A
complicada arte de ver
Rubem Alves* |
21/11/2004
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Ela
entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu
fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua
loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto
as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz
uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera
centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas,
cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca
havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz
se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um
vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser
comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que
o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora,
tudo o que vejo me causa espanto." |
Ela
se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de
livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a
Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum
entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe
causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está
louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".
Ver é
muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos
sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é
idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de
fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não
pertence à física.
William
Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês
floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma
epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a
morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão,
dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só
viam o lixo.
(...)
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na
companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no
subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes
adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à
mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao
constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele
quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".
A
diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos
estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por
sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas
- e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário.
Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa
dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que
vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.
Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os
olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos
brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro
disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do
céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas
flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão
e olha devagar para elas".
Por
isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a
ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor,
um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar
os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o
Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos
vagabundos"...
*
Rubem
Alves, 71, colunista do Jornal Folha de S. Paulo, educador e escritor.
<rubem_alves@uol.com.br>
Fonte: Folha de S. Paulo, 26/10/2004
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