Entrevista: Marco
Antonio Villa
O bufão da américa
Historiador diz que Hugo Chávez, presidente da Venezuela, é perigoso por ser
ambicioso e imprevisível
"Se Lula tivesse sido presidente na República Velha, o Acre seria dos
bolivianos e Santa Catarina, dos argentinos" |
O
historiador Marco Antonio Villa já escreveu 21 livros, com temas que variam
da Idade Média à Revolução Mexicana. Ao investir contra mitos da história
nacional em suas obras e artigos, esse professor da Universidade Federal de
São Carlos colecionou polêmicas e fez dezenas de inimigos. Sete anos atrás,
tornou-se persona non grata no estado de Minas Gerais ao sustentar que
Tiradentes foi um herói construído pelos republicanos. Mais tarde, causou
comoção ao escrever que o presidente João Goulart, deposto pelos militares
em 1964, preparava o próprio golpe de estado para obter a reeleição. "Os
historiadores costumam ter receio de polêmicas, mas é com elas que se
transforma a visão de mundo de uma sociedade", diz Villa, que tem 52 anos.
Estudioso da diplomacia brasileira, ele vê com preocupação o sumiço da linha
de diplomacia cunhada pelo barão do Rio Branco. "O barão profissionalizou o
Itamaraty, que passou a atuar em busca dos interesses do país, e não de um
governo ou partido." Em sua casa na Zona Norte de São Paulo, o historiador
deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – Como o senhor
avalia a atual diplomacia brasileira?
Villa – Nossa diplomacia se esquiva de defender os interesses nacionais na
América Latina. Teima sempre em chegar a um acordo e, como não consegue,
acaba cedendo aos vizinhos. Se Lula tivesse sido presidente na República
Velha, o Acre seria hoje dos bolivianos e Santa Catarina, dos argentinos.
Por aqui se pensa que o Brasil não pode ter interesses nacionais ou
econômicos na América do Sul, uma vez que estamos em busca de uma integração
regional. É um equívoco. Os interesses do Brasil não são os mesmos da
Argentina. Os objetivos do Paraguai não são os do Brasil. A linguagem amena,
educada, usada pelos nossos diplomatas apenas tem fortalecido os caudilhos
da região, como o venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo Morales, que se
acham com autoridade para falar ainda mais grosso e aumentar as exigências.
Veja – A diplomacia
brasileira não era assim no passado?
Villa – Não. No fim do século XIX, a Argentina reivindicou o oeste do Paraná
e de Santa Catarina. Não fazia o menor sentido. O presidente Prudente de
Moraes, com a ajuda do barão do Rio Branco, resolveu a questão e evitou a
doação da área. Não perdemos um hectare de terra. O barão sabia quais eram
os interesses nacionais e os defendia. Além disso, profissionalizou o
Itamaraty, que passou a coordenar uma política em nome do país, e não de um
governo ou partido. Hoje, precisamos urgentemente que o barão do Rio Branco
se incorpore no ministro das Relações Exteriores.
Veja – O Brasil cede
sempre?
Villa – Só não o fazemos quando é impossível. Em negociações recentes com a
argentina Cristina Kirchner e com Evo Morales, a Petrobras recusou-se a
fornecer gás para a Argentina, que vive sob ameaça de um apagão. Se cedesse,
o Brasil teria um grave desabastecimento. Nos outros casos, somos sempre
fregueses. O Brasil já sofreu no passado uma invasão de produtos argentinos
e ninguém reclamou. Quando a situação se inverteu e a balança comercial
tornou-se superavitária para o Brasil, os argentinos chiaram e conseguiram o
que queriam. Com a Bolívia, aceitamos uma indenização simbólica pelas
refinarias nacionalizadas, a um valor muito aquém do que foi investido pela
Petrobras. Com Hugo Chávez, falamos sempre "não" na primeira hora, depois
dizemos "sim". Éramos contra o Banco do Sul. Hoje somos a favor. Fazemos o
oposto do que recomendava Vladimir Lenin, para quem era preciso dar um passo
atrás e depois dois para a frente. A diplomacia nacional dá um para a frente
e dois para trás.
Veja – Deportar
turistas espanhóis é uma resposta inteligente à repatriação de brasileiros
que tentavam ir para a Espanha?
Villa – Foi um exagero. A política externa não é para ficar a cargo de um
funcionário da Polícia Federal. As cenas dos espanhóis sendo deportados no
aeroporto de Fortaleza são absurdas. Uma coisa é um turista que vai para
Jericoacoara, outra é um brasileiro que, supostamente ou não, deseja
trabalhar na Espanha. Quando faz diplomacia com a Europa, os Estados Unidos
ou a Ásia, o Brasil tem sido muito agressivo. É como se o esforço para se
afirmar como país, uma vez que não se realiza na América Latina, fosse todo
desviado para os fóruns em outros continentes. Ser duro com um turista
espanhol é fácil. Quero ver ser duro com Hugo Chávez.
Veja – Chávez é o
grande líder da América Latina?
