BRASIL
Os caras-lavadas

 

A novidade do movimento estudantil é a cobrança por transparência nas reitorias
e melhorias nas universidades

 

RONALDO DE OLIVEIRA/CB
LIMPEZA ÉTICA Estudantes lavam prédio da reitoria da UnB e dispensam a manipulação partidária.

 

 

Na véspera da renúncia do reitor Timothy Mulholland, os estudantes que na semana anterior haviam invadido a reitoria da Universidade de Brasília (UnB) promoveram uma ampla lavagem do prédio - e transformaram a rampa principal em tobogã. Para um caso que ganhou proporções nacionais a partir da denúncia de que Mulholland equipara seu apartamento funcional com três lixeiras automáticas (R$ 818, R$ 930 e R$ 990), a limpeza ética da UnB não poderia ter cena mais simbólica. Afinal, os rostos que simbolizam o novo movimento estudantil rejeitam matizes partidários, exigem transparência nos gastos públicos e, ao mesmo tempo que estão declaradamente preocupados com seus desempenhos acadêmicos, também querem se divertir. São os caras-lavadas, expressão de uma geração mais individualista e pragmática.

 

ELZA FIÚZA/ABR
TIMOTHY MULHOLLAND. E tudo começou por causa das lixeiras do apartamento do reitor.

"Temos nossas próprias propostas, com objetivos mais concretos e práticos"
Luiza Oliveira, uma das coordenadoras do DCE

Em São Paulo, os caras-lavadas emparedaram o reitor Ulysses Fagundes Neto, da Unifesp, que fez das suas despesas com cartões corporativos um deboche à inteligência dos estudantes. Depois de gastar cerca de R$ 5 mil em compras pessoais em lojas da Nike e da Adidas, em 2006, em Berlim, e R$ 2 mil na Samsonite, da China, em 2007, ele se explicou na quarta-feira 16 com a seguinte frase: "Não recebi as normas por escrito, com instruções claras." Mas, com o abuso tornado público, ele reconheceu: "Cometi um equívoco porque usei o cartão de forma que não poderia ter usado", disse. Na véspera, Fagundes Neto havia devolvido R$ 37,6 mil, numa ação preventiva para tentar evitar, na Unifesp, o mesmo desfecho do caso do reitor da UnB, que na quinta-feira 17 teve seu assento ocupado, provisoriamente, por Roberto Aguiar, ex-secretário de Segurança Pública do Rio e do Distrito Federal. Após sua posse, os alunos se retiraram do prédio da reitoria sem maiores protestos. Seria inimaginável conceber, há 40 anos, que um ex-chefe das forças de segurança assumisse o comando de uma universidade com a anuência dos alunos.

BRUNO MIRANDA/FOLHA IMAGEM

 

No ano em que o movimento estudantil completa 40 anos das mobilizações históricas de 1968 (leia quadro à pág. 31) são muitas as diferenças entre os caras-lavadas e os protagonistas do passado. A geração de 1968, por exemplo, se julgava vanguarda de uma revolução socialista, usava codinomes e muitos partiram para a luta armada contra a ditadura. Tinham um inimigo externo e uma causa política, motivos que se repetiram nos caras-pintadas do impeachment de Fernando Collor. Agora, contudo, suas reivindicações são mais voltadas para a eficiência da universidade. "É lógico que a gente queria estar em 1968", diz Luiza Oliveira, 18 anos, aluna de sociologia e uma das coordenadoras do Diretório Central dos Estudantes (DCE).

"Mas vivemos uma realidade diferente, temos nossas próprias propostas, com objetivos mais concretos e práticos."

"Em cada etapa da história, o movimento estudantil tem um papel e uma forma de se manifestar"
José Dirceu, ex-líder estudantil e ex-ministro cassado.

 

Se antes miravam o futuro, agora os estudantes mobilizam-se por questões como a utilização correta dos recursos da universidade, a transparência nos gastos, a qualidade dos cursos, o crédito estudantil e o acesso ao ensino público. No caso das instituições particulares, o alvo é o preço das mensalidades. Recentemente, os estudantes também se uniram em torno da reivindicação do passe livre, que deu nome às passeatas que ganharam as ruas de Florianópolis. Liderado pelo bacharel em história Marcelo Pomar, o Movimento do Passe Livre assestou a mira no transporte coletivo e em suas vertentes: custo de vida, veículos eficientes, plano diretor e municipalização do serviço. Os estudantes enfrentaram a polícia no que foi batizado de "revolta das catracas". Depois de um mês de enfrentamento, os preços das passagens caíram. "Mexeu no bolso de todo cidadão, inclusive no do estudante de ensino médio, que não tinha dinheiro para ir à escola", comemorou Pomar.

