Temporada de caça aos ratos
Os roedores do
dinheiro público começam a ser apanhados, mas a
Cada real tragado pelo ralo da corrupção é um dinheiro que deixa de ser gasto na merenda escolar, na compra de remédios para os pobres, na melhoria das estradas, enfim, no desenvolvimento social e físico do país. Por que o Brasil não consegue avançar mais na corrida contra essa praga? Uma das respostas é: porque ele demorou a dar a largada. O histórico de combate à imoralidade pública no país é muito recente, se comparado ao de outras nações. Desde a década de 80, países desenvolvidos discutem como adaptar a legislação criminal às novas práticas de desvio de recursos públicos, como a remessa ilegal de dinheiro para o exterior e sua camuflagem em empresas off-shore. No Brasil, essa preocupação surgiu há pouquíssimo tempo: só em 2001 se conseguiu, por exemplo, flexibilizar as regras para a quebra do sigilo bancário – ferramenta fundamental para esclarecer casos como os de enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro. O Brasil também não foi capaz ainda de resolver uma questão crucial quando se trata de pôr um fim à impunidade dos criminosos: seu modelo processual. Quando um corrupto chega a se sentar no banco dos réus, entra em operação uma engrenagem destinada a evitar, a todo custo, sua condenação. A peça principal dessa engrenagem atende pelo nome de recurso – ferramenta legal que, criada originalmente para proteger o acusado de eventuais erros jurídicos, acaba sendo usada com freqüência por (bem pagos) advogados para protelar o julgamento – às vezes por décadas. No Brasil, há 21 formas diferentes de recursos. "Já encontrei quarenta deles em um só processo. Isso é um absurdo", diz o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Edson Vidigal. É esse tipo de situação que, muitas vezes, acaba neutralizando as pequenas conquistas brasileiras no combate à corrupção. Um exemplo dessas vitórias são os bons resultados obtidos pela Polícia Federal (PF) em suas últimas ações. Só neste ano, a PF prendeu, em treze diferentes operações, 262 pessoas acusadas de corrupção, entre elas 51 servidores públicos. Quase todas estão em liberdade, aguardando o fim dos inquéritos e o julgamento dos processos. Pelo modelo processual brasileiro, o mais certo é que a maioria dos corruptos, mesmo os de culpa provada, continuará solta. "Hoje, há a repressão, mas ainda são poucos os casos de condenação pela Justiça, que deveriam ser uma conseqüência lógica da ação", diz a procuradora Adrienne Senna, ex-presidente do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). "O conceito de ampla defesa do réu não pode ser ilimitado. Precisa ser revisto", acrescenta Vidigal. Acabar completamente com a imoralidade pública é uma meta utópica. O que é possível fazer é conseguir chegar a um nível de corrupção que corresponda apenas à fraqueza inerente da condição humana – ou a um nível em que, como diz o ditado popular, a ocasião faz o ladrão. No Brasil de 2005 os ladrões do dinheiro público estão fazendo a ocasião. Isso pode e tem de acabar. Países que conseguiram conter essa praga experimentaram surtos produtivos. Em 1970, Hong Kong tinha renda per capita de 970 dólares e era um exemplo clássico de corrupção, fruto da relação promíscua entre a polícia e o jogo ilegal. O governo legalizou as apostas, promoveu uma limpa em seus quadros policiais e o resultado apareceu logo. Hoje, a renda per capita da ex-colônia inglesa é de 25.000 dólares e o território ocupa o 14º lugar no ranking da Transparência Internacional, que lista os 133 países que melhor combatem o problema. A Itália viveu experiência semelhante quando, nos anos 90, um grupo de magistrados desencadeou uma maciça investida contra a Máfia e suas ligações no governo, que ficou conhecida como Operação Mãos Limpas. Foram 3.000 pessoas investigadas, 1.000 indiciamentos e 400 condenações – um resultado que só foi possível graças a um esforço concentrado que envolveu a reestruturação do Ministério Público e da polícia judiciária, que atuaram em conjunto. Ações grandiosas não são necessariamente as mais eficazes. Medidas simples (leia quadro) como a redução drástica do número de cargos de confiança no poder público, preconizada por órgãos como o Banco Mundial