Convite ao ódio racial

 

A política de cotas raciais é desastrosa – e pode ser
trocada por cotas sociais

Foto: Paulo H. Carvalho/Cbpress/AE
A entrega do manifesto no Congresso: disparate

Está em curso uma proposta que aduba o terreno para a incitação ao ódio racial no Brasil. Na semana passada, intelectuais e representantes de movimentos negros estiveram em Brasília para entregar um manifesto aos líderes do Congresso Nacional. O documento, com 330 assinaturas, é um libelo em favor de dois projetos – a Lei de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial, que, juntos, numa de suas conseqüências mais temíveis, instituem o racismo no país.

Se os dois projetos forem aprovados, metade das vagas nas universidades federais terá de ser ocupada por negros. Assim, as vagas serão preenchidas segundo a quantidade de melanina na pele dos candidatos, e não pelo mérito acadêmico. Também haverá cotas para negros no serviço público, nas empresas privadas e até em propagandas na TV e no cinema. Em documentos oficiais, como a carteira do INSS e o prontuário médico, todos os brasileiros serão classificados pela "raça".

Além de pisotear a Constituição, tratando negros e brancos de forma desigual, a idéia de definir direitos com base na "raça" é um disparate científico e um equívoco histórico. Está sobejamente provado que raça, do ponto de vista biológico, não existe. Fundado pelo francês Joseph-Arthur de Gobineau (1816-1882) na obra Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas, o chamado "racismo científico" inspirou a criação do apartheid e do nazismo – e foi implodido, cientificamente, na segunda metade do século passado. A única raça aceita hoje pela ciência é a raça humana. "É evidente que o conceito de raça negra que adotamos tem conotação social, não biológica e científica. O fato é que os negros vivem pior que os brancos no Brasil. E isso precisa mudar", diz frei David Raimundo dos Santos, organizador do manifesto e diretor da Educafro, rede de 255 pré-vestibulares para negros.  

A adoção de uma identidade racial tem uma dificuldade prática: como definir quem é branco e quem é negro numa sociedade miscigenada e multirracial como a brasileira? Uma pesquisa de geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais concluiu que 60% dos brasileiros que se declaram brancos têm alguma ascendência indígena ou africana. Cientistas brasileiros encontraram em São Paulo indivíduos de fenótipo negro sem marcas genéticas africanas. Encontraram também o inverso.

  Foto: Felipe Araújo/AE
Protesto na USP em favor das cotas: a faísca

Na Universidade de Brasília (UnB), que adotou cotas para negros há dois anos, esse dilema foi enfrentado com uma solução de dar arrepios – um tribunal racial. Os "juízes", diante de fotografias dos candidatos, davam a sentença.

Uma forma simples de evitar esse despautério é trocar "cotas raciais" por "cotas sociais", o que beneficiaria os pobres – e os negros, que compõem a maioria dos pobres brasileiros. O recorte da "cota social" seria a renda, dado de mensuração objetiva, com a vantagem de não discriminar os brancos pobres. Um equívoco recorrente quando se discute a adoção de cotas raciais é desprezar o resultado das ações afirmativas mundo afora. O economista americano Thomas Sowell, pesquisador de políticas públicas da Universidade Stanford e negro, escreveu o livro Ação Afirmativa ao Redor do Mundo, no qual conclui que essas políticas fracassaram em todos os países onde foram adotadas. Aumentou um pouco a inserção dos negros, apenas um pouco, e a um custo desastroso. Nos Estados Unidos, onde as cotas raciais começaram a ser banidas em 1978, causou prejuízos às universidades e empresas sem que a situação socioeconômica dos negros fosse alterada sensivelmente. Na Índia, onde as cotas foram implantadas há cinqüenta anos para beneficiar os dalits, conhecidos como "intocáveis", as conseqüências foram ainda mais amargas. Numa única escola de medicina do estado de Gujarat, onde havia sete vagas destinadas aos dalits, 42 pessoas morreram num protesto contra as cotas.

Além de ignorar essas conseqüências, o manifesto em favor das cotas contém falsificações intelectuais. Uma delas é dizer que elas não comprometem a qualidade acadêmica. "Todos os estudos de que dispomos já nos permitem afirmar com segurança que o rendimento acadêmico dos cotistas é, em geral, igual ou superior ao rendimento dos alunos que entraram pelo sistema universal", diz o documento. VEJA tentou localizar os tais estudos. O Ministério da Educação, que avalia as instituições de ensino superior, desconhece pesquisa nesse sentido. Frei David Raimundo dos Santos disse a VEJA que um dos estudos teria sido produzido pela Universidade Federal da Bahia. "Os resultados foram excepcionais", afirmou. Na UFBA, porém, não há nada concluído sobre o tema. "Foi uma generalização, de efeito político, típica de manifesto", diz Paula Barreto, socióloga da UFBA e favorável à política de cotas raciais. Tratar um assunto complexo como panfleto político só vai produzir fumaça e mais desigualdade – e, é claro, ódio racial. Recentemente, um grupo de negros invadiu a Universidade de São Paulo em defesa das cotas. Houve tumulto. É só uma faísca. O grosso do conflito racial, se a insanidade prevalecer, ainda estará por vir.
 

Fonte: Rev. Veja, Alexandre Oltramari, ed. 1964, 12/7/2006.


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