Especial - ISTOÉ
Documentos mostram que o bispo/senador Crivella (PL-RJ) seria responsável por empresas que lavam dinheiro em paraísos fiscais
Desde 1999, um inquérito na Procuradoria da República investigava as relações de líderes da Igreja Universal do Reino de Deus com duas empresas – a Cableinvest Limited e a Investholding Limited –, ambas com sede nas Ilhas Cayman, paraíso fiscal britânico localizado no Caribe. Seis anos depois, a quebra do sigilo fiscal da igreja é pedida ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo procurador-geral da República, Cláudio Fonteles. O objetivo é investigar a existência de um esquema nos moldes da lavanderia montada por PC Farias. Para a Procuradoria da República, há indícios de que o esquema foi utilizado para a compra da TV Record do Rio, em 1992, e de outras emissoras. As duas offshore (as subsidiárias criadas em paraísos fiscais para fugir da cobrança de impostos) enviaram dinheiro ao Brasil, por meio de operações irregulares, para a conta bancária de bispos da Universal e também de “laranjas”. Documentos da Receita Federal comprovam essas transações. As remessas e recebimentos totalizam US$ 18 milhões (R$ 44,6 milhões) e comprovariam a evasão de divisas. ISTOÉ teve acesso a parte da documentação que deu início às investigações e levou o procurador Fonteles a pedir a quebra de sigilo. A revelação mais explosiva é a identidade de um dos donos das empresas Cableinvest e Investholding. Por trás da operação em Cayman estaria Marcelo Crivella, um economista carioca de 43 anos, filho de Matilde Bezerra, irmã de Edir Macedo, o principal líder da igreja. Crivella é bispo da igreja e foi eleito senador pelo PL do Rio, em 2002. Segundo o relatório da Procuradoria Geral da República de maio de 2003, ao encaminhar o caso para o STF, as investigações realizadas pela Interpol constataram que um dos acionistas da Cableinvest é Crivella. Agora, com a quebra de sigilo, os bancos podem liberar extratos que comprovarão quem é o dono das empresas. Nos papéis obtidos por ISTOÉ, aparecem a assinatura do senador, reconhecida por um cartório de São Paulo. Esses documentos foram recolhidos por ex-dirigentes que tinham acesso à contabilidade da igreja, a contratos de compra e venda (de emissoras de rádio e tevê, imóveis e até de uma aeronave), além de declarações de Imposto de Renda de líderes da Universal. Crivella já depôs este ano na Polícia Federal do Rio e negou ser dono das empresas. O império – A Igreja Universal está hoje em mais de 80 países, de acordo com seus líderes. Mas, para alcançar esse crescimento, deixou rastros pelo caminho: enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro, compra da Record através de laranjas, acusações de curandeirismo e charlatanismo, chutes na imagem de uma santa e dissidências. Mas nada se compara a essas denúncias. Segundo a Procuradoria, há evidências de como funciona o esquema de lavagem de dinheiro da igreja. Ele passa por uma triangulação entre doleiros no Brasil, as empresas de offshore nas Ilhas Cayman e bancos de investimento no Uruguai. Numa pequena mostra do esquema, ISTOÉ comprovou que, em 76 contratos, entre fevereiro e outubro de 1992, as duas empresas emprestaram US$ 6,3 milhões aos bispos, pastores e seletos simpatizantes da Universal. Entre outros negócios, esse dinheiro serviu para justificar a compra da TV Rio. Os empréstimos têm um prazo de cinco anos para ser quitados, mas não há definição quanto ao número de parcelas nem data do início de pagamento. Nesses contratos, por exemplo, Alba Maria da Costa, então diretora de várias empresas do grupo Universal, recebeu um total de US$ 843 mil em dez contratos. Outros R$ 56 milhões (valores atualizados), em operações já comprovadas pela Receita Federal, foram parar nas contas de chefes da igreja, como os bispos Honorilton Gonçalves, responsável pela superintendência executiva da Rede Record; João Batista Ramos da Silva, deputado federal (PFL-SP) e ex-presidente da Record; e Carlos Rodrigues, deputado federal (PL-RJ) e hoje rompido com a