Eleitor brasileiro tolera corrupção

     Uma pesquisa do Ibope, divulgada ontem, mostra que o eleitor brasileiro é tolerante com a corrupção. Os dados mostram que nada menos do que 69% dos eleitores admitem cometer pelo menos um tipo de ato ilícito entre 13 ilegalidades do cotidiano listadas pelo pesquisador. Pior, se tivessem oportunidade, 75% dos eleitores dizem que cometeriam ao menos um ato de corrupção entre 13 apresentados pelo instituto aos entrevistados.
      Já 40% dos eleitores brasileiros disseram que, se fossem eleitos, escolheriam familiares ou pessoas conhecidas para cargos de confiança, 18% mudariam de partido em troca de dinheiro ou cargos, 18% contratariam sem licitação empresas de parentes para prestar serviços públicos e 31% aproveitariam viagens oficiais para lazer próprio ou de familiares.  
      Em situações do dia-a-dia, 14% dos eleitores admitem subornar alguém para se livrar de uma multa, 7% sonega impostos, e nada menos do que 55% compram cópias piratas ou falsificadas de produtos.
      A pesquisa foi feita em janeiro e foram entrevistadas 2001 pessoas em todo o país.

Fonte: Nota10, Helio Marques, 29/03/2006

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Brasil
40 questões do dia-a-dia sobre o que é certo ou errado
 

Foto: Montagem sobre foto de Pedro Rubens e ilustração Hector Gomez

Quando o fantasma do rei aparece, no primeiro ato de Hamlet, o personagem Marcelo, um cidadão comum, observa: "Há algo de podre no reino da Dinamarca". O raciocínio embutido na frase, uma das mais famosas do teatro de William Shakespeare, é recorrente na história humana – e o Brasil pode estar vivendo um momento semelhante agora. O rei é um símbolo. Se ele virou alma penada, é sinal de que o país inteiro está doente. Mergulhado numa crise política que já se arrasta por onze meses, e ainda está longe de se esgotar, o Brasil começa a flertar perigosamente com aquilo que se poderia batizar de "síndrome de Marcelo": a tese de que governo e sociedade são igualmente corruptos e coincidem na desorientação moral. Se não bastassem todas as mentiras e escândalos em torno do mensalão, outras notícias reforçam a impressão de que os pilares da ética desmoronaram no âmbito institucional: um general interrompe a decolagem de um avião e tira dois passageiros do vôo para embarcar com sua mulher; o Exército negocia com traficantes para reaver armas roubadas; juízes defendem com unhas e dentes a prática do nepotismo e fazem greve para preservar vantagens econômicas desproporcionadas....

Será que essa lassidão moral nas camadas superiores da hierarquia política do país se espalha pelo tecido social? Será que os deslizes do cotidiano, por sua vez, impedem que se enxerguem em sua plenitude os desmandos dos governantes? São questões interessantes para cujo estudo o Brasil é hoje um laboratório quase perfeito. Não existem respostas fáceis. Os intelectuais tendem a acreditar na pureza natural do povo e na corrupção mandatória de qualquer governante ou membro da elite de um país. Será assim mesmo? "O problema está em nós. Nós como povo. Nós como matéria-prima de um país", escreveu recentemente o cronista João Ubaldo Ribeiro sobre o tema da corrupção. Ver defeitos no povo não é a regra. João Ubaldo é exceção. Não há dúvida de que a ética dos governantes se inter-relaciona de alguma forma com a ética dos cidadãos. Essa relação é muito complexa.  

 

Foto: Beto Barata/AE
A DANÇA DA IMPUNIDADE

Na semana passada, depois que seu colega petista João Magno escapou da cassação, a deputada Angela Guadagnin ensaiou uma dança comemorativa no plenário da Câmara. Magno recebeu mais de 400 000 reais do valerioduto. O escândalo que foi sua absolvição deveria ser recebido em silêncio, mas Angela achou por bem festejar. Foi um retrato grotesco do cinismo na política.