 

JOSÉ NASCIMENTO/FOLHA IMAGEM
ULYSSES FAGUNDES NETO Gastou dinheiro público na Nike e na Samsonite, foi pressionado pelos estudantes e devolveu o dinheiro, dizendo que não foi avisado das regras

Depois das vitórias, a pergunta que se faz é o que vem pela frente. Um dos desafios que se colocam para o novo movimento estudantil é o de hastear bandeiras que levem de fato à modernização das universidades. O foco não pode ser perdido, sob pena de retrocesso. O problema é que a postura pragmática da geração cara-lavada resulta, paradoxalmente, na desmobilização dos estudantes para outros assuntos que também interessam à sociedade. "Mobiliza muito mais o 'Fora, Renan' do que a discussão pela reforma política", reconhece o estudante de serviço social Fábio Félix, um dos coordenadores do DCE da UnB. 

O mesmo raciocínio, contudo, deve garantir a preservação da Finatec, a fundação ligada à UnB que esteve na origem da queda de Mulholland. Ainda que parcela dos estudantes tenha pedido a extinção da Finatec, é esse instrumento que, na atual estrutura jurídica do setor público, melhor garante a ligação entre a universidade, as empresas privadas e a sociedade. As fundações das universidades públicas mostram-se de grande valia para a extensão acadêmica, facilitando a concessão de bolsas de estudo e financiamento de projetos. Até os hospitais universitários, que funcionam como base do sistema de saúde pública em muitos Estados, necessitam da estrutura dessas fundações para manter suas atividades.

"A massa estudantil não está interessada na partidarização do movimento"
Vladimir Palmeira, líder estudantil de 68.
 

"As fundações são essenciais, por exemplo, para resolver problemas decorrentes da atual falta de autonomia das universidades", ressaltou o vice-presidente da Associação Nacional das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), José Ivanildo do Rego, em debate na Comissão de Educação do Senado. "As fundações não são ruins. Elas foram criadas na década de 1990 para prover recursos e dar agilidade na compra de materiais para pesquisas acadêmicas", faz coro o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), reitor da UnB entre 1985 e 1989.
 

 


TEIXEIRA/CPDOC JB

 
  1968 A morte de Edson Luiz fez a classe média romper com a ditadura  
 


Em 40 anos, uma trajetória errática

Tudo começou com um singelo protesto contra o aumento do preço das refeições no restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro, naquele 28 de março de 1968. Truculenta, a tropa de choque da PM invadiu o local atirando e matou o estudante secundarista Edson Luiz de Lima Souto, 18 anos, que nem protestando estava. Revoltados, os estudantes carregaram seu corpo com a camisa ensangüentada até a sede da Assembléia Legislativa. No dia seguinte, milhares de pessoas acompanharam o féretro até o Cemitério São João Batista. O slogan da passeata marcou a virada de parte da classe média contra a ditadura militar, instalada em 1º de abril de 1964: "Morreu um estudante. Poderia ser seu filho." 

Como um rastilho de pólvora, os estudantes tomaram as ruas e entraram em sintonia com o clima de rebelião que incendiava Paris e se espraiava por cidades européias, americanas e latino-americanas. Em junho, a UNE e a Ubes organizaram uma manifestação no Rio da qual também participaram intelectuais e artistas e que passaria à história como "Passeata dos Cem Mil". Depois disso, a repressão apertou o cerco e a radicalização estudantil aumentou. Em dezembro, veio o AI-5, e com ele o fechamento do Congresso, a censura, as prisões e a tortura. Parte dos estudantes caiu na clandestinidade da luta armada. As ruas foram trocadas pelos aparelhos e a identidade pelos codinomes. Ex-estudantes como Charles Chael Schreider, Honestino Guimarães e Alexandre Vanucchi Leme foram assassinados pela repressão. 

O movimento estudantil brasileiro só voltaria à luz do dia em 1976-1977, principalmente em São Paulo, em meio à chamada "distensão política" da ditadura. Ele seria rapidamente superado pela eclosão das greves operárias no ABC. A UNE foi recriada em 1980, mas seria aparelhada por organizações da esquerda clandestina. Por vias transversas, os estudantes voltaram ao protagonismo em 1992, quando saíram às ruas para pedir o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, primeiro mandatário eleito desde 1960, mas que estava sendo acusado de corrupção. Ficaram conhecidos como "caras-pintadas", por pintarem o rosto com o verde-eamarelo da bandeira. Sinal dos tempos: desta vez, os estudantes não foram influenciados pelas organizações, mas pela mídia e pela minissérie Anos rebeldes, sobre os eventos de 1968. 

