Eleitor brasileiro tolera corrupção
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Brasil
Quando o fantasma do rei aparece, no primeiro ato de Hamlet, o personagem Marcelo, um cidadão comum, observa: "Há algo de podre no reino da Dinamarca". O raciocínio embutido na frase, uma das mais famosas do teatro de William Shakespeare, é recorrente na história humana – e o Brasil pode estar vivendo um momento semelhante agora. O rei é um símbolo. Se ele virou alma penada, é sinal de que o país inteiro está doente. Mergulhado numa crise política que já se arrasta por onze meses, e ainda está longe de se esgotar, o Brasil começa a flertar perigosamente com aquilo que se poderia batizar de "síndrome de Marcelo": a tese de que governo e sociedade são igualmente corruptos e coincidem na desorientação moral. Se não bastassem todas as mentiras e escândalos em torno do mensalão, outras notícias reforçam a impressão de que os pilares da ética desmoronaram no âmbito institucional: um general interrompe a decolagem de um avião e tira dois passageiros do vôo para embarcar com sua mulher; o Exército negocia com traficantes para reaver armas roubadas; juízes defendem com unhas e dentes a prática do nepotismo e fazem greve para preservar vantagens econômicas desproporcionadas.... Será que essa lassidão moral nas camadas superiores da hierarquia política do país se espalha pelo tecido social? Será que os deslizes do cotidiano, por sua vez, impedem que se enxerguem em sua plenitude os desmandos dos governantes? São questões interessantes para cujo estudo o Brasil é hoje um laboratório quase perfeito. Não existem respostas fáceis. Os intelectuais tendem a acreditar na pureza natural do povo e na corrupção mandatória de qualquer governante ou membro da elite de um país. Será assim mesmo? "O problema está em nós. Nós como povo. Nós como matéria-prima de um país", escreveu recentemente o cronista João Ubaldo Ribeiro sobre o tema da corrupção. Ver defeitos no povo não é a regra. João Ubaldo é exceção. Não há dúvida de que a ética dos governantes se inter-relaciona de alguma forma com a ética dos cidadãos. Essa relação é muito complexa.
É possível que um povo dotado de rígidos padrões de conduta moral, com forte base religiosa e predominância mundial na filosofia e na música erudita se acumplicie com um governo de loucos assassinos? A Alemanha nazista é uma prova recentíssima de que a resposta à pergunta acima é, apavorantemente, sim. Por outro lado, é possível que um povo, tendo passado 75 anos sob um regime de quase-escravidão, submetido a uma potência estrangeira e a uma ideologia desanimadora e cruel, possa em poucos anos voltar ao caminho da prosperidade, do progresso social e tecnológico? Aqui a resposta também é sim. O exemplo são os países do Leste Europeu, os satélites soviéticos que, uma vez livres da repressão, se tornaram nações progressistas e de enorme ebulição econômica e avanço social. Qual o ponto em comum entre os dois exemplos extremos? Em ambos os casos, as guinadas, para o mal ou para o bem, foram feitas inicialmente por meia dúzia de líderes titanicamente capazes. Os povos seguiram os ordenamentos vindos de cima. O que isso significa? Significa que para o bem ou para o mal o povo, em sua condição coletiva, pode ser levado para um lado ou outro pelas suas lideranças – independentemente das convicções individuais de cada uma das pessoas. Significa também que o exemplo que vem de cima é crucial. Se ele é bom, incentiva o bom comportamento individual. Se são maus os exemplos, mais as pessoas vão se sentir liberadas para recorrer a "jeitinhos" e "tirar vantagens". Na semana passada, o Ibope divulgou os resultados de um estudo intitulado "Corrupção na política: eleitor vítima ou cúmplice?". Duas mil pessoas foram entrevistadas ao longo do mês de janeiro, e as conclusões são incômodas. Quase 90% dos entrevistados declararam que os políticos brasileiros agem pensando apenas em seu próprio benefício, e 82% dizem que a classe política brasileira em geral é corrupta. Para 95% dos entrevistados, superfaturar obras públicas ou desviar recursos do governo para fins próprios são práticas inaceitáveis, e 89% consideram o caixa dois igualmente inadmissível. As coisas se confundem na segunda parte do levantamento. De maneira abstrata, o brasileiro se acha melhor do