 

É possível que um povo dotado de rígidos padrões de conduta moral, com forte base religiosa e predominância mundial na filosofia e na música erudita se acumplicie com um governo de loucos assassinos? A Alemanha nazista é uma prova recentíssima de que a resposta à pergunta acima é, apavorantemente, sim. Por outro lado, é possível que um povo, tendo passado 75 anos sob um regime de quase-escravidão, submetido a uma potência estrangeira e a uma ideologia desanimadora e cruel, possa em poucos anos voltar ao caminho da prosperidade, do progresso social e tecnológico? Aqui a resposta também é sim. O exemplo são os países do Leste Europeu, os satélites soviéticos que, uma vez livres da repressão, se tornaram nações progressistas e de enorme ebulição econômica e avanço social. Qual o ponto em comum entre os dois exemplos extremos? Em ambos os casos, as guinadas, para o mal ou para o bem, foram feitas inicialmente por meia dúzia de líderes titanicamente capazes. Os povos seguiram os ordenamentos vindos de cima. O que isso significa? Significa que para o bem ou para o mal o povo, em sua condição coletiva, pode ser levado para um lado ou outro pelas suas lideranças – independentemente das convicções individuais de cada uma das pessoas. Significa também que o exemplo que vem de cima é crucial. Se ele é bom, incentiva o bom comportamento individual. Se são maus os exemplos, mais as pessoas vão se sentir liberadas para recorrer a "jeitinhos" e "tirar vantagens".

Na semana passada, o Ibope divulgou os resultados de um estudo intitulado "Corrupção na política: eleitor vítima ou cúmplice?". Duas mil pessoas foram entrevistadas ao longo do mês de janeiro, e as conclusões são incômodas. Quase 90% dos entrevistados declararam que os políticos brasileiros agem pensando apenas em seu próprio benefício, e 82% dizem que a classe política brasileira em geral é corrupta. Para 95% dos entrevistados, superfaturar obras públicas ou desviar recursos do governo para fins próprios são práticas inaceitáveis, e 89% consideram o caixa dois igualmente inadmissível. As coisas se confundem na segunda parte do levantamento. De maneira abstrata, o brasileiro se acha melhor do que os políticos que o representam: 64% consideram que o povo, em geral, é honesto. Ao mesmo tempo, 75% dos entrevistados admitiram que, se eleitos para um cargo público, poderiam "cair na tentação" de se locupletar. E 98% afirmaram que pessoas de suas relações já praticaram pelo menos um ato condenável – como pagar suborno para escapar de uma multa, apresentar atestados médicos falsos ou consumir produtos piratas. Os resultados da pesquisa revelam uma dicotomia: a população repudia firmemente a corrupção, mas comete e tolera desonestidades.

Constatações desse tipo não são propriamente uma novidade. As ciências sociais brasileiras têm uma longa tradição de análise desse paradoxo. No clássico Raízes do Brasil, de 1936, Sérgio Buarque de Holanda usou a expressão "homem cordial" para designar a tendência do brasileiro de se guiar sempre por princípios familiares e afetivos, mesmo no trato de questões que deveriam exigir uma postura distanciada e abstrata. O antropólogo Roberto DaMatta retoma e atualiza esse raciocínio ao falar de uma "ética da casa", que coloca os interesses privados à frente de tudo o mais e só reconhece direitos a quem é parente, amigo ou companheiro. A implicação mais evidente dessa tendência a tratar o Estado como se fosse uma extensão da própria casa é o nepotismo. Mas, em certa medida, a corrupção também é determinada por ela. O escritor argentino Jorge Luis Borges, em um ensaio irônico sobre seus compatriotas, deixou uma nota que poderia valer para o Brasil: "O Estado é impessoal; o argentino só concebe uma relação pessoal. Por isso, para ele, roubar dinheiro público não é crime".

A pesquisa do Ibope e argumentos desse tipo parecem dar razão aos que pensam que o público e o privado estão numa relação inextricavelmente doentia no Brasil. O antídoto contra o pessimismo é a história recente de conquistas institucionais do país. Contrariando o que disse Sérgio Buarque de Holanda numa das passagens mais amargas de Raízes do Brasil, a democracia já deixou de ser um mero "mal-entendido" no país. Até as tradições do homem cordial vão sendo, aos poucos, derrotadas – o fim do nepotismo no Judiciário é um bom exemplo disso. Numa democracia, além disso, a idéia de que sociedade e governo são a mesma coisa não se sustenta. Ela pertence a outras realidades.