Universal. Rodrigues chegou a ter um aumento em seu patrimônio de 15.000%. O senador Crivella é figurinha fácil em processos que correram na Receita e no Ministério Público. Em 1990, ele e outros testas-de-ferro da Universal compraram a TV Record de Franca (SP), oficialmente, por Cr$ 45 milhões (hoje cerca de R$ 1,2 milhão). O dinheiro, como em outras aquisições do tipo, foi emprestado pela própria igreja. Na investigação de sonegação de impostos, a Receita, depois de quatro anos de trabalho, registra em seu relatório que os “empréstimos (foram) efetuados sem qualquer acréscimo, configurando-se em verdadeira doação”. As provas do esquema de lavagem de dinheiro mostram o poder de Crivella sobre as ações das duas empresas de Cayman. Em um comunicado enviado aos diretores da Cableinvest, em nome dos “proprietários beneficiários” da empresa, Crivella autoriza o então presidente do Banco de Crédito Metropolitano (que pertencia à igreja e passou a chamar-se Credinvest), o executivo Ricardo Arruda Nunes, a movimentar “uma nova conta bancária com o Union Chelsea National Bank”. Crivella não está sozinho nesta operação. Outro brasileiro que aparece como sócio das empresas de Caymam é Álvaro Stievano Júnior. A trajetória de Stievano no reino da Universal é pouco sutil. Depois de passar pela diretoria do banco de Macedo, tornou-se diretor da New Tour Turismo, também de propriedade da igreja. Em comum com os dois cargos, o manuseio de dólares. A dupla dinâmica assina, como acionistas e diretores da Investholding Ltd., outros dois documentos importantes, nos quais revelam suas relações com a empresa. “Eu, abaixo-assinado, sendo acionista e diretor da Companhia, por meio deste, designo Robert E. Axford ou, na sua ausência, Richard E. Douglas ou, na sua ausência, Ian A. N. Wight, ou, na sua ausência, Anne Mervyn para ser meu procurador (a ter minha procuração) para votar por mim e em meu interesse, para me representar em toda reunião anual da diretoria”, dizia a procuração. “Em cada compromisso permanecerá com totais poderes até revogação por parte do designador (abaixo-assinado) por escrito à companhia.” O documento dava poderes para votação na aprovação do balanço anual, reeleição de diretores e “outros assuntos sobre os quais o designado tenha recebido instruções expressas do designador”. Na ata da primeira reunião dos diretores da Investholding, no escritório da sede da empresa, em George Town, capital das Ilhas Cayman, ficou registrado que os dirigentes da empresa Robert Axford e Adrian Hammond seriam detentores de uma única ação da companhia cada um. Também que Axford ficaria como presidente, Crivella como diretor-vice-presidente e Stievano, diretor-secretário. Posteriormente, foi registrado o pedido de demissão dos diretores Axford e Hammond. O curioso é que o nome de Crivella aparece acima do nome do presidente da Investholding num relatório de reunião da empresa. Pelo menos até 1995, a mesma Investholding detinha cerca de 50% das ações do banco de Macedo. Vaivém – O caminho de volta do dinheiro ao Brasil também está esmiuçado: os recursos transferidos para Cayman vinham sendo depositados em agências do Banco Holandês, em Montevidéu no Uruguai. Os dólares eram depositados em agências do Holandês nos Estados Unidos que repassavam o montante à agência de Montevidéu, além de uma operadora de câmbio uruguaia, a Cambio Val. Lá, os dólares eram convertidos em cruzeiros, com isenção de impostos, e enviados à filial brasileira, nas contas das duas empresas. Pelo menos US$ 7,5 milhões chegaram ao Brasil através do Banco Holandês e outros US$ 10 milhões por intermédio da Cambio Val, conforme registram dezenas de boletos. O certo é que o dinheiro recolhido em mais de dois mil templos da Universal voltaram ao Brasil sem pagar imposto e foram para a conta de alguns poucos escolhidos. Essas irregularidades serão apuradas agora pelo STF. E podem abalar o império do bispo. * Valores convertidos
pelo dólar de agosto de 1998, quando surgiram as denúncias. Fonte: IstoÉ, Gilberto Nascimento, 25/05/2005. |