A
Ciência sob pressão
Vítimas do conhecimento que acumulam, pesquisadores são perseguidos no
Brasil
e no exterior, enfrentando uma guerra contra seus direitos individuais
"Fui ameaçada de morte e precisei de
escolta para lançar meu livro" Débora Diniz, especialista em medicina
fetal que defende o aborto em casos de má-formação. |
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Única
brasileira a receber o prêmio Manuel Velasco-Suarez, a mais alta
honraria concedida pela Organização Panamericana de Saúde (Opas), a
antropóloga Débora Diniz nem teve tempo para comemorações. Foi demitida
da Universidade Católica de Brasília, onde lecionava, no mesmo dia em
que colocou a mão no troféu concedido por seu trabalho na área de
medicina fetal. O episódio, ocorrido há cinco anos, ganhou repercussão
internacional, especialmente depois que a Pró-Vida, uma organização
ligada à Igreja Católica, começou uma campanha contra a pesquisadora, a
quem chamava de “a abortista”. Desde então, Débora teve de trocar quatro
vezes o número de seu telefone e perdeu a conta das ameaças que recebeu
(uma delas foi de morte). Depois de anos exigindo retratações, a
especialista chegou no início deste ano à mais alta instância do
Judiciário. Sua ação por danos morais corre no Supremo Tribunal Federal
(STF). A justificativa: o desrespeito à liberdade de cátedra. |
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Criada na Alemanha
por volta de 1830, a cátedra é um sistema que garante a um professor
universitário autonomia de pesquisa, independentemente do local onde
trabalha. Na prática, isso significa que ele não pode ser demitido nem
pressionado para mudar sua linha de estudo. “A idéia é preservar a
produção do conhecimento, livrando a ciência dos conflitos de
interesse”, diz Flávio Edler, presidente da Sociedade Brasileira de
História da Ciência (SBHC).
No Brasil, os
problemas começaram a surgir em universidades particulares,
principalmente as confessionais – nome dado às instituições ligadas a
grupos religiosos. Nesses centros são grandes as chances de censura
sempre que os dogmas seculares entram em xeque. Foi o que aconteceu com
Débora Diniz, cujos estudos comprovaram os benefícios do aborto para as
mulheres em casos de má-formação fetal. Consultada por ISTOÉ, a reitoria
da Universidade Católica de Brasília não se pronunciou até o fechamento
da edição. |
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"Tentaram destruir minha
reputação porque alertei contra um medicamento” Anthony Wong,
infectologista. |
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Mas esse silêncio
tem prazo de validade. A ação que chegou ao STF promete abrir uma
discussão pioneira. Afinal, universidades e centros de pesquisa
confessionais recebem boa parte dos recursos do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para se ter uma idéia,
a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, de São Paulo e do
Rio Grande do Sul recebem juntas 4% das verbas liberadas pelo CNPq. É
mais do que ganham a Universidade Federal da Paraíba, a Universidade
Federal de Goiás, a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e o
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, núcleos fundamentais para o
desenvolvimento do Norte e do Nordeste.
Evidentemente, a
solução não é a limitação das verbas para os núcleos religiosos de
pesquisa. O crucial é garantir que eles mantenham seus preceitos bem
longe dos laboratórios. Além disso, quem decide pagar por um curso
universitário nessas escolas está em busca de conhecimento científico,
puro e simples. É o que mostra um levantamento da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais segundo o qual menos de 2% dos
universitários escolheram a instituição levando em conta a orientação
religiosa.
A violação da
liberdade científica também ocorre em universidades e agências de
pesquisa públicas. Chefe do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox)
do Hospital das Clínicas de São Paulo, o infectologista Anthony Wong fez
um alerta recente aos riscos oferecidos pelos remédios contra dor de
cabeça, como o Tylenol. Para ele, o excesso do medicamento aumenta as
chances de falência do fígado, podendo levar à morte.
Segundo o hospital, o laboratório Aché encaminhou uma carta sugerindo a
censura ao especialista devido ao |
SIGILO O presidente da Eletronuclear,
Othon Luiz Pinheiro da Silva (acima), e o diretor do IPEN, Cláudio
Rodrigues (abaixo), são proibidos por lei de revelar os segredos da
centrífuga brasileira de enriquecimento de urânio. |
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tom alarmista de
suas declarações. Wong, cujo trabalho é reconhecido internacionalmente,
foi submetido a uma investigação, mas o rigor de seus estudos falou mais
alto: “Minhas opiniões foram comprovadas cientificamente por meus
colegas.” |
Na Universidade de
São Paulo (USP), o farmacologista Gilberto De Nucci comprou briga ao
afirmar que pelo menos 80% dos remédios em circulação são ineficazes:
“Eles servem para alguma coisa, mas não exatamente ao que se propõem.”
Pioneiro na bioequivalência, área que realiza testes de eficiência dos
genéricos antes de chegarem às farmácias, De Nucci teve um de seus
laboratórios fechado no final do ano passado pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa). Segundo os laudos oficiais a que ISTOÉ
teve acesso, normas para a compra de medicamentos não foram seguidas.
