A
Constituição, segundo Tarso
Ali Kamel*
Percebi
que os problemas eram então ainda mais agudos. Mas eles não residem em
nossa Constituição e sim na interpretação que o ministro dá a ela. Uma
interpretação descabida. |
Depois
de ler o artigo sobre reforma universitária do ministro da Educação, Tarso
Genro, em resposta ao meu, o sentimento foi de frustração.
Ele não negou o que
escrevi, mas apenas se justificou: tudo o que propusera teria respaldo na
Constituição. Percebi que os problemas eram então ainda mais agudos. Mas
eles não residem em nossa Constituição e sim na interpretação que o ministro
dá a ela. Uma interpretação descabida.
Recapitulando o que escrevi: o anteprojeto é dirigista e levará a
Universidade, pública e privada, à tutela do governo e de movimentos
sociais.
As Universidades terão de estar voltadas ‘especificamente’ para o
desenvolvimento regional, segundo os interesses nacionais definidos pelo
governo.
Serão criados conselhos comunitários sociais, compostos ‘majoritariamente’
por pessoas externas às Universidades, ligadas a entidades de fomento, de
classe, sindicais e da sociedade civil.
A esses conselhos, caberá ‘examinar’ o cumprimento das regras estabelecidas
pelo anteprojeto, e seus relatórios deverão ser levados ‘obrigatoriamente’
em conta pelo MEC. Isso atenta contra o espírito livre que deve reger a
ciência.
O ministro disse que os artigos primeiro, terceiro e quarto da Constituição
respaldam o anteprojeto. Em nenhuma hipótese. A Constituição tem um capítulo
exclusivo dedicado à educação e outro à ciência.
Os artigos que o ministro cita não se referem àqueles capítulos, mas ao que
se intitula ‘dos princípios fundamentais’, que trata da definição do que
seja a República Federativa do Brasil e de seus valores. São aqueles que
estabelecem a união indissolúvel entre estados e municípios, formando um
estado democrático de direito, com princípios como a dignidade da pessoa
humana, pluralismo político, livre iniciativa.
Ora, é absolutamente abusivo extrair desses princípios gerais relativos à
nossa República qualquer regra específica para toda e qualquer atividade
humana no Brasil, especialmente a educação, a quem os constituintes
dedicaram um capítulo à parte.
A partir dos incisos segundo e terceiro do artigo terceiro (são objetivos da
República garantir o desenvolvimento nacional e combater a desigualdade
regional) não se pode, de maneira nenhuma, decretar que as Universidades
públicas e privadas devam estar voltadas ‘especificamente’ para o
desenvolvimento regional, segundo interesses nacionais, determinados pelo
governo.
Isso atenta contra a liberdade acadêmica e contraria o espírito livre que
rege a busca do conhecimento, que estão garantidos pela Constituição.
Se o ministro estivesse certo, as liberdades de expressão, de informação, de
criação estariam também limitadas pelos interesses nacionais, e não estão.
Um artista pode fazer o filme que desejar, sem se preocupar com mais nada
senão com o seu compromisso de fazer arte. Um cientista deve, como
estabelece a Lei de Diretrizes e Base da Educação, estudar todos os
problemas do ‘mundo’ e não apenas aqueles que o governo do momento
considerar prioritários.
Exoticamente, para justificar a política de cotas raciais, o ministro usa o
artigo quarto, que trata exclusivamente dos princípios que devem nortear
nossas relações internacionais: entre outros, autodeterminação dos povos,
defesa da paz, repúdio ao terrorismo e ao racismo.
O certo seria usar o último inciso do artigo terceiro, aquele que repudia
qualquer discriminação com base em cor ou raça. Ele não o faz porque sabe
que este inciso dá bem a medida de como as cotas raciais são
inconstitucionais: discriminar alguém, mesmo positivamente, é algo que a
Constituição veda.
O ministro também alega que os artigos 205 e 206 da Constituição, ‘não
somente determinam ‘a gestão democrática do ensino público’ mas também o
incentivo à ‘colaboração da sociedade’’. Diz isso para justificar, de um
lado, a obrigatoriedade de adoção de uma gestão colegiada, com eleições
diretas, e, de outro, a criação dos tais conselhos sociais, que tutelarão as
Universidades. É um jogo de palavras.
A Constituição fala de fato em ‘gestão democrática’, mas o anteprojeto impõe
uma ‘gestão democrática e colegiada’. Vou ser didático: a gestão pode ser
democrática, sem eleição direta e sem ser colegiada.
O presidente da República é eleito pelo voto direto, mas não governa de
maneira colegiada: indica pessoalmente seus ministros que podem ou não ser
ouvidos para tomada de decisão. Por que obrigar as Universidades a ter uma
gestão colegiada? Por que impor eleições diretas com voto de funcionário
administrativo e aluno? No caso das federais, deixar o presidente escolher o
reitor entre os que constarem de uma lista sêxtupla ou tríplice é prática
absolutamente democrática, já que o presidente foi escolhido pelo povo.
No caso das privadas, a forma de administrá-la deve ser a que a mantenedora
achar conveniente.
O ministro diz que o artigo primeiro legitima a ‘participação direta’ do
povo nas instituições. Essa expressão, que ele pôs entre aspas, não está na
Constituição.
Ali, há apenas a referência de que o poder emana do povo, que o exerce
através de seus representantes eleitos (prefeitos, governadores, presidente,
vereadores, deputados, senadores) ou diretamente, por meio de plebiscitos,
na forma da Constituição. Nada a ver com eleição direta de reitores em
federais e de pró-reitores nas privadas.
No que diz respeito à ‘colaboração da sociedade’, o artigo 206 se refere
claramente ao ensino privado: a educação é um dever do Estado e da família e
será ‘promovida e incentivada com a colaboração da sociedade’.
Ou seja, com a colaboração da iniciativa privada. Mesmo se o artigo se
referisse a conselhos, o que não é o caso, ele jamais poderia servir de base
a órgãos que visem a fiscalizar, mas apenas a promover e incentivar, coisas
muito diferentes.
Da mesma forma, a Constituição reconhece que o ensino é livre à iniciativa
privada, atendido ‘o cumprimento das normas gerais da educação nacional’.
O ministro quer ver nisto o respaldo à limitação que o anteprojeto faz ao
ensino privado. Mas o artigo se refere apenas ao respeito à lei, à norma,
que deve ser consoante com o texto constitucional. Isso nada tem a ver com
submeter as Universidades públicas e privadas às ‘políticas e planejamento
públicos’, pois estes são fruto das prioridades que o governante do momento
estabelece.
Por fim, não faz sentido a afirmação de que eu quero que as Universidades
não se subordinem à Constituição. O que eu quero é que o MEC não a
desrespeite.
* Ali Kamel é
jornalista. Artigo publicado em ‘O Globo’, em 25/01/2005. |