Villa – Quando se olha o que ocorre com os mais de vinte países da região,
não há dúvida disso. Com a alta do preço do petróleo, Chávez construiu uma
sólida rede de alianças. Foi uma sucessão de vitórias. Tem o apoio de Cuba,
Nicarágua, Equador, Bolívia, Argentina. Quem está do lado do Brasil?
Ninguém. Chávez é um ator que faz um monólogo. Eventualmente alguém da
platéia sobe no palco e participa. O show é dele. Ele determina o que vai
ser discutido e como. Os outros só correm atrás. Os países que estão se
aproximando do Brasil, como Paraguai e Peru, fazem isso apenas porque não
tiveram ainda um estabelecimento de relações com a Venezuela. A história
talvez comece a mudar agora. Não por obra de Lula, evidentemente, e sim de
Álvaro Uribe, o presidente colombiano. Graças a ele, Chávez teve sua
primeira derrota em política externa. A reunião da Organização dos Estados
Americanos (OEA), que colocou panos quentes na discussão que se seguiu à
morte do terrorista Raúl Reyes, pode sinalizar um futuro diferente.
Veja – Por que o
senhor considera que Chávez perdeu?
Villa – Chávez é um caudilho e, como tal, precisa de um palanque para
discursar. Quando reagiu com firmeza à morte de Raúl Reyes no Equador,
ganhou um palco considerável. Só que durou pouquíssimo tempo. A solução
rápida e eficaz do problema pela OEA, que estava sumida do mapa, tirou essa
oportunidade dele. Chávez resignou-se porque a maioria dos países apoiou a
resolução final, que condenava a invasão territorial no Equador e ao mesmo
tempo acusava a presença das Farc naquele país. Uribe, ao pautar as
negociações que esfriaram o conflito, mostrou que é possível dar um basta a
Chávez. Sua atitude terá um impacto pedagógico até mesmo dentro da
Venezuela, onde o povo tem aceitado as precárias condições internas do país
ao ver que, externamente, seu presidente só obtém vitórias. Chávez teve sua
primeira grande derrota no referendo constitucional. Agora, teve a segunda
derrota, dessa vez em política externa.
Veja – Por que o
discurso é tão importante para um caudilho?
Villa – Um caudilho não vive sem a oratória. O programa dominical Aló
Presidente é o que vitamina Chávez. Fidel Castro adora discursar por horas.
O mexicano Antonio López de Santa Anna foi ditador várias vezes, afundou seu
país e, ferido e pensando que ia morrer, ditou suas últimas palavras. Foram
quinze páginas. No fim, sobreviveu com uma perna amputada, que sepultou com
honras militares. A oratória é uma tradição latino-americana, que ocorre
paralelamente à dissociação entre discurso e prática. Para esses homens e
para as suas platéias, é como se as palavras, sozinhas, tivessem um poder de
mudar a realidade. Pura bobagem. Não existe tal mágica. Lula também aposta
nesse artifício. Acha que ao divulgar o programa do PAC pode transformar o
Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, em um bairro residencial em seis
meses. Para os sucessores, a herança desse tipo de comportamento é
terrível.
Veja – Por que os
latino-americanos possuem o vício da oratória?
Villa – Em parte, há na América Latina uma forte tradição do bacharelismo.
Muitos dos presidentes passaram por faculdades de direito. No Brasil,
Getúlio Vargas e Jânio Quadros são exemplos. Epitácio Pessoa era chamado de
"A Patativa do Norte", em referência a uma ave cantora. Fidel Castro foi
advogado. O argentino Juan Domingo Perón não era, mas a maioria dos seus
auxiliares, sim. Para um advogado, o que importa não é a legitimidade da
causa, mas o nível de retórica do advogado para defender seu acusado. Somos
muito marcados por isso.
Veja – Qual é o maior
perigo de Chávez para o resto da América Latina?
Villa – Ele está armando seu Exército e sua população. Compra fuzis, caças e
faz acordos com o Irã. Ninguém parece levar isso a sério. A diplomacia
brasileira sabe disso e vai contornando a situação. Uma hora Chávez vai
invadir a Guiana. Ele reivindica quase dois terços do território desse país.
Para Chávez, a Guiana é uma aventura fácil. E quem vai defendê-la? O que a
Guiana conta na América do Sul? Nada.
Veja – Chávez reagiu
ao ataque colombiano às Farc no Equador com um discurso em defesa da
soberania nacional. Ele invadiria a Guiana?
Villa – Chávez é um bufão. Ele construiu um personagem. É um militar de
boina vermelha que se emociona, chora e canta em público. Em um momento é
simpático. No minuto seguinte, aparece totalmente irado. O bufão é isso.
Nunca se podem prever suas atitudes. Pode abraçar um crítico ou mandá-lo
para a prisão. Suas atitudes não se regem pelo mundo racional. O bufão
trabalha em outro universo.
Veja – Por que Chávez
defende as Farc?
Villa – Seu objetivo é enfraquecer Álvaro Uribe. Chávez vê de forma
simplista a conjuntura latino-americana. O mundo para ele se divide de uma
maneira muito primária: os que estão com ele e os que estão com os Estados
Unidos. Considera que o presidente da Colômbia é um agente imperialista na
América do Sul. O combate às Farc tem sido uma das mais fortes bandeiras de
Uribe.
