A máquina de brincar de Deus
O
maior acelerador de partículas do mundo vai reproduzir os fenômenos que
sucederam
A atmosfera pastoril na vizinhança do maior laboratório de física da Europa, o Cern, na periferia de Genebra, na Suíça, esconde a descomunal liberação de energia que se ensaia nos subterrâneos da região. Ali está sendo preparado o mais ousado experimento da história da física. Cem metros abaixo da superfície, físicos, engenheiros e técnicos fazem os acertos finais para pôr em operação a maior máquina já construída em todos os tempos – o acelerador de partículas LHC (sigla para Large Hadron Collider). O hádron, palavra grega que significa grosso, é uma partícula subatômica com massa – um próton, no caso. Ele é uma alegria para os cientistas por ser fortemente interativo. Os físicos, tanto quanto os paparazzi de celebridades, estão sempre interessados em flagrar interações. Sob essa ótica, o LHC é um reality show que vai produzir e acompanhar as interações mais íntimas do interior da matéria jamais observadas pelo homem. O LHC demorou catorze anos para ser construído e custou 8 bilhões de dólares. Previsto para outubro, o começo do funcionamento do LHC vem dominando as atenções da comunidade científica mundial. Seus responsáveis vão recriar as condições que existiam no universo quando ele tinha apenas um trilionésimo de segundo de existência. Isso é um feito de extraordinárias conseqüências práticas e teóricas. Equivale a lançar uma sonda capaz de viajar 13,7 bilhões de anos no tempo e registrar o espaço a sua volta, transmitindo dados para o mundo atual instantaneamente. Os químicos e biólogos nunca tiveram uma ferramenta tão poderosa a sua disposição. Para os primeiros, equivaleria a ter um microscópio que pudesse captar e mandar imagens das primeiras moléculas orgânicas, surgidas há 4 bilhões de anos, transformando-se em células capazes de fazer cópias perfeitas de si próprias. Para os biólogos, seria como estar numa arquibancada de cerca de 540 milhões de anos atrás, assistindo ao evento singular e misterioso batizado de Explosão Cambriana, quando a evolução se acelerou de forma espetacular no planeta. Ao final da Explosão Cambriana, a vida na Terra passou a ser dominada por animais e plantas que qualquer humano de hoje reconheceria como tais.
Os físicos vão brincar de Deus com o LHC. Eles acelerarão seus hádrons em sentidos opostos dentro de anéis gigantescos, levando-os a 99,9% da velocidade da luz. Então, com a ajuda de um poderoso ímã, vão obrigá-los a mudar de sentido e se chocar. O choque espatifará os hádrons diante de placas sensíveis, que vão registrar e analisar o resultado da trombada – restos de matéria e energia miraculosamente encapsuladas, cada um produzindo uma assinatura de sua natureza e de sua hierarquia no momento da criação do universo. De todas as partículas a ser produzidas na colisão monunental, a que mais interessa aos físicos detectar é um certo "bóson de Higgs", que por enquanto existe apenas nas equações geniais de um físico inglês de 79 anos chamado Peter Higgs. O termo bóson designa um tipo de partícula que foi batizada em homenagem ao físico indiano Styendra Nath Bose, morto em 1974. Os bósons podem ir do genérico fóton de luz ao especialíssimo bóson de Higgs, que, na teoria, deu ao universo aquilo que mais nos interessa, a matéria, sem a qual os espertos bípedes surgidos na savana africana há 100 000 anos não estariam aqui hoje especulando sobre seu passado e a origem do mundo e da vida. Ele foi a partícula mensageira que carregou a energia de um campo que também tem o nome de Higgs. É por meio da interação com esse campo que as outras partículas ganharam massa no começo de tudo. Quanto maior a interação, maior a massa da partícula. O bóson de Higgs é vital não apenas para sustentar o universo. Se ele não se materializar nas trombadas do LHC em Genebra, o que desmorona é a reputação de gerações e gerações de físicos festejados como gênios na academia. O bóson de Higgs é também chamado de "Partícula de Deus". Mas, sem ela, quem está em apuros não são as religiões e suas versões para o gênese, e sim a ciência. Encontrar a assinatura do bóson de Higgs nas placas detectoras do LHC em Genebra provaria a teoria amplamente aceita no mundo científico. Também forneceria uma peça-chave no complicado quebra-cabeça que tenta explicar a origem de tudo. "Se o bóson de Higgs existir, da maneira como a teoria prevê, ele vai aparecer no LHC", disse a VEJA o físico Wolfgang Hollik, diretor do Instituto Max-Planck para a Física, na Alemanha. A certeza de Hollik vem de cálculos realizados por ele e seus colegas para determinar a massa do bóson de Higgs. Segundo os físicos, as colisões produzirão energia mais do que suficiente para recriá-lo em grandes quantidades. Como os cientistas têm tanta certeza de que as trombadas de prótons do novo acelerador darão origem a partículas que nunca foram vistas? Simples. Com seus 27 quilômetros de circunferência, o LHC é a pista perfeita para acelerar prótons a uma velocidade próxima à da luz, aumentando sua energia. Depois de completamente acelerado, um único feixe de prótons, com cerca de 100 bilhões de partículas, terá energia equivalente à de um trem de 400 toneladas viajando a 150 quilômetros por hora. Quando se imagina que cada feixe será um pouco maior que uma agulha de costura, a concentração de energia é gigantesca. Segundo a famosa equação de Einstein E=mc2 (energia é igual à massa vezes a velocidade da luz ao quadrado), massa e energia podem ser transformadas uma na outra. Ao baterem de frente, os prótons terão energia de sobra para criar mini-Big Bangs e reproduzir as partículas presentes na infância do universo, incluindo o bóson de Higgs.