O mais chocante nas transgressões atuais do governo é o fato de que elas são um ataque organizado à ética pública. "O partido que prometia ser republicano e anunciava um governo transparente reitera os velhos costumes dos coronéis. É um escândalo", diz o filósofo Roberto Romano, da Unicamp. Na infame entrevista de Paris, o presidente Lula tentou desculpar o caixa dois com o argumento de que essa contabilidade alternativa é uma praxe antiga no Brasil. Diante dos fatos que vão derrubando seus auxiliares mais próximos, ele mantém o discurso de que nunca soube da corrupção. Os deputados pegos com a mão no valerioduto defendem-se com a teoria de que "só tomaram o dinheiro para pagar dívidas de campanha", como se a finalidade dada a recursos ilícitos de algum modo os tornasse menos sujos. E o argumento é aceito no Congresso. O cinismo diante dos descalabros políticos ganhou sua imagem exemplar na semana passada, com a grotesca dancinha com que a deputada Angela Guadagnin comemorou a não-cassação do seu colega mensaleiro João Magno.

Não há argumento que permita desculpar as contravenções que os brasileiros cometem no dia-a-dia – muito menos o de que o mau exemplo vem de cima. Assim como os desmandos petistas, as sonegações, as trapaças e mesmo aqueles gestos que não são contra a lei, mas quebram a civilidade, são um atraso para o país. Mas imaginar que em algum momento futuro os dilemas éticos vão sumir é irreal. Os conflitos de moralidade são um dos grandes temas do pensamento contemporâneo. Sua expressão mais dramática está nas falas do papa Bento XVI. Em sua carreira de teólogo, ele sempre atacou o relativismo – a teoria de que não existem critérios éticos absolutos. "Caminhamos para uma ditadura do relativismo, que faz do ego e dos desejos de cada indivíduo a medida de todas as coisas", disse ele pouco antes de ser eleito sucessor de João Paulo II. Bento XVI gostaria de restaurar a lei divina como parâmetro da justiça, mas as alternativas à doutrina religiosa são inúmeras no mundo atual.

Em meio ao cipoal de teorias, realizar escolhas éticas é ainda problemático. O jornal americano The New York Times criou uma seção semanal, meio séria, meio humorística, dedicada a discuti-las. "Se todas as pessoas consultassem o jornal antes de cometer uma estripulia, o mundo ficaria bem melhor", brinca Randy Cohen, titular da coluna O Eticista. Na ética cotidiana, chegar ao certo ou ao errado depende da reflexão contínua. Alguns temas, como o do aborto, da eutanásia, do casamento homossexual e da clonagem, são verdadeiros campos de batalha. Mas a concordância em torno de muitos valores também cresce. A discriminação por sexo ou raça, por exemplo, é hoje universalmente condenada – e não era assim há menos de um século. Não há por que acreditar que o fim do mundo está à vista. A seguir, VEJA propõe quarenta questões éticas do cotidiano e arrisca-se a dar as respostas. Leia-as como nossa opinião, baseada no senso comum e na orientação de filósofos e professores de ética. Divirta-se.
 

Ética cotidiana

Todos os dias, no noticiário, lêem-se denúncias de corrupção e atos criminosos por parte de políticos e governantes. Essa situação torna desculpáveis as pequenas transgressões que os cidadãos cometem no dia-a-dia?

De forma nenhuma. É execrável que figuras públicas ou eleitas pelo voto popular não sejam nem a sombra do exemplo ético e moral que se espera que elas sejam. O fato de haver criminosos ou suspeitos em altos postos da hierarquia política só aumenta a responsabilidade pessoal dos cidadãos de bem.  

 

Pedir ao avô ou a uma amiga grávida que compre ingressos na fila preferencial é passar os outros para trás?
Sim. O avô ou a amiga grávida, a seu pedido, estará aumentando o número de pessoas em uma fila que, de outro modo, seria menor.    

Pagar a alguém para ficar na fila no seu lugar ou pedir esse favor a um amigo prejudica os demais?
Não prejudica. O que conta em uma fila é o número de pessoas que estão nela. A troca de uma pessoa por outra não altera o resultado final do incômodo.

Consumir produtos importados de países que comprovadamente usam mão-de-obra escrava equivale a aprovar essa prática?
Pior do que isso. Equivale a financiar essa prática. Evitar esses produtos é a coisa certa a fazer – mesmo que isso não sirva para punir economicamente o explorador –, pois outras pessoas vão continuar a comprá-los.    

