Carrossel dos sentidos

 

Para que possamos perceber o mundo como um todo, os cinco sentidos precisam cooperar entre si de forma inteligente e, muitas vezes, praticamente fundir-se uns nos outros

Da esquerda soa, no último volume, uma música antiga e famosa. “Vamos entrando!”, grita alguém do outro lado. Atrás, um grupo de jovens dá risada e, em algum lugar, uma criança berra. Simultaneamente, brilham e reluzem por toda parte luzes coloridas, enquanto nossos olhos tentam acompanhar os loopings da montanha-russa. O tumulto de um parque de diversões inunda nossos sentidos. E talvez o programa não fosse tão bom sem essa multiplicidade de estímulos, sem a concentração de pessoas, o empurra-empurra e o acotovelamento, sem o sorvete na mão ou o cheiro de algodão-doce e pipoca.

 

O exemplo mostra quantos sinais vindos do mundo exterior nos atingem ao mesmo tempo. Somente pela combinação deles surge a complexa impressão geral, típica de situações como essa. Nessas circunstâncias, o cérebro é exigido ao máximo – o que evidentemente atrai a curiosidade de neurocientistas. 

A inundação de estímulos no parque, no entanto, não se ajusta ao exame mais detalhado da maravilhosa mistura de variadas impressões de sentidos – a integração sensorial. Os pesquisadores preferem condições claras e controláveis. Têm interesse especial por situações em que nosso cérebro se ludibria quase sozinho e produz falsas imagens do ambiente. Um exemplo conhecido desses enganos é o efeito de ventríloquo. Embora a voz que se ouve não seja originada pela boca em movimento do boneco, a impressão que temos é exatamente essa. Também no cinema nos entregamos à ilusão de que os heróis na tela falam, embora na realidade suas vozes ecoem dos alto-falantes espalhados pela sala de espetáculos. Nosso cérebro parte imperturbavelmente da premissa de que a fonte do que é dito se encontra onde os lábios se movem no ritmo adequado – ele combina, portanto, de forma significativa e entre si, a impressão de audição e de visão. 

É fácil nos enganarmos não apenas com a origem de um estímulo sensorial, mas também com sua qualidade. Em meados dos anos 70, os psicólogos Harry McGurk e John MacDonald, da Universidade de Surrey, na Grã-Bretanha, descobriram um fenômeno interessante: apresentavam a voluntários uma seqüência de filme, na qual um ator articulava a sílaba “ga”, e sincronizavam a cena com o som “ba”; as pessoas informavam posteriormente que não percebiam nem uma nem outra, mas a sílaba “da”! Ambas as informações sensoriais se dissolviam, portanto, em um terceiro som, totalmente novo. 

Várias peças 

Os sentidos de audição e tato também se prestam, por vezes, a alianças enganosas: normalmente, quando esfregamos as palmas de nossas mãos uma na outra, conseguimos avaliar bem a umidade da pele. Mas se, ao fazer isso, ouvimos um forte rumor, a pele parece repentinamente seca; se o ruído perde sua intensidade ou a sonoridade sobe a uma escala mais alta, então as palmas das mãos nos parecem outra vez úmidas. 

Tais ilusões mostram que nosso cérebro combina constantemente as informações dos diversos órgãos do sentido, a fim de delinear uma imagem mais ou menos correta do ambiente. Para os pesquisadores da percepção colocam-se duas questões: como os sentidos se fundem no cérebro e onde ocorre esse processo?

Em princípio, várias possibilidades são presumíveis. Número 1: cada sistema neurossensorial analisa seus estímulos, inicialmente sozinho, e produz uma “imagem” pronta do ambiente. O sistema responsável pela visão, por exemplo, fornece o aspecto de um cão pastor alemão que late atrás de uma cerca branca, ao passo que o aparato auditivo informa simultaneamente o latido e o som de um carro que passa na rua. Somente depois disso as várias impressões sensoriais são integradas e formam uma imagem completa: um cão latindo no jardim em frente à casa.

Número 2: o sistema visual descobre, de início, uma superfície manchada, de tamanho médio, em meio a muito verde. Simultaneamente, o sistema auditivo percebe

 


Impulsos sensoriais produzidos no ouvido interno atingem o tálamo e em seguida, os córtex auditivos primário e secundário. Neste último os sinais são processados e unificados.

um ruído alto que se repete ritmicamente, proveniente daquela área. Em seguida, o sistema visual registra que a superfície se modifica sempre que o sistema auditivo informa o ruído. Dessa maneira os diversos sentidos se complementam em frações de segundo, até que seja formada a impressão total do pastor alemão latindo. Nesse caso, a integração sensorial já ocorre em uma fase bastante precoce do processo.

O primeiro modelo concebe os diversos sistemas sensoriais como departamentos isolados, unidos apenas ao final do processo. Já o segundo considera que cada sentido consegue co-interpretar precocemente os objetos percebidos com base em outras informações sensoriais. Entre tais variantes extremas podem-se considerar, naturalmente, tantas etapas intermediárias quantas se queira. O caminho pelo qual o cérebro envereda encontra-se provavelmente em meio a essas duas abordagens. A questão é: onde? 

