Meio Ambiente
Proposta do Brasil sobre repartição de benefícios causa polêmica em reunião da CDB

 

Marcos Terena - representante do Comitê Inter-Tribal (ponto focal da CDB no Brasil) e faz parte da direção do Fórum Indígena Internacional sobre Biodiversidade (FIIB)


A
criação de um sistema internacional de reconhecimento e repartição dos benefícios oriundos dos conhecimentos das populações tradicionais e a adoção de regras definitivas para a aplicação das Tecnologias de Restrição de Uso Genético são duas das questões discutidas em Granada no último encontro que antecipa a 8ª Conferência das Partes da CDB (COP-8), que se realizará no Brasil em março de 2006.

GRANADA (Espanha) - Reunidos nesta semana em Granada, na Espanha, para uma última rodada de discussões sobre o Artigo 8j da Convenção sobre Diversidade Biológica da ONU - que trata dos conhecimentos das populações tradicionais - antes da 8ª Conferência das Partes da CDB (COP-8), representantes de governos, empresários e lideranças dos movimentos sociais apontam que duas questões deverão polarizar os debates no evento que se realizará no Brasil em março: a criação de um sistema internacional de reconhecimento e repartição dos benefícios oriundos dos conhecimentos das populações tradicionais e a adoção de regras definitivas para a aplicação das Tecnologias de Restrição de Uso Genético (Gurts, na sigla em inglês), também conhecidas como sementes Terminator.

Enquanto a discussão sobre as Gurts, nos dois primeiros dias do evento, permaneceu surpreendentemente morna, as temáticas relativas aos povos indígenas e às populações tradicionais revelaram que o debate ainda tem muito o que avançar até a COP-8. Questões como uma maior participação das lideranças indígenas nos colegiados de coordenação das atividades da CDB ou até mesmo a criação de um sistema de repartição de benefícios geraram polêmica entre representantes indígenas e governamentais. Por outro lado, as entidades representativas dos povos indígenas estão aproveitando a reunião em Granada para ganhar espaço e potencializar sua participação na COP-8: "Somente do Brasil, esperamos contar com cerca de 140 lideranças indígenas na COP-8", avalia Marcos Terena, que é representante do Comitê Inter-Tribal (ponto focal da CDB no Brasil) e faz parte da direção do Fórum Indígena Internacional sobre Biodiversidade (FIIB).

Para surpresa de alguns representantes de governo, a proposta de criação de um sistema internacional de repartição de benefícios, liderada pelo Brasil com o apoio das entidades indígenas brasileiras presentes, foi recebida com reticências pela FIIB. Marcos Terena explica que existe uma grande preocupação dos povos indígenas que vivem em países onde seus direitos não são reconhecidos quanto à possibilidade de um sistema internacional de repartição acabar por se transformar em mais um instrumento de opressão pelos estados nacionais: "A desconfiança do FIIB existe porque não ficou bem claro no conceito elaborado pelo governo brasileiro se o regime internacional vai garantir a representatividade dos povos indígenas como principais afetados ou se vai prevalecer o interesse dos estados", disse.

Diretora executiva do Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi), Fernanda Kaingang afirma compreender o temor demonstrado por alguns integrantes do FIIB, mas acha que a criação de um sistema de repartição é tarefa que não pode mais esperar: "A posição de alguns povos indígenas baseia-se no receio de que um sistema internacional seja impositivo e os torne ainda mais explorados, mas a questão central é que não podemos mais atrasar essa discussão. Se formos esperar que os conflitos internos sejam resolvidos, quando vamos estar prontos para começar?", indaga. Fernanda lembra que o Brasil, ao contrário de muitos outros países signatários da CDB, "já possui legislação sobre conhecimentos tradicionais e sobre biossegurança", o que credencia o país a liderar essa discussão.

Com ponto de vista diferente, a maioria dos representantes de governo avalia que a problemática dos povos indígenas nos paises que não reconhecem seus direitos é uma questão que deve ser tratada no âmbito das discussões multilaterais sobre direitos humanos e não incluídas nas discussões do Grupo de Trabalho sobre o Artigo 8j, no qual podem extrapolar as prerrogativas previstas para a CDB. Deixando claro que respeita as posições adotadas pelos indígenas, o representante do Itamaraty e chefe da delegação brasileira que veio a Granada, o diplomata Hadil da Rocha Viana, considera "uma pena" o temor demonstrado pelo FIIB em relação à proposta de criação de um sistema de repartição de benefícios: "Essa é uma discussão travada pelo Fórum Indígena e é claro que o governo brasileiro não tem que se manifestar sobre isso. No entanto, nós só temos que lamentar essa situação porque estamos notando nossos representantes indígenas empenhados em explicar que o Brasil já tem lei e que não temos como aceitar que as posições sejam niveladas de uma maneira minimalista num foro de discussão estrangeiro. No caso do Brasil, isso significaria um passo atrás", disse.

FORUM DE POPULAÇÕES TRADICIONAIS

Também partiu do Brasil uma outra iniciativa que deve aumentar o espaço de participação das populações tradicionais nos colegiados de discussão da CDB. Dirigente do Centro Ecológico de Mulheres Extrativistas da Ilha de Marajó (Cemem), Edna Marajoara está costurando uma proposta, que deve ser apresentada na plenária final de sexta-feira (27), de criação do Fórum Internacional de Populações Tradicionais sobre Biodiversidade: "Existe dificuldade de se colocar alguns temas relativos às populações tradicionais por intermédio do FIIB, que se concentra preferencialmente nas questões indígenas, daí a necessidade de se criar um espaço próprio de discussão internacional para essas populações", disse. A proposta, já alinhavada por Edna, está sendo negociada nos bastidores e já recebeu o apoio formal das comunidades tradicionais da África que estão presentes em Granada. O texto do documento afirma que, apesar de suas algumas semelhanças, as populações tradicionais e os indígenas têm especificidades que devem ser levadas em conta.

Na opinião de Fernanda Kaingang, a proposta de criação do Fórum Internacional de Populações Tradicionais é bem vinda. A dirigente do Inbrapi avalia que o Brasil "inovou mais uma vez ao trazer para este debate representantes de quilombolas e de comunidades extrativistas". Alguns membros do FIIB demonstraram nos corredores desacordo com a eventual criação de um novo fórum, mas Marcos Terena acredita que, apesar de a proposta ainda não ter sido discutida pelo grupo, não devam existir maiores resistências: "Nesta reunião estão muitos novos atores e é natural que eles procurem ocupar os espaços políticos que estão colocados com a proximidade da COP-8", disse o representante do Comitê Inter-Tribal, que acompanha as discussões relativas à CDB desde a Eco-92 realizada no Rio de Janeiro há catorze anos.

Além dos novos fóruns de atuação política, é importante para a delegação brasileira que os representantes das comunidades tradicionais e indígenas ocupem espaços de discussão já nesta reunião do Grupo de Trabalho sobre o Artigo 8j e também na reunião de um outro GT _ a ser realizada também em Granada entre os dias 30 de janeiro e 3 de fevereiro _ que tratará das modalidades de acesso aos recursos genéticos e da repartição de seus benefícios: "Queremos que este GT sobre o Artigo 8j possa fazer recomendações ao outro grupo, no qual nossas oportunidades de manifestação serão muito mais restritas", afirma Fernanda. Nesse sentido, está sendo estudada pela coordenação do GT a formação de uma comissão com cerca de 20 representantes indígenas que ajudará na transição entre as discussões das duas reuniões.

 

Fonte: Ag. Carta Maior, Mauricio Thuswohl, 25/01/2006.


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