CLÁUDIO CAMARGO
 

 
 

ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ

 

A falta de transparência, contudo, é o maior motivo para manter tênue a linha que separa o que pode ser direito do que efetivamente é abuso com recursos públicos. No caso do reitor da UnB, por exemplo, consta a acusação de ter comprado um Honda Civic, de R$ 77 mil, numa cidade em que as autoridades circulam a bordo de Ômegas australianos. Também não pode ser desconsiderado que, embora tenha cometido um deslize de natureza ética, Mulholland exibe em seu currículo realizações importantes, como a criação de campi avançados nas cidadessatélites de Brasília, montados com base no Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni).

Criado no ano passado pelo governo federal, o Reuni prevê o aumento do número de vagas para o ingresso dos estudantes e da proporção de alunos por professor. Entre as metas do programa está a elevação de taxas de conclusão de cursos de graduação para 90%. A promessa do governo é de investir R$ 2 bilhões no setor entre 2008 e 2011. "Isso, ao longo dos anos, significará que as instituições terão um orçamento que, em alguns itens, quase dobrará", explica o secretário de Educação Superior do Ministério da Educação, Ronaldo Mota. Apesar das boas intenções do governo, os estudantes, no ano passado, chegaram a invadir reitorias de universidades públicas em seis Estados sob o falacioso argumento de que o Reuni não prevê a contratação de professores nem a ampliação dos quadros técnicos e da estrutura física da universidade.

A defesa dessas bandeiras questionáveis tem origem na velha chaga da partidarização do movimento estudantil. Gloriosa no passado, a UNE, hoje, é uma geléia ideológica formada por várias legendas, como o PSOL, o PCdoB, o PSTU e o próprio PT. A gaúcha Lúcia Stumpf, atual presidente, é ligada ao PCdoB, que está à frente da entidade há 16 anos, mas corre o risco de perder a hegemonia. Na mobilização da UnB, havia quatro tendências disputando a liderança da invasão da reitoria: o PSTU, o PSOL, o PCdoB, e um grupo independente chamado Instinto Coletivo. "Com a democracia, o que nós temos hoje não é uma politização, mas uma partidarização do movimento estudantil. A massa estudantil não está interessada nisso. Nem eu, se fosse estudante, estaria interessado", critica Vladimir Palmeira, um dos mais carismáticos líderes estudantis da geração de 68.

 


TEMPOS PÓS-MODERNOS O reitor interino, Roberto Aguiar, ex-secretário de Segurança, e o estudante Fábio Félix, do PSOL: diálogo inimaginável na época da ditadura militar.

O desinteresse a que se refere Palmeira pode ser medido por um recente levantamento do Ibase e do Instituto Pólis, realizado com oito mil jovens de 15 a 24 anos, das oito maiores regiões metropolitanas do País. Segundo a pesquisa, a maior parte dos estudantes tem como principal preocupação a falta de segurança e o desemprego, seguidas da qualidade da educação e da desigualdade social. A participação política é mínima: 75% nunca estiveram em uma associação estudantil e 96% nunca atuaram em ONGs. Vladimir Palmeira atribui a falta de engajamento exatamente à partidarização do movimento estudantil. "Talvez boa parte daqueles jovens de 68 não estivesse fazendo política hoje. O estudante que começa na política hoje só aspira a ser deputado ou assessor parlamentar", critica ele. Fábio Félix, um dos líderes da ocupação na UnB, é filiado ao PSOL e coordenou a campanha à Presidência da República da ex-senadora Heloísa Helena, em Brasília.


PRAGMATISMO Na sexta-feira 18, os estudantes deixam a reitoria da UnB, mas ainda falta uma nova agenda para o movimento.

 

O ex-ministro José Dirceu, outra das referências dos anos 60, diz que os tempos são outros: "Quando eu cheguei na universidade, dois terços eram públicas. Hoje é o contrário, mais de dois terços das universidades são privadas. Em cada etapa da história, o movimento estudantil tem um papel e uma forma de se manifestar. Não podemos dizer se esse é menos autêntico, se é menos radical." 

Para manter a coerência com o pragmatismo e suas assembléias de resultados, os caras-lavadas da geração de 2008 do movimento estudantil não deveriam perder de vista a necessidade da gestão competente e a valorização do mérito na universidade. Mas uma parcela dos estudantes defende, por exemplo, a paridade de voto na escolha dos reitores, com o mesmo peso para professores, servidores e alunos. A experiência na própria UnB com a votação paritária foi funesta. Durante a gestão Antônio Ibañez (1989/93), por exemplo, a

força política conquistada pelos servidores transformou o campus numa espécie de república sindical. Seguidas greves de servidores resultaram em roubos de equipamentos e computadores, ignorando o que realmente interessa na universidade: desenvolver conhecimentos e formar cérebros que resultem num país melhor.

 

Fonte: Rev. IstoÉ, Sérgio Pardellas, ed. 2007, 23/4/2008.

 


Coletânea de artigos


Home