que os políticos que o representam: 64% consideram que o povo, em geral, é honesto. Ao mesmo tempo, 75% dos entrevistados admitiram que, se eleitos para um cargo público, poderiam "cair na tentação" de se locupletar. E 98% afirmaram que pessoas de suas relações já praticaram pelo menos um ato condenável – como pagar suborno para escapar de uma multa, apresentar atestados médicos falsos ou consumir produtos piratas. Os resultados da pesquisa revelam uma dicotomia: a população repudia firmemente a corrupção, mas comete e tolera desonestidades. Constatações desse tipo não são propriamente uma novidade. As ciências sociais brasileiras têm uma longa tradição de análise desse paradoxo. No clássico Raízes do Brasil, de 1936, Sérgio Buarque de Holanda usou a expressão "homem cordial" para designar a tendência do brasileiro de se guiar sempre por princípios familiares e afetivos, mesmo no trato de questões que deveriam exigir uma postura distanciada e abstrata. O antropólogo Roberto DaMatta retoma e atualiza esse raciocínio ao falar de uma "ética da casa", que coloca os interesses privados à frente de tudo o mais e só reconhece direitos a quem é parente, amigo ou companheiro. A implicação mais evidente dessa tendência a tratar o Estado como se fosse uma extensão da própria casa é o nepotismo. Mas, em certa medida, a corrupção também é determinada por ela. O escritor argentino Jorge Luis Borges, em um ensaio irônico sobre seus compatriotas, deixou uma nota que poderia valer para o Brasil: "O Estado é impessoal; o argentino só concebe uma relação pessoal. Por isso, para ele, roubar dinheiro público não é crime". A pesquisa do Ibope e argumentos desse tipo parecem dar razão aos que pensam que o público e o privado estão numa relação inextricavelmente doentia no Brasil. O antídoto contra o pessimismo é a história recente de conquistas institucionais do país. Contrariando o que disse Sérgio Buarque de Holanda numa das passagens mais amargas de Raízes do Brasil, a democracia já deixou de ser um mero "mal-entendido" no país. Até as tradições do homem cordial vão sendo, aos poucos, derrotadas – o fim do nepotismo no Judiciário é um bom exemplo disso. Numa democracia, além disso, a idéia de que sociedade e governo são a mesma coisa não se sustenta. Ela pertence a outras realidades. O mais chocante nas transgressões atuais do governo é o fato de que elas são um ataque organizado à ética pública. "O partido que prometia ser republicano e anunciava um governo transparente reitera os velhos costumes dos coronéis. É um escândalo", diz o filósofo Roberto Romano, da Unicamp. Na infame entrevista de Paris, o presidente Lula tentou desculpar o caixa dois com o argumento de que essa contabilidade alternativa é uma praxe antiga no Brasil. Diante dos fatos que vão derrubando seus auxiliares mais próximos, ele mantém o discurso de que nunca soube da corrupção. Os deputados pegos com a mão no valerioduto defendem-se com a teoria de que "só tomaram o dinheiro para pagar dívidas de campanha", como se a finalidade dada a recursos ilícitos de algum modo os tornasse menos sujos. E o argumento é aceito no Congresso. O cinismo diante dos descalabros políticos ganhou sua imagem exemplar na semana passada, com a grotesca dancinha com que a deputada Angela Guadagnin comemorou a não-cassação do seu colega mensaleiro João Magno. Não há argumento que permita desculpar as contravenções que os brasileiros cometem no dia-a-dia – muito menos o de que o mau exemplo vem de cima. Assim como os desmandos petistas, as sonegações, as trapaças e mesmo aqueles gestos que não são contra a lei, mas quebram a civilidade, são um atraso para o país. Mas imaginar que em algum momento futuro os dilemas éticos vão sumir é irreal. Os conflitos de moralidade são um dos grandes temas do pensamento contemporâneo. Sua expressão mais dramática está nas falas do papa Bento XVI. Em sua carreira de teólogo, ele sempre atacou o relativismo – a teoria de que não existem critérios éticos absolutos. "Caminhamos para uma ditadura do relativismo, que faz do ego e dos desejos de cada indivíduo a medida de todas as coisas", disse ele pouco antes de ser eleito sucessor de João Paulo II. Bento XVI gostaria de restaurar a lei divina como parâmetro da justiça, mas as alternativas à doutrina religiosa são inúmeras no mundo atual.