Veja – É legítimo usar
grupos armados ou políticos de outros países para causar instabilidade?
Villa – Há uma incompatibilidade em defender a soberania e apoiar
materialmente um movimento terrorista em um país vizinho. No Brasil, tivemos
uma história parecida. No governo de João Goulart, as Ligas Camponesas
tinham meia dúzia de campos guerrilheiros e contavam com o apoio financeiro
cubano. Quando se descobriram os campos, foi um escândalo. Vivíamos um
regime democrático e o governo brasileiro manifestava-se contrário à
expulsão de Cuba da OEA, enquanto Cuba violava a soberania brasileira
apoiando um movimento guerrilheiro que rompia com a legalidade
constitucional. A defesa da soberania só valia para os cubanos. Eu imaginava
que essa prática de violação da soberania fosse página virada da história
latino-americana. Ledo engano.
Veja – Chávez foi o
grande pacificador do conflito entre Colômbia e Equador, como disse Lula?
Villa – Não há nenhum fato que comprove isso. Os documentos que estavam no
computador do guerrilheiro Raúl Reyes ainda mostram que Chávez apoiava
financeiramente as Farc e também recebia ajuda dos narcoterroristas. Isso
não tem nada a ver com paz. Lula não tinha por que falar isso. Diz essas
asneiras porque está em um momento especial. A economia vai muito bem, o que
levou Lula a entender que ganhou um salvo-conduto para reescrever a história
do Brasil. Discursou homenageando Severino Cavalcanti, que renunciou quando
se comprovou que ele recebia um mensalinho de 10 000
reais para deixar um restaurante funcionando na Câmara dos Deputados. Dois
dias depois, defendeu sua amizade com Renan Calheiros, que teve suas contas
pessoais pagas por um lobista. Quando falou de Chávez, Lula disse que ele
era um ex-guerrilheiro. Lula sabe que essas coisas não são verdade. Não é
ingênuo e é bem assessorado. Mas fala como se fosse um iluminado. É um líder
messiânico em plena campanha eleitoral. Os professores de história devem
estar arrepiados.
Veja – Qual é a
importância do Foro de São Paulo na condução da política externa brasileira?
Villa – O Foro de São Paulo é um clube da terceira idade. Basta ver as
fotos. São senhores em idade provecta, como se dizia antigamente. São
provectos também no sentido ideológico. Suas idéias pertencem ao passado.
Não creio que tenham uma estratégia revolucionária para a América Latina tal
como foi a Internacional Comunista. Durante o período da União Soviética, os
partidos comunistas espalhados pelo mundo eram braços da política externa
soviética. O Foro de São Paulo não tem esse poder. Sua maior influência se
dá pela pessoa de Marco Aurélio Garcia, assessor especial para assuntos
internacionais da Presidência da República, que tem grande participação no
Foro.
Veja – Qual é a
relevância de Marco Aurélio Garcia nas relações externas?
Villa – Desde o início da República, não há registro de um assessor com
tanto poder como ele. Garcia aparece nas fotos quase sempre atrás de Lula.
Dá pronunciamentos em pé de igualdade com o ministro das Relações Exteriores
ou o secretário-geral do Itamaraty. Marco Aurélio Garcia é considerado um
grande acadêmico, um gênio, uma referência para qualquer estudo sobre
relações internacionais na América Latina. Curioso é que não se conhece
nenhuma nota de rodapé que ele tenha escrito sobre o tema. Fui procurar seu
currículo na plataforma Lattes, do CNPq. Não há nada sobre ele. Marco
Aurélio Garcia é o Pacheco das relações internacionais.
Veja – Quem é o
Pacheco?
Villa – É um personagem de Eça de Queiroz que aparece no livro A
Correspondência de Fradique Mendes. Pacheco era um sujeito tido como
brilhante. No primeiro ano de Coimbra, as pessoas achavam estranho um
estudante andar pela universidade carregando grossos volumes. No segundo
ano, ele começou a ficar mais calvo e se sentava na primeira carteira.
Começaram a achar que ele era muito inteligente, porque fazia uma cara muito
pensativa durante as aulas e, vez por outra, folheava os tais volumes. No
quarto ano, Portugal todo já sabia que havia um grande talento em Coimbra.
Era o Pacheco. Virou deputado, ministro e primeiro-ministro. Quando morreu,
a pátria toda chorou. Os jornalistas foram estudar sua biografia e viram que
ele não tinha feito nada. Era uma fraude.
Veja – Que
conseqüências a política externa do Brasil pode ter no futuro?
Villa – Pela primeira vez na história do país existe a possibilidade de a
política externa tornar-se tema de eleição. Seria algo realmente inédito
que, para acontecer, só depende de como Chávez vai agir nos próximos anos.
As concessões dadas à Bolívia, os diversos acordos com Chávez e a recusa em
classificar as Farc como um grupo terrorista estão provocando muita crítica
dentro do Brasil e podem juntar-se em um único e potente tema central na
próxima campanha presidencial.
Fonte: Rev. Veja, Duda Teixeira, ed. 2056,
16/4/2008.
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