Um motorista profissional que precisa da carteira de habilitação para sobreviver e alimentar mulher e filhos recebe uma multa que implica a perda do direito de dirigir. É ético ele pedir à mulher que assuma a responsabilidade pela multa?
Eis um dilema. Mas a resposta é não. O acúmulo de multas, assumindo que os guardas de trânsito agiram corretamente, mostra que ele não é um motorista responsável. Portanto, do ponto de vista do bem comum, o certo é impedi-lo de dirigir. O ideal seria que, nesses casos, o Estado tivesse mecanismos de amparo à família do motorista e oferecesse um curso de reeducação para o trânsito no prazo máximo de uma semana após a perda da habilitação.  

Uma gravadora anuncia que não tem planos para lançar no Brasil determinado DVD. Esse mesmo DVD é vendido em cópias piratas. Nesse caso, é ético recorrer ao mercado negro?
É quase irresistível, mas a resposta é não. Comprar o DVD em questão estimula a pirataria, atividade que concentra renda nas mãos de bandidos, destrói empregos formais e empobrece as pessoas honestas.    

Os brasileiros trabalham quatro meses por ano para pagar impostos que serão desperdiçados por gestores incompetentes ou vão parar, em parte, no bolso de corruptos. Portanto, obter um desconto no consultório médico aceitando a proposta de pagar "sem recibo" é não apenas uma vantagem pessoal, mas também vingança contra o governo. Certo?
Certamente é as duas coisas. Mas é também um claro atentado à ética. Não se combate a corrupção com corrupção. A maneira de protestar contra governos que gastam demais e políticos desonestos é nas urnas. Pode demorar e ser pouco eficiente, mas é assim que se constrói um país.    

Mas o valor que se paga em impostos não é devolvido na forma de benefícios. Não é realmente legítimo buscar atalhos para diminuir a carga tributária pessoal?
Não, porque o Estado vai obstinadamente buscar a quantia de que precisa para pagar o serviço de sua dívida e financiar seu funcionamento. Portanto, quem paga menos vai sobrecarregar quem paga corretamente. Vai penalizar a vítima e não o culpado, o Estado. Procurar atalhos legais para diminuir o valor do imposto a pagar é correto.  

Registrar um imóvel por um valor mais baixo para escapar dos impostos é prática corriqueira no Brasil. Isso é aceitável?
O certo é pagar os impostos pelo valor exato da transação. Proteste nas urnas escolhendo candidatos com planos viáveis de baixar tributos. Organize passeatas contra os impostos altos, junte-se a grupos que já protestam...    

Avançar o sinal vermelho à noite, quando quase não há movimento, aumenta a segurança contra assaltos. Isso é correto?
Sim. Como lembra Ubirajara Calmon Carvalho, professor de filosofia da Universidade de Brasília, "as regras foram feitas para o ser humano, e não o contrário". Nesse caso específico, fica a critério do motorista proceder da maneira mais segura para ele e para os outros.    

É certo avançar na faixa mesmo quando não há pedestres passando?
De dia, não. De madrugada, diminua a marcha, observe com cuidado redobrado e atravesse.    

Usar o telefone da empresa para interurbanos particulares é uma maneira de economizar. Mas isso é aceitável?
Isso é furto. Equivale a abrir o cofre da empresa e enfiar a mão em um maço de dinheiro. Salário baixo, mesquinhez patronal ou más condições de trabalho não justificam esses pequenos expedientes.    

É melhor ter meninos malabaristas, engolidores de fogo e vendedores de balas nos cruzamentos das grandes cidades do que tê-los assaltando, certo?
Não. As duas coisas não são excludentes. O mais útil para a sociedade é que os meninos e meninas estejam na escola estudando, sendo alimentados e orientados. Mas a caridade individual não deve ser regulada por uma ética coletiva. Ela pertence àquela região interior em que manda a convicção pessoal.    

Quem consome drogas ocasionalmente está ajudando o crime organizado e financiando, sem querer ou saber, latrocínios, seqüestros e chacinas?
Sim. Sem o dinheiro dos consumidores, o tráfico de drogas desapareceria. O "ocasionalmente" não torna o consumo mais aceitável. É o mesmo que aceitar que uma pessoa cometa no máximo dois ou três assassinatos por ano.    

"Eu apanhei dos meus pais e me tornei um adulto psicologicamente normal, um bom marido e um profissional correto. Isso me diz tudo o que preciso saber sobre dar umas palmadas nos meus próprios filhos." Certo?
Não. Castigos físicos deseducam.  