A intensidade energética atingida no LHC será sete vezes mais forte que no Tevatron, o acelerador mais poderoso em operação, do laboratório americano Fermilab. Se uma pessoa entrasse na frente de um dos feixes de prótons do LHC, ela seria instantaneamente vaporizada. Tamanho poder vem por um preço alto. Enquanto estiver funcionando, o LHC consumirá eletricidade suficiente para abastecer quarenta shopping centers. O consumo só não será maior porque se resfriará o acelerador a 271 graus negativos, usando-se hélio na forma líquida. A temperatura, mais baixa que a do espaço, fará com que os materiais do LHC se tornem supercondutores, ou seja, eles oferecerão menor resistência à eletricidade e não dissiparão energia na forma de calor. Se fosse operar com a mesma potência sem o resfriamento, o novo acelerador gastaria quarenta vezes mais eletricidade. Acelerar e colidir partículas é apenas a primeira parte do trabalho. Cada colisão produz milhares de novas partículas, que são analisadas por enormes aparelhos, os detectores. No total, são quatro detectores – Atlas, CMS, Alice e LHCb – instalados em cavernas cavadas ao longo do túnel subterrâneo onde está instalado o LHC. Um único detector, como o Atlas, pesa 7 000 toneladas em equipamentos. Quase todas as peças dele tiveram de ser baixadas por um guindaste através de um poço. As muito grandes precisaram ser colocadas de lado para passar pelo túnel. Uma vez no subsolo, as peças são conectadas por engenheiros e técnicos. "É como montar um daqueles navios que vão dentro de garrafas. Algumas partes, depois que você colocou, não tem mais como tirar", explica Denis Oliveira Damazio, físico brasileiro que trabalha no Cern e na construção do Atlas.
A parte mais complicada é ligar e testar os milhões de fios que enviam os dados das colisões a uma central de computadores. Cada trombada de prótons gera uma cascata de novas partículas que "batem" nas placas dos sensores, onde dados como sua energia e velocidade são transformados em sinais digitais que seguem para os computadores. Cerca de 600 milhões de colisões ocorrerão por segundo nos núcleos dos detectores do LHC, mas os computadores vão selecionar somente uma centena delas para ser armazenadas, usando critérios preestabelecidos pelos físicos. Os dados seguirão para uma rede mundial de computadores, chamada de Grid, montada exclusivamente para guardar os dados produzidos pelo acelerador. Uma vez no Grid, as informações sobre as colisões estarão disponíveis para cientistas do mundo todo. Em apenas um ano de funcionamento, o LHC gerará 15 milhões de gigabytes de informação, que precisariam de 3,2 milhões de DVDs para ser armazenados. Com tamanha quantidade de dados obtidos em apenas um ano, era de esperar que o bóson de Higgs aparecesse logo nos primeiros meses de funcionamento do LHC. Infelizmente, não é bem assim que funciona. Além de nunca ter sido detectado, ou seja, os cientistas não sabem exatamente o que vão encontrar porque há várias teorias, o bóson de Higgs é o que os físicos chamam de partícula instável. Se for criado depois das colisões, o bóson durará somente algumas frações de segundo e logo depois decairá em outros tipos de partícula mais estáveis. Em outras palavras, ele não é diretamente registrado pelos sensores, o que dificulta o trabalho dos cientistas. Para encontrá-lo, os físicos precisarão analisar a montanha de dados das colisões e procurar por perturbações energéticas que indiquem sua presença. A estimativa mais otimista é que a existência do bóson de Higgs seja confirmada um ano após o LHC entrar em funcionamento. E se o bóson de Higgs não aparecer? Os físicos terão de rever sua explicação para o universo como o conhecemos. Isso porque o bóson de Higgs é uma peça-chave do Modelo-Padrão, sistema usado pelos cientistas para explicar a organização dos tijolos fundamentais que formam a matéria. Sem o bóson de Higgs, ou algo parecido com ele, o Modelo-Padrão, que tem sido testado e aprovado nos últimos quarenta anos, terá de ser revisto ou descartado. Disse a VEJA Benjamim Allanach, físico da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. "Para mim, a ‘brincadeira’ fica mais excitante se não acharmos o Higgs, porque teremos de encontrar outras explicações para o início de tudo."
Fonte: Rev. Veja, 2066, Rafael Corrêa (de Genebra), 25/6/2008.
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