Chinês, mas nem tanto

 

No Brasil, qualquer atividade que cresça acima de 10% desperta comparações com
o país asiático – às vezes sem o menor sentido

 

Já virou lugar-comum. Sempre que alguma atividade da economia brasileira exibe taxa de crescimento de dois dígitos, superior a 10%, aparece logo alguém para afirmar que se trata de um "ritmo chinês". Essa nova mania nacional poderá ser conferida nesta quarta-feira, quando o IBGE divulgará o resultado do desempenho do PIB brasileiro no primeiro trimestre deste ano. Se algum dos setores avaliados avançar numa velocidade acima ou próxima de 10%, não tenha dúvida: surgirá um analista, jornalista ou membro do governo festejando o "ritmo chinês". A indústria do álcool, por exemplo, vive um "momento chinês", comemoram os usineiros. Assim como as concessionárias de carros, que vivem dias de "vendas chinesas". O consumo dos miseráveis atendidos pelo Bolsa Família? Progridem a "taxas chinesas", dizem os sociólogos.  

Com tanto "crescimento chinês" por aqui, fica até difícil entender por que o PIB – o produto interno bruto, soma de tudo o que país produz em determinado período – avança tão devagar no Brasil, numa média inferior a 3% ao ano na última década, enquanto a China de verdade se expande três vezes mais rápido... A resposta está nos números. O PIB chinês realmente cresce num ritmo de 10% ao ano, mas alguns segmentos que compõem o indicador expandem-se num ritmo ainda mais rápido. Ou seja, no país asiático, o tal do "ritmo chinês" é bem mais vigoroso. Tome-se o comércio de carros. Se aqui o crescimento foi de 16% no primeiro trimestre – o que está longe de ser ruim, pelo contrário –, por lá o avanço foi de estrondosos 39% em igual período. Vendas de roupas, móveis, comida... Praticamente tudo cresce numa velocidade bastante mais frenética na China (veja o quadro), o que se traduz numa taxa de avanço do PIB que só encontra paralelo no caso da Índia. No primeiro trimestre deste ano, o varejo chinês registrou um crescimento médio de 15% em relação a igual período do ano passado, contra um avanço de 7% no Brasil.  

Isso não significa, obviamente, que algumas atividades não estejam aquecidas no Brasil. Certos setores não têm do que reclamar. A conjunção de estabilidade econômica, queda na taxa de juro e aumento da renda da população despertou o consumo dos brasileiros, depois de anos a fio sob demanda reprimida. Nunca se venderam tantos carros no país. Esse boom repentino pegou as montadoras de surpresa e há fila de espera para alguns modelos. A facilidade de crédito tem sido um dos motores desse crescimento. Milhões de brasileiros estavam à margem do consumo no período em que o país viveu submerso nas trevas da hiperinflação e juros escorchantes. Isso mudou. A taxa básica de juros (a Selic) foi reduzida, na semana passada, para 12% ao ano – o menor patamar da história do país. Tudo isso estimula o consumo. Tanto que, em artigo no jornal Folha de S.Paulo, o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros chegou a afirmar: "Eu não tenho medo de dizer hoje que os juros não são mais um limitador importante de nosso crescimento".  

Ao mesmo tempo, ficam cada vez mais evidentes as outras barreiras que permanecem inamovíveis, como a tributação e a burocracia excessivas e disfuncionais. O resultado é que o Brasil está, sim, bem melhor do que esteve no passado recente, mas o conjunto da economia ainda está longe de vislumbrar o tal do "ritmo chinês". Mesmo porque, ao contrário do que acontece no Brasil, onde só agora o consumo começa a despertar após mais de uma década de letargia, por lá o crescimento tem sido espetacular há anos. E seguirá crescendo por no mínimo uma década, prazo estimado para o país concluir sua transição de uma sociedade rural para urbana. Hoje, 60% dos chineses ainda vivem na zona rural. Já no Brasil, mais de 80% dos habitantes moram em cidades. Quanto mais o país asiático se urbaniza, mais rápido substitui arados medievais por computadores. Com isso, crescem a produtividade e o consumo – o que ajuda a explicar as altas taxas de crescimento chinesas, similares às brasileiras do milagre econômico da década de 70.  

Dada a diferença no estágio de desenvolvimento entre os dois países, não faz sentido imaginar que a economia brasileira voltará a crescer acima de 10% como a China de hoje – ou como o próprio Brasil da década de 70. O Brasil deve descobrir como progredir mais aceleradamente, mas num "ritmo brasileiro", e deixar de se iludir com o "ritmo chinês".

 

 


Fonte: Rev. Veja, Cíntia Borsato, ed. 2012, 13/6/2007.

 


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