Em meio ao cipoal de
teorias, realizar escolhas éticas é ainda problemático. O jornal americano
The New York Times criou uma seção semanal, meio séria, meio humorística,
dedicada a discuti-las. "Se todas as pessoas consultassem o jornal antes de
cometer uma estripulia, o mundo ficaria bem melhor", brinca Randy Cohen,
titular da coluna O Eticista. Na ética cotidiana, chegar ao certo ou ao
errado depende da reflexão contínua. Alguns temas, como o do aborto, da
eutanásia, do casamento homossexual e da clonagem, são verdadeiros campos de
batalha. Mas a concordância em torno de muitos valores também cresce. A
discriminação por sexo ou raça, por exemplo, é hoje universalmente condenada
– e não era assim há menos de um século. Não há por que acreditar que o fim
do mundo está à vista. A seguir, VEJA propõe quarenta questões éticas do
cotidiano e arrisca-se a dar as respostas. Leia-as como nossa opinião,
baseada no senso comum e na orientação de filósofos e professores de ética.
Divirta-se.
Pedir ao avô ou a uma amiga grávida que compre ingressos na fila
preferencial é passar os outros para trás?
Pagar a alguém para ficar na fila no seu lugar ou pedir esse favor a um
amigo prejudica os demais?
Consumir produtos importados de países que comprovadamente usam mão-de-obra
escrava equivale a aprovar essa prática?
Um
motorista profissional que precisa da carteira de habilitação para
sobreviver e alimentar mulher e filhos recebe uma multa que implica a perda
do direito de dirigir. É ético ele pedir à mulher que assuma a
responsabilidade pela multa?
Uma
gravadora anuncia que não tem planos para lançar no Brasil determinado DVD.
Esse mesmo DVD é vendido em cópias piratas. Nesse caso, é ético recorrer ao
mercado negro?
Os
brasileiros trabalham quatro meses por ano para pagar impostos que serão
desperdiçados por gestores incompetentes ou vão parar, em parte, no bolso de
corruptos. Portanto, obter um desconto no consultório médico aceitando a
proposta de pagar "sem recibo" é não apenas uma vantagem pessoal, mas também
vingança contra o governo. Certo?
Mas
o valor que se paga em impostos não é devolvido na forma de benefícios. Não
é realmente legítimo buscar atalhos para diminuir a carga tributária
pessoal?
Registrar um imóvel por um valor mais baixo para escapar dos impostos é
prática corriqueira no Brasil. Isso é aceitável?
Avançar o sinal vermelho à noite, quando quase não há movimento, aumenta a
segurança contra assaltos. Isso é correto?
É
certo avançar na faixa mesmo quando não há pedestres passando?
Usar
o telefone da empresa para interurbanos particulares é uma maneira de
economizar. Mas isso é aceitável?
É
melhor ter meninos malabaristas, engolidores de fogo e vendedores de balas
nos cruzamentos das grandes cidades do que tê-los assaltando, certo?
Quem
consome drogas ocasionalmente está ajudando o crime organizado e
financiando, sem querer ou saber, latrocínios, seqüestros e chacinas?
"Eu
apanhei dos meus pais e me tornei um adulto psicologicamente normal, um bom
marido e um profissional correto. Isso me diz tudo o que preciso saber sobre
dar umas palmadas nos meus próprios filhos." Certo?
Um
amigo relapso, de péssimo desempenho escolar e vida desregrada contava a
todos que conseguira um emprego exagerando suas qualidades no curriculum
vitae. Desde que começou a trabalhar, ele se endireitou e hoje pede a todos
que não contem a seu patrão o "deslize" inicial da carreira. É certo ajudar
o amigo a esconder o embuste?