Mas no centro desse imbróglio residem conflitos de interesse entre a
USP, que abrigava o laboratório, empresas farmacêuticas, a Anvisa e o
próprio De Nucci.
Em Mato Grosso do
Sul, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente encomendou a um grupo de
especialistas da Universidade Federal e da Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa) a análise do relatório de impacto
ambiental da siderúrgica EBX, que está sendo instalada pelo empresário
Eike Batista em Corumbá. Coordenados pela bióloga Débora Calheiros, os
peritos descobriram, em meados de 2006, que o empreendimento, da forma
prevista originalmente, causaria acúmulo de mercúrio, um metal pesado e
cancerígeno.
No dia da
audiência pública |
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"A Anvisa me persegue porque meus estudos
comprovam a ineficácia da grande maioria dos remédios aprovados pela
agência e que circulam no mercado” Gilberto De Nucci, farmacologista da
USP que teve seu laboratório fechado no final de 2006. |
marcada para a
discussão do projeto, uma rádio de Corumbá pediu que os moradores
espantassem os ambientalistas à bala. O caso foi parar na Justiça.
“Voltamos à era das perseguições inquisitórias”, diz Débora. |
Existem ainda os
cientistas que trabalham monitorados em tempo integral porque lidam com
áreas estratégicas. No final de 2005, um especialista da Embrapa, que
aceitou conversar com ISTOÉ sob condição de sigilo, foi chamado ao Gabinete
de Segurança Institucional, em Brasília. Lá, entregaram-lhe uma pasta
confidencial contendo uma investigação sobre sua vida pessoal e
profissional. “Disseram que poderiam ajudar ou atrapalhar minhas pesquisas”,
diz. “Fiquei constrangido.” Hoje ele trabalha para os militares e não pode
dar detalhes do projeto do aeromodelo pilotado via satélite que escapa de
radares.
Atual presidente da
Eletronuclear, o almirante reformado Othon Luiz Pinheiro da Silva foi o
engenheiro que projetou a centrífuga brasileira de enriquecimento de urânio
nos anos 80. Seu maior segredo, ainda mantido sob sete chaves, reside numa
tecnologia que usa um campo magnético para fazer as engrenagens da máquina
girarem sem atrito, resultando numa economia de energia. Em 1994, ele teve
seu telefone residencial grampeado e o apartamento bisbilhotado por um
espião americano que se mudou para o prédio onde o engenheiro morava. “Isso
quase causou um incidente diplomático”, diz. Por isso, Othon passou a adotar
a política do isolamento: “Só falo de trabalho com meus funcionários.” Essa
também é a estratégia de Cláudio Rodrigues, diretor do Instituto de
Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Para profissionais como esses, a
pena por vazar segredos científicos é a prisão.
Nos EUA, a pressão do
Estado toma conta dos laboratórios desde julho de 2006, quando o presidente
George W. Bush determinou que todos os estudos fossem revisados antes da
publicação. Um levantamento feito pela Union of Concerned Scientists (UCS)
mostrou que a política do “cala a boca” já afeta oito das agências que fazem
estudos ambientais e outras cinco da área de saúde. No FDA, órgão
responsável pela liberação de medicamentos, 18,4% dos cientistas afirmaram
ter feito “correções” em suas pesquisas. No Congresso americano, os
deputados tentam aprovar uma legislação que restabeleça a integridade
científica. No Brasil, a comunidade acadêmica ainda aguarda uma lei que
acabe de vez com essa pressão.
NO
PASSADO ...
A IGREJA ERA A VILÃ DOS CIENTISTAS |
HOJE
...
O ESTADO E AS EMPRESAS TAMBÉM PERSEGUEM |
PARACELSO (1493–1541). Lançado ao ostracismo por seu método de
tratamento de doenças à base de fármacos. |
GALILEU (1564–1642). Condenado e preso pela Igreja Católica ao defender
que a Terra girava ao redor do Sol. |
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YURI BANDAZHEVSKY. O médico está preso há sete anos por criticar a
política estatal de tratamento das vítimas de Chernobyl. |
ALEXANDR NIKITIN. Processado ao alertar para os riscos ambientais que
submarinos naufragados na Noruega podem causar. |
KEPLER (1571–1630). Exilado em Praga pela Igreja por ter provado que os
planetas se movem em órbitas elípticas. |
LAVOISIER (1743–1794). Pai da química, ele foi decapitado durante a
Revolução Francesa acusado de traição. |
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JAMES HANSEN. O pesquisador da Nasa está proibido de dar entrevistas e
de falar sobre o aquecimento global. |
VIL MIRZAYANOV. O russo foi preso ao denunciar o uso de cientistas na
fabricação de armas químicas. Hoje vive nos EUA. |
Fonte: Rev. IstoÉ, Júlio Wiziack, 14/2/2007. |