Um amigo relapso, de péssimo desempenho escolar e vida desregrada contava a todos que conseguira um emprego exagerando suas qualidades no curriculum vitae. Desde que começou a trabalhar, ele se endireitou e hoje pede a todos que não contem a seu patrão o "deslize" inicial da carreira. É certo ajudar o amigo a esconder o embuste?
Não, mas, se o sujeito se endireitou, deixa pra lá.    

Na dúvida sobre quem roubou uma prova, o professor decide punir igualmente toda a classe. Para a maioria, a punição terá efeitos superficiais. Para dois alunos pobres, porém, ela significará a perda da bolsa de estudos e a expulsão do colégio. O professor deveria relevar o erro coletivo para salvar os dois alunos pobres?
Sim. Injusto é permitir que um mesmo erro ou suspeita produza punições tão díspares, atingindo violentamente alguns, enquanto outros se safam com apenas uma admoestação.  

Um colega de classe invariavelmente leva "cola" em dias de prova. O correto é delatá-lo?
Não. Na cultura brasileira delatar é pior do que colar.  

Permitir que filhos adolescentes procedam de maneira errada na escola e em sociedade sob a desculpa de que eles – os pais – também fizeram suas bagunças é certo?
É cômodo, mas não é certo. O aprendizado se faz com base nas experiências, boas ou ruins, de gerações passadas. "Sorte dos filhos cujos pais aprenderam com os erros da adolescência", diz o filósofo Alípio Casali, da PUC de São Paulo.    

Os ativistas de defesa dos animais jogam tinta nos casacos de pele das pessoas no Hemisfério Norte. Isso é correto?
Não. Essas agressões não inibem a matança de animais. O mais eficiente é mostrar imagens de filhotinhos submetidos a sofrimentos indizíveis.  

Estacionar em fila dupla é proibido, mas dar uma paradinha rápida para comprar um remédio ou entregar uma encomenda é um delito menor, não?
A parada só é rápida para quem parou. Para as outras pessoas, dependendo da pressa, essa manobra pode significar um incômodo gigantesco.  

Uma das professoras da pré-escola decidiu contar a um menino que Papai Noel não existe. A justificativa dela foi que os coleguinhas já não acreditavam e faziam troça dele. Ela agiu corretamente?
Não. A escola ensina, os pais educam. Caberia à professora alertar os pais para a situação incômoda do filho.  

Um médico propõe dar dois recibos com datas diferentes de modo que o valor de cada um fique dentro da quantia coberta pelo seguro-saúde. Assim, o paciente conseguirá ser reembolsado pelo valor total da consulta. É errado aceitar a oferta?
Sim. Os custos dos planos médicos particulares são calculados sobre toda a sua base de clientes. Com sua economia, você acabará tornando as mensalidades mais altas para quem age de acordo com as regras.    

Uma pessoa tem certeza de que tolera muito bem a bebida e se sente apta a dirigir mesmo depois de tomar três doses de uísque. A lei não deveria prever esses casos?
Não. O limite alcoólico estabelecido em lei é aquele a partir do qual a maioria dos seres humanos tem sua capacidade de julgamento comprometida. Deixar esse limite ser estabelecido caso a caso não funciona.    

Você acredita que um amigo de seu filho adolescente é uma má influência. Não transmitir os recados que esse amigo deixa com a intenção de proteger seu filho é uma boa idéia?
Não. Além de ser uma tática pouco eficaz, ela tem uma dose de desonestidade e tira do jovem um direito que é dele – o de escolher seu grupo. É melhor expor suas dúvidas e conversar a respeito, para que ele possa, quem sabe, repensar as amizades.  

Um professor de tênis sabe que seu pupilo não tem potencial para ser um bom jogador. Ano após ano ele continua cobrando as aulas do garoto. O correto é dizer a verdade, perder o aluno e o dinheiro das aulas?
Depende. Se a criança tem a ilusão de que se tornará tenista profissional, sim, é obrigação dele ser claro a respeito de seu julgamento. Se o aluno só quer se divertir, o professor pode continuar dando as aulas.    

Anular o voto na próxima eleição em protesto pela má conduta dos políticos é um procedimento correto?
Pode não funcionar como protesto, mas anular o voto não fere a consciência individual de ninguém. O americano Alasdair MacIntyre, autoridade em filosofia moral, defendeu o voto nulo na última eleição americana: "Quando nos é oferecida a opção entre duas alternativas políticas intoleráveis, é importante não escolher nenhuma".    

