Congresso poupa bandido rico, aponta pesquisa

 

 


Das 646 propostas de combate à criminalidade apresentadas na última legislatura,
só duas eram contra corrupção e crimes de colarinho branco


A legislatura que entrou para a história como a que envolveu o maior número de parlamentares em escândalos, entre 2003 e 2007, também é autora de outra proeza até hoje pouco conhecida. Como se não bastasse o envolvimento direto com o mensalão e a máfia das ambulâncias, deputados e senadores apresentaram apenas dois projetos contra crimes do colarinho branco ou de combate à corrupção durante os quatro anos da legislatura passada. 

Esse descaso em relação aos crimes que envolvem, em geral, criminosos de grande poder aquisitivo contrasta com o elevado número de iniciativas apresentadas que pretendiam endurecer as penas previstas para os demais crimes. Das 646 propostas relacionadas ao combate à criminalidade, naquele período, 626 tinham o objetivo de agravar penas e regimes de reclusão, endurecendo a legislação penal. 

O levantamento faz parte do livro "Quem mandamos para a prisão – Visões do Parlamento Brasileiro sobre a Criminalidade", que será lançado no dia 15 de outubro em Brasília, pela socióloga Laura Frade.  

Base de sua tese de doutorado em Sociologia na Universidade de Brasília (UnB), o estudo também revela como os congressistas vêem os criminosos. “O outro”, “pouco instruído” e “doente” foram os principais adjetivos utilizados por deputados e senadores, em entrevistas colhidas pela pesquisadora, para qualificar os criminosos.

Esquecidos 

Dos dois projetos mapeados por Laura contra os crimes de colarinho branco, apenas um ainda tramita no Congresso. Trata-se do Projeto de Lei 209/2005, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS). O senador gaúcho quer acabar com a possibilidade de pagamentos de fiança ou decretação de liberdade provisória para os crimes de corrupção ativa e passiva.  

Apesar da relevância, o projeto ainda aguarda, desde fevereiro deste ano, parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, senador Valter Pereira (PMDB-MS). 

A outra proposição, o Projeto de Lei 1489/2003, do ex-deputado Carlos Nader (RJ), foi parar no arquivo da Câmara. O deputado pretendia penalizar, nos crimes de colarinho branco, os membros de conselhos das instituições financeiras. E estendia essa mesma responsabilidade penal ao presidente da República, aos ministros de Estado, aos governadores e aos prefeitos que tivessem interferência política nessas instituições financeiras estatais.  

Sem consciência 

Além desse levantamento inédito, Laura confirma que o casuísmo é regra quando se tenta regular a segurança pública no Brasil por meio de novas leis. É que, apesar dos inúmeros estudos produzidos pelas universidades brasileiras sobre o assunto, os parlamentares preferem se pautar por fatos chocantes relatados pela imprensa na hora de legislar. "O que eu acho mais grave é que isso não é uma coisa deliberada. Acho que é uma coisa automática. Os parlamentares não têm consciência dessas representações", revela. 

Nesta entrevista ao Congresso em Foco, Laura Frade explica como pensam os parlamentares conhecidos como especialistas em criminalidade e que acabam ditando o comportamento dos colegas no Congresso. Segundo a socióloga, são três as linhas de visão desses especialistas. "Tem gente que acha que o crime é genético, que é uma questão espiritual ou que está ligado à questão social", diz.     

Com a experiência de quem acompanha há mais de dez anos o Congresso, Laura, que também é mestre em Ciência Política e especialista em assessoria parlamentar, avalia que a doutrina conhecida como “tolerância zero” tem muita força entre os congressistas. E que a visão “geneticista” do problema revela uma inclinação em favor da pena de morte.  

"Patologias podem desencadear uma tendência ao crime. Essa visão extrapola isso. É a visão de que bandido bom é bandido morto. Porque ele não tem cura, não tem salvação e é geneticamente mau", explica. 

Os três Ps 

Como já mostrou este site (leia mais), uma ação na Justiça Federal contesta o desvio de mais de R$ 1 bilhão do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) para o pagamento de juros da dívida.  

O autor da ação, o procurador da República, Wellington Divino Marques de Oliveira, diz com todas as letras no seu texto ao juiz o que a população repete sobre a situação da Justiça brasileira: “No Brasil, só vão para a cadeia pretos, pobres e putas”.  

Laura Frade aponta o mesmo caminho do procurador em seu levantamento. "É na produção legal, nas propostas de lei dos parlamentares, que mais se confirma a crença dos Ps", confirma a pesquisadora.