e a Transparência Internacional, por exemplo, já fariam uma enorme diferença no caso brasileiro. Isso porque um funcionário que chega ao cargo por indicação política provavelmente estará mais comprometido com os interesses de seus "padrinhos" do que com o interesse público. A Transparência Internacional registra ainda uma série de experiências de países que conseguiram vitórias no combate à corrupção simplesmente aperfeiçoando sua legislação. A Zâmbia criou leis específicas para punir a corrupção entre funcionários públicos e as Filipinas têm em sua Constituição dezoito artigos voltados exclusivamente para monitorar o comportamento dos servidores, incluindo o presidente. Há leis prevendo a recuperação de imóveis adquiridos ilegalmente por um servidor e vetos a empréstimos de bancos oficiais a altos funcionários do governo. Já países como Austrália, Cingapura, Tailândia e Hong Kong instituíram as agências anticorrupção. Baseadas no modelo defendido pela Transparência, elas são encabeçadas por um representante do Executivo e formadas por um conselho do qual participam o Legislativo e o Judiciário, além de órgãos como o Tribunal de Contas e o Ministério Público. Sem função investigativa, servem para mapear as falhas nos mecanismos de controle do Estado e traçar estratégias para aperfeiçoá-lo. Outra medida de fácil execução na briga contra a corrupção é investir no que já existe e vem dando certo. Exemplo disso é o método de fiscalização dos municípios que há dois anos vem sendo praticado no Brasil pela Controladoria-Geral da União. Mediante sorteio, a CGU seleciona, todo mês, sessenta cidades que irão passar por uma auditoria destinada a checar se o dinheiro recebido da União para ser investido em saúde e educação está sendo corretamente aplicado pelos governantes. Foi por meio desse trabalho que a Polícia Federal chegou à Operação Gabiru, deflagrada na terça-feira passada, e que terminou com a prisão de 31 pessoas em Alagoas, incluindo oito prefeitos e cinco ex-prefeitos. Eles são acusados de participar de um esquema de desvio, na direção do próprio bolso, de verbas destinadas à compra de merenda escolar. Segundo a PF, a roubalheira vinha dando tão certo que os prefeitos já estavam "exportando" o know-how do crime para pequenas cidades de Alagoas. Por meio de uma espécie de manual da corrupção, ensinavam aos colegas como fazer com que o dinheiro destinado à compra da merenda escolar escorresse para suas próprias carteiras. O esquema só foi descoberto porque, numa das fiscalizações da CGU em Alagoas, auditores farejaram o cheiro de maracutaia e, como de praxe, comunicaram o fato ao Tribunal de Contas da União e ao Ministério Público. Dispondo de 2.000 auditores para fiscalizar 5.600 municípios brasileiros, a CGU, no entanto, só conseguiu monitorar, até agora, pouco mais de 5% do total de recursos que a União distribui aos municípios. Se a corrupção no Brasil até agora não diminuiu, o mesmo não se pode dizer da tolerância das pessoas em relação a ela. Na semana passada, em uma manifestação que teve até gás lacrimogêneo e vidraças quebradas na Assembléia Legislativa, milhares de pessoas saíram às ruas em Rondônia para protestar contra uma situação insólita: um desembargador do Tribunal de Justiça proibiu a exibição, no estado, de uma reportagem que foi ao ar na semana passada no programa Fantástico, da Rede Globo. A reportagem baseou-se em um vídeo gravado pelo governador do estado, Ivo Narciso Cassol. Na fita, sete deputados da Assembléia Legislativa de Rondônia aparecem, sem nenhum constrangimento, pedindo propinas a Cassol em troca de apoio na votação de projetos de interesse do Executivo. A indignação da população de Rondônia não se deve apenas à atitude dos deputados e à censura do juiz. Como ficou claro nas manifestações, pouca gente se sensibilizou com o papel de vítima que o governador tentou desempenhar. Cassol, que fez as gravações em 2003 e só agora as tornou públicas, responde, ele próprio, por acusações de nepotismo, fraudes em licitação e até participação no contrabando de diamantes.
Com reportagem de José Edward, de Rondônia, Sérgio Martins e Erin Mizuta
Quadro:
Por onde o rato escapa Fonte: Rev. Veja, Marcelo Carneiro e Juliana Linhares, edição n 1906, 25/05/2005. |