Alguém ouve música em alto volume, mas ainda dentro do limite legal de decibéis para aquela região. O vizinho reclama. Quem tem razão?
Ao contrário do limite alcoólico, o grau de incômodo sonoro deve, sim, ser regulado caso a caso. Quem reclama deve ter suas razões (um bebê recém-nascido em casa, por exemplo).    

Recorrer a despachantes para apressar o andamento de documentos é ético?
Esse é um caso em que se está em um limite nebuloso da lei e da ética. A atividade de despachante é legal, mas esses profissionais freqüentemente recorrem a propinas e "jeitinhos" que alimentam a máquina da corrupção.  

Um casal de amigos adotou uma criança e não pretende revelar que ela não é filho natural. Você sabe que essa omissão pode prejudicar a criança mais tarde. É certo contar a ela sua real situação familiar?
Não. O adotado que descobre a verdade acidentalmente ou por outras pessoas sofre mais do que aquele que recebe a notícia dos pais. O mais correto é convencer o casal de amigos a dizer a verdade quando e como eles quiserem.  

Quando a estrada está vazia e não há radar à vista, ultrapassar o limite de velocidade não traz maiores conseqüências, correto?
O limite de velocidade é imposto justamente para evitar acidentes em circunstâncias imprevistas. Além disso, o desrespeito à lei é desrespeito mesmo quando não há ninguém olhando.    

O.k., mas circular no próprio bairro em dias que o rodízio proíbe não coloca ninguém em risco...
Certo, mas a lei é feita para todos e, se todos seguirem essa mesma lógica, o rodízio perderá sua eficácia. Se o rodízio for para conter a poluição, sair de carro é ainda mais errado.    

É certo usar uma foto em que você nem parece ter barriga para se propagandear em um site de paquera na internet?
Pela etiqueta da internet, isso não é certo nem errado. É quase uma obrigação. Como 99% das conversas on-line não passam da fase virtual, não há problema algum em se mostrar virtualmente diferente.  

Alguns religiosos americanos dizem que, se Jesus vivesse entre os mortais hoje, jamais dirigiria um utilitário, pois esses carros consomem muito combustível e, por isso, prejudicam todo mundo. É correto ter um carro grande para uso individual?
É permitido pela lei. Pode ser ecologicamente incorreto, mas ninguém deve se sentir mal por isso.    

Um médico tem na mesa de cirurgia uma criança que só pode ser salva com uma transfusão de sangue. Os pais proíbem a intervenção sob o argumento de que isso vai contra a religião deles. O médico deve fazer a transfusão de sangue e salvar a criança?
Em uma emergência, sim. Ele seria protegido pela lei e pela ética médica. Havendo tempo, deve procurar o amparo legal de um juiz.    

Pegar "carona" na rede sem fio do vizinho que seu computador capta é errado?
Sim. O usuário que está pagando pelo serviço terá menos banda disponível para trafegar pela internet.    

Um pássaro de comercialização ilegal está exposto em uma feira de animais em condições de evidentes maus-tratos. É correto desrespeitar a lei, comprar o pássaro e dar-lhe uma vida melhor?
Não. Da mesma forma que com o tráfico de drogas, é o fato de haver consumidores que alimenta o tráfico cruel de animais silvestres. Sem compradores, ele deixa de existir. O melhor é fazer uma denúncia à polícia.    

Se a maioria dos vizinhos se cotiza para pagar um guarda-noturno para o quarteirão, é justo que um morador se recuse a contribuir?
Não. Mesmo que alegue não fazer questão do serviço, ele se beneficiará dele.  

O carro sofreu batidas fortes, mas foi totalmente recuperado e parece em ótimo estado. Ao vendê-lo, é honesto não dar todos os detalhes sobre a gravidade das batidas?
Não. Omitir esse tipo de informação é inaceitável do ponto de vista ético. Além disso, agindo assim, o antigo proprietário se torna juridicamente acionável em caso de danos futuros conseqüentes das avarias não relatadas ao comprador.   

Vejo que muitos motoristas jogam o toco de cigarro pela janela, em vez de apagá-lo no cinzeiro do carro. Isso é aceitável?
Não. Você jogaria uma bituca no chão de sua própria casa? Pois então não existe desculpa para sujar o chão dos espaços públicos, que são a casa de todos.
 

Fonte: Rev. Veja, Jerônimo Teixeira, Ed. 1949, 29/03/2006.


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