 

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista com Laura Frade: 
 

Congresso em Foco – A sua tese de doutorado, que agora será lançada em livro, confirma o pensamento de que no Brasil só vão mesmo para cadeia os pretos, os pobres e as putas, o chamado três Ps?
Laura Frade –
O trabalho acaba confirmando a história dos Ps. Funciona como uma sinapse, pois o cérebro põe no automático a maior parte das coisas que ele pode. E da mesma maneira que ele põe no automático gestos e a maneira como se dirige, por exemplo, põe também visões de mundo. Crenças são coisas automatizadas, representações sociais. Então, a idéia de que a gente tem do criminoso acaba se transformando em algo automatizado. E foi exatamente isso que eu fui buscar levantar no Congresso. É na produção legal, nas propostas de lei dos parlamentares, que mais se confirma a crença dos Ps. Nas falas, você ainda vê visões mais humanitárias e que poderiam ajudar a transformar essas crenças. Mas quando chega na hora de fazer a lei sempre é para endurecer. Foram mais de 600 projetos apresentados na legislatura passada. Só dois se referiam a crime do colarinho branco, que estavam voltados para a elite. O restante era para agravar a pena ou o processo, que é o correspondente da doutrina vigente do Tolerância Zero. 

Por que a senhora escolheu mapear a legislatura passada?
Porque foi a legislatura que mais teve escândados envolvendo os próprios parlamentares. Eu pensei que, teoricamente, naquela legislatura os parlamentares deveriam se ver no mínimo como objeto de alguma criminalidade. Até se falou um pouco sobre isso, mas não havia nenhum projeto a esse respeito. Nada diferente.  

Na época da produção da sua tese, o Brasil estava sob os ataques do PCC e depois tivemos a morte do menino João Hélio no Rio de Janeiro. A produção de leis para endurecer os crimes comuns é sempre casuística?
Os projetos são produzidos casuisticamente. Isso fica muito claro toda vez que acontece alguma coisa na sociedade, como os ataques do PCC e do menino que foi arrastado. Aí tivemos um aumento na apresentação de projetos para conseguir mais verbas. O debate é casuístico. E é, muitas vezes, uma resposta à ação da imprensa. O que eu acho mais grave é que isso não é uma coisa deliberada. O parlamentar não acorda de manhã cedo imaginando como ele vai fazer isso. Acho que é uma coisa automática. Os parlamentares não têm consciência dessas representações. O assunto nunca é debatido na profundidade que ele merecia ter. O que me deixou mais chocada na fala deles – e eles reconhecem – é que não falta recurso, mas vontade política. 

A falta de vontade política é na aplicação correta do dinheiro nesta área?
Não. Mas falta fazer uma discussão que possa tratar da questão da criminalidade, porque, do jeito que está, a gente continua repetindo automaticamente a mesma coisa. A gente não pára para perguntar se isso está resolvendo a questão da segurança pública. Não está. Está se gastando muito dinheiro e estamos só replicando aquilo que gera a própria violência. Essa dissociação e a falta de coesão social. Essa separação entre rico e pobre.    

Como a senhora avalia os projetos do Executivo nesta área?
Eu não fiz uma avaliação dos projetos do governo. Isso seria outra tese. Mas o que eu acho é que a gente tem excelentes intenções. Temos um problema grave, mas não damos a resposta real. É como medicina tradicional e medicina preventiva. No fundo, a gente está respondendo ao que já ocorreu. Quando a lei deveria se antecipar a essas questões. Os parlamentares se informam por meio da imprensa sobre essas questões. Temos milhões de trabalhos de pesquisas que tratam da questão da segurança, mas dificilmente um parlamentar chega a acessar isso. 

E quem domina essa questão no Congresso?
São os especialistas, aqueles que têm formação jurídica, que conhecem estabelecimentos prisionais ou que já foram secretários de segurança pública. Que conhece essa realidade, mas são os que têm uma ideologia sobre o tema. Ai vai repetindo e não se muda nada. Não se abrem janelas no Congresso para uma discussão mais arejada sobre o tema.  

Em que partidos essas duas visões – mais humanista e de tolerância zero – estão mais presentes?
O tema não é uma questão partidária, nem estadual. É uma questão para esses especialistas. É uma característica da política brasileira. Não há uma correlação desses dois pensamentos com os partidos. São basicamente três linhas de visão desses especialistas. Tem gente, entre esses especialistas, que acha que o crime é genético, que é uma questão espiritual ou que está ligado à questão social. 

Como essa visão espiritual sobre o crime é tratada pelos parlamentares?
Está crescendo muito a bancada dos evangélicos e mesmo a dos católicos que tratam a questão da criminalidade como a falta de Deus no coração, para usar uma expressão dos parlamentares a respeito disso. Essas seriam pessoas que precisam ser salvas. Eu até acho sinceramente que eles têm uma excelente intenção, mas foi uma coisa que surpreendeu a academia, mas que não me surpreende. Pois as bancadas estão crescendo e essa é uma visão que tende a se estender mais ainda dentro do Legislativo, não só em relação a criminalidade. 