Na
dúvida sobre quem roubou uma prova, o professor decide punir igualmente toda
a classe. Para a maioria, a punição terá efeitos superficiais. Para dois
alunos pobres, porém, ela significará a perda da bolsa de estudos e a
expulsão do colégio. O professor deveria relevar o erro coletivo para salvar
os dois alunos pobres?
Um
colega de classe invariavelmente leva "cola" em dias de prova. O correto é
delatá-lo?
Permitir que filhos adolescentes procedam de maneira errada na escola e em
sociedade sob a desculpa de que eles – os pais – também fizeram suas
bagunças é certo?
Os
ativistas de defesa dos animais jogam tinta nos casacos de pele das pessoas
no Hemisfério Norte. Isso é correto?
Estacionar em fila dupla é proibido, mas dar uma paradinha rápida para
comprar um remédio ou entregar uma encomenda é um delito menor, não?
Uma
das professoras da pré-escola decidiu contar a um menino que Papai Noel não
existe. A justificativa dela foi que os coleguinhas já não acreditavam e
faziam troça dele. Ela agiu corretamente?
Um
médico propõe dar dois recibos com datas diferentes de modo que o valor de
cada um fique dentro da quantia coberta pelo seguro-saúde. Assim, o paciente
conseguirá ser reembolsado pelo valor total da consulta. É errado aceitar a
oferta?
Uma
pessoa tem certeza de que tolera muito bem a bebida e se sente apta a
dirigir mesmo depois de tomar três doses de uísque. A lei não deveria prever
esses casos?
Você
acredita que um amigo de seu filho adolescente é uma má influência. Não
transmitir os recados que esse amigo deixa com a intenção de proteger seu
filho é uma boa idéia?
Um
professor de tênis sabe que seu pupilo não tem potencial para ser um bom
jogador. Ano após ano ele continua cobrando as aulas do garoto. O correto é
dizer a verdade, perder o aluno e o dinheiro das aulas?
Anular o voto na próxima eleição em protesto pela má conduta dos políticos é
um procedimento correto?
Alguém ouve música em alto volume, mas ainda dentro do limite legal de
decibéis para aquela região. O vizinho reclama. Quem tem razão?
Recorrer a despachantes para apressar o andamento de documentos é ético?
Um
casal de amigos adotou uma criança e não pretende revelar que ela não é
filho natural. Você sabe que essa omissão pode prejudicar a criança mais
tarde. É certo contar a ela sua real situação familiar?
Quando a estrada está vazia e não há radar à vista, ultrapassar o limite de
velocidade não traz maiores conseqüências, correto?
O.k., mas circular no próprio bairro em dias que o rodízio proíbe não coloca
ninguém em risco...
É
certo usar uma foto em que você nem parece ter barriga para se propagandear
em um site de paquera na internet?
Alguns religiosos americanos dizem que, se Jesus vivesse entre os mortais
hoje, jamais dirigiria um utilitário, pois esses carros consomem muito
combustível e, por isso, prejudicam todo mundo. É correto ter um carro
grande para uso individual?
Um
médico tem na mesa de cirurgia uma criança que só pode ser salva com uma
transfusão de sangue. Os pais proíbem a intervenção sob o argumento de que
isso vai contra a religião deles. O médico deve fazer a transfusão de sangue
e salvar a criança?
Pegar "carona" na rede sem fio do vizinho que seu computador capta é errado?
Um
pássaro de comercialização ilegal está exposto em uma feira de animais em
condições de evidentes maus-tratos. É correto desrespeitar a lei, comprar o
pássaro e dar-lhe uma vida melhor?
Se a
maioria dos vizinhos se cotiza para pagar um guarda-noturno para o
quarteirão, é justo que um morador se recuse a contribuir?
O
carro sofreu batidas fortes, mas foi totalmente recuperado e parece em ótimo
estado. Ao vendê-lo, é honesto não dar todos os detalhes sobre a gravidade
das batidas?
Vejo
que muitos motoristas jogam o toco de cigarro pela janela, em vez de
apagá-lo no cinzeiro do carro. Isso é aceitável? Fonte: Rev. Veja, Jerônimo Teixeira, Ed. 1949, 29/03/2006. |