Mais oxigênio 

Pesquisadores buscam a resposta com o auxílio de procedimentos que mostram imagens, como, por exemplo, a tomografia de ressonância magnética ou a tomografia de spin nuclear. Neste caso, os cientistas se valem do fato de que, carregada de oxigênio, a molécula de hemoglobina tem um comportamento diferente em um forte campo magnético. Trabalhando de maneira bastante intensa, uma região cerebral gasta mais oxigênio do que regiões vizinhas e, por essa razão, tem um suprimento sangüíneo mais forte. A tomografia de ressonância magnética capta esse suprimento diverso, podendo fornecer uma imagem momentânea do cérebro em atividade.  

Se as informações sensoriais fossem, de fato, analisadas até o mínimo detalhe, separadamente, por variados sistemas e fossem combinadas somente ao final, deveria haver diversas áreas cerebrais sensoriais que se ocupariam exclusivamente com um único sentido. No outro caso, no qual a combinação ocorre bem cedo, poucas dessas regiões especializadas deveriam bastar. Ambos seriam passíveis de reconhecimento no tomógrafo de spin nuclear. 

De fato, nos últimos anos, uma série de estudos com imagens revelou complexa rede de áreas cerebrais que se tornam extremamente ativas especialmente quando dados sensoriais diferentes convergem. Já se sabia que as assim denominadas áreas de associação nos lobos parietal e frontal do córtex cerebral trabalham informações de canais sensoriais diferentes; mas também áreas até então tidas como responsáveis por um único sentido mostraram, nesse ínterim, seus talentos variados: como descrito por Jon Driver, do University College London em 2005, a atividade do córtex visual de pessoas em teste aumenta ao enxergarem um flash bem próximo de sua mão quando os dedos percebem estímulos tácteis adicionais. Esta atividade cerebral elevada só se manifesta, todavia, quando o estímulo visual e o tátil ocorrem simultaneamente e do mesmo lado do corpo. 

Da mesma forma, percebemos cada vez menos um ponto de luz a piscar quando a intensidade diminui paulatinamente. Se, porém, ouvirmos um som breve durante o piscar, ainda reconheceremos mesmo o mais fraco luzir. Isso tudo só funciona, entretanto, quando luz e som ocorrem no mesmo momento. 

Um caso especialmente interessante ocorre com a percepção da fala: o som das palavras não é transmitido apenas acusticamente, também os movimentos dos lábios guardam informações valiosas. Em 2001, a pesquisadora Gemma Calvert, da Universidade de Oxford, observou que, na percepção dos fonemas, tanto a atividade do sistema auditivo quanto do visual é reforçada quando estímulos acústicos e imagens chegam juntos ao cérebro. A visão dos lábios em movimento influencia precocemente o processamento dos sinais sonoros e também as palavras ouvidas agem sobre a análise visual do movimento da boca. O efeito sinérgico de ouvir e ver surge em regiões cerebrais que até então eram consideradas áreas sensoriais isoladas. 

Trabalho de equipe 

Já a observação da imagem muda de uma pessoa enquanto fala é suficiente para ativar de forma mensurável o córtex auditivo – mesmo quando ela apenas articula palavras sem sentido. Caretas, contudo, não têm efeito sobre essa região cerebral. Isso deixa claro que o córtex auditivo reage de modo bem específico: a integração sensorial de estímulos acústicos e visuais colabora para o processamento da fala. 

O segundo modelo, que parte de uma fusão sensorial bastante precoce, parece ser o válido. Medidas de ressonância magnética de alta resolução, que executamos em 2005 no Instituto Max Planck de Cibernética Biológica, em diversas áreas do córtex auditivo de macacos resos, também apontam para esta direção. Esse córtex subdivide-se em diversas unidades (ver quadro nesta página): os impulsos elétricos que produzem ondas sonoras que entram no ouvido interno alcançam o córtex auditivo primário por meio de uma estação intermediária no tálamo. Somente a partir dessa área os estímulos chegam às regiões superiores, que se cingem o córtex auditivo primário como um cinto de poucos milímetros. 

Durante nossas experiências, quando fazíamos os animais escutarem ruídos com um fone de ouvido e, simulta-neamente, estimulávamos superfícies de suas patas usando uma escova, podíamos mensurar a atividade cerebral crescente – a parte posterior do córtex auditivo secundário apresentava movimento. Aqui parece encontrar-se, portanto, o local da integração sensorial. 

Exatamente por que razão essas regiões fundem as informações dos sentidos não sabemos ainda. Mas já se afigura a possibilidade de a parte posterior do córtex auditivo ser especializada em captar informações espaciais – quer dizer, reconhecer de onde um ruído vem. Assim, essa fusão sensorial poderia colaborar com a ordenação de diferentes impressões de sentido para a mesma origem espacial. 

Uma conclusão parece admissível: a integração sensorial se dá em áreas auditivas superiores. Dessa forma, ocorre de modo bastante precoce, mas não tanto quanto teoricamente seria possível. O primeiro modelo, que partia de um processamento separado das impressões sensoriais, simplesmente mostra-se falso. O segundo, com sua suposição de uma fusão de sentidos, pode sugerir certo exagero, mas parece corresponder melhor à realidade. 

Ao que tudo indica, pelo menos uma grande parte de nosso cérebro está ocupada em combinar entre si informações de diversos sentidos. Comparativamente, uma área cerebral quase ínfima se ocupa exclusivamente de um único sentido.

 

Fonte: Rev. Mente e Cérebro, Christoph Kayser, ed. 172, mai/2007.

 

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