E como é esse conceito dos que acham que o crime é genético? Está restrito à idéia de que existem mesmo sociopatias e que essas são doenças genéticas?
Patologias podem desencadear uma tendência ao crime. Essa visão extrapola isso. É a visão de que bandido bom é bandido morto. Por que ele não tem cura, não tem salvação e é geneticamente mau.

Faz muito tempo que não surge no Brasil uma proposta de pena de morte que tenha força política para ser aprovada no Congresso. Por que essa idéia não vai adiante, considerando-se que a idéia sai da boca do povo toda vez que é cometido um crime hediondo? Essa visão é preponderante no Parlamento brasileiro?
A última proposta de pena de morte foi feita antes da revisão constitucional na década de 80. Esse grupo não é majoritário, mas é importante porque está entre os especialistas em segurança pública. Não são muitos, mas é um grupo que pode se expandir. Entre os adjetivos usados para definir os criminosos pelos parlamentares mapeados pela tese o primeiro é de que eles têm baixa instrução, ou seja, o criminoso é burro. Doente é o segundo adjetivo associado. E quando você vê que esse adjetivo é o segundo, certamente tem gente no meio dessas pessoas que acha que o crime é uma doença incurável. E que o criminoso não está relacionado com a elite porque a elite não tem baixa instrução.         

Mas por que a tese da pena de morte não vinga no Brasil?
Existem, sim, pessoas que pensam dessa maneira. Ela não vinga porque, de certa maneira, isso é feio num mundo de hoje, onde se fala de idéias de meio ambiente e de humanização. Também é difícil você assumir publicamente essa tese. Eu não digo que a idéia não teria apoio, pois grande parte da população até pensaria nisso. Mas o ambiente institucional e o mundo jurídico não tornam mais fácil uma tese dessa natureza. Isso, de alguma maneira, desestimulou essa visão. 

A questão da criminalidade e da violência está associada com o tráfico de drogas, principalmente no Rio de Janeiro. É possível resolver o problema com a legislação que temos no Brasil? É solução descriminalizar as drogas?
Houve apenas uma entrevista entre os parlamentares – e que não estou dando nome, pois meu compromisso foi manter isso sob sigilo – que foi muito interessante.  O parlamentar disse que sobre criminalidade não tinha novidade nenhuma. E que todo mundo propõe a mesma coisa há milênios. Mas dizia que a solução era descriminaliza as drogas. Mas todo vez que ele defendia isso, só apanhava, era vaiado ou ninguém dava bola para ele. Foi a única idéia diferente que eu ouvi em todas as entrevistas que fiz no Congresso.

Como pesquisadora, a senhora é a favor da descriminalização das drogas?
Sou a favor de qualquer coisa que possa reverter essa situação. Acho que é um novo paradigma. Não sei qual seria o procedimento, nem estou defendendo a descriminalização. Mas tem muita gente ganhando dinheiro legal e ilegalmente com isso. Se privatizarmos uma penitenciária, tem alguém ganhando com isso. A coisa precisa virar uma discussão séria nacionalmente. E não vira porque tem muita gente ganhando dinheiro com essa situação. E se o seu filho é pego com drogas, você vai fazer o impossível para que ele não seja preso. A lei é para todo mundo? É, mas mais ou menos. Claro que, se tiver um bom advogado, você terá uma probabilidade muito mais alta de não ir para a prisão. Ou, se tiver curso superior, irá para uma prisão especial. Então a própria lei contribui para diminuir a coesão social. A própria lei gera a base para a criminalidade.        

E o que mudou no combate aos crimes de colarinho branco desde que a senhora terminou seu trabalho?
A sociedade também pensa que o bandido é só pobre. Mas algumas coisas mudaram quando a gente vê as mulheres todas chiques levando quentinhas de comida fina para os maridos na prisão. Rico na cadeia é uma mudança. Se eu vejo aquilo, começo a acreditar que juiz também pode ser bandido e que político também. Na verdade, o Judiciário tem nas mãos a capacidade de fazer as coisas mudarem. Mas o nosso Direito é baseado em códigos. E se essas leis são feitas dessa forma, às vezes, o Judiciário pode ficar engessado para fazer essas mudanças. O fato de o presidente Lula, sem entrar nas questões partidárias, chegar à Presidência faz diferença. Pois o menino pobre da favela pensa que também pode. A mudança de crença é ver coisas que mudam as imagens que se tem automatizadas na cabeça.

 

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Fonte: Congresso em Foco, Lúcio Lambranho, 1/10/08.

 


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