grande erro”, opina Ana Paula Cortat, vice-presidente de Planejamento Estratégico da Leo Burnett. A agência colocou no ar durante três anos uma série de campanhas da Fiat sobre preconceito. Numa delas, o racismo foi abordado de forma contundente, sem esquecer o bom humor.  

Recentemente, houve quem defendesse que a cor influencia na tolerância à falta de ética e à corrupção, segundo pesquisa de O Estado de S. Paulo/Ibope, publicada em 25 de setembro. Diz o texto: “Os que se autodeclaram brancos são mais implacáveis com a ética: 88% não votariam num corrupto”. E tem mais, segundo a reportagem. “Os que se autodeclaram pardos cobram menos e 85% não votariam em indiciados por corrupção; mas os que se autodeclaram pretos são menos rígidos com a ética: só 82% negam o voto a corruptos.”

Na segunda-feira 20 comemora-se o Dia Nacional da Consciência Negra. Para os que defendem ser esse um daqueles feriados inúteis, talvez os números de um país veladamente racista sirvam para marcar um início nas reflexões. Sem falar, é claro, o que ainda nem começou a ser discutido, como a inserção dos negros na política, a forma como são tratados pela polícia e pela Justiça. O preconceito é generalizado. No país dos desiguais, os pobres levam a pior. Se for pobre e negro, então...  

Ministra: “Somos racistas, sim. Há uma ideologia que sustenta ‘quanto mais branco, melhor’”

Matilde Ribeiro ocupa a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. Para a ministra, que responde diretamente à Presidência da República, não há dúvidas de que vivemos em um país racista, no qual os negros pouco conseguiram avançar desde a Abolição, há mais de um século. “Nós, os negros, não somos encorajados a estar em lugares freqüentados pela elite branca”, alerta.

CartaCapital: Por que a discriminação racial é tão presente no Brasil?

Matilde Ribeiro: O principal elemento propulsor é que a Abolição há 118 anos não foi completa. Não houve uma ação administrativa e política que incluísse os negros no mercado de trabalho, que lhes proporcionasse moradia. Eles saíram da senzala com uma mão na frente e outra atrás, entregues à própria sorte. Depois de quatro séculos de escravidão, essa população passa a viver em uma situação de marginalização e isso gera um exército de excluídos. O escravo não virou cidadão. E o que contribuiu para isso foi a visão política de que o negro era um ser de menor valia.

CC: Os brasileiros, apesar da miscigenação, são racistas?

MR: Somos racistas, sim. Negros, indígenas, ciganos vivem em exclusão porque há uma ideologia que a sustenta. Quanto mais branco, melhor. O mais curioso é que o brasileiro branco afirma não ser racista.

CC: É possível comparar o preconceito racial do Brasil com outros países?

MR: Talvez com a África do Sul, onde os direitos dos negros são uma conquista recente. No Brasil, apesar de vivermos num chamado espírito de cordialidade, isso não quer dizer que não haja um veto. Os negros estão na universidade? Sim, mas são minoria. Também não os vemos nos aviões, nos ambientes de trabalho. Nós, os negros, não somos encorajados a estar em lugares freqüentados pela elite branca. É importante a existência de uma política pública para descortinar essa realidade.

CC: De que forma a secretaria pode ajudar a minimizar as diferenças raciais?

MR: Por meio de mecanismos que tornem as pessoas mais conscientes de seus direitos. É responsabilidade do Estado brasileiro fazer valer a igualdade.

 

Fonte: CartaCapital, Paula Pacheco, 22/11/2006.


Opiniões sobre os artigos ...


Coletânea de artigos


Home