Em
breve, um país dividido
Yvonne Maggie*
As cotas
raciais ao serem introduzidas nos fazem sair necessariamente de um país que
se queria misturado e onde a cor dos indivíduos
não deveria influenciar a vida do cidadão para entrar
no mundo dividido entre “raças”
O
ministro Tarso Genro iniciou o seu mandato em fevereiro de 2004. Dois dias
antes da posse e logo depois de ser indicado para o cargo declarou-se
contrário à política de cotas raciais: “As políticas de discriminação
positivas não são políticas que necessariamente levem para cotas. Elas podem
buscar acabar com a discriminação nas suas fontes. No Brasil, os problemas
racial e social estão fundidos. Então, é necessário que se tenha atenção não
somente aos negros, mas também ao conjunto de pobres onde evidentemente há
um contingente negro. Essa discriminação objetiva que foi produzida em
função do sistema social precisa ser corrigida.”
No dia
24 de março disse ainda: “Raça e condição social estão integrados pela
estrutura social perversa que herdamos. O ponto de partida é social, mas
temos que combinar a reparação para negros. Só não podemos permitir que um
negro pobre concorra com um branco pobre e um exclua o outro.”
Tarso Genro parece ter sido convencido rapidamente do contrário. Nos meses
que se sucederam tomou medidas nas quais pela primeira vez na nossa história
introduziu-se o critério “racial” tanto para o acesso ao ensino superior
público federal quanto para a concessão de bolsas de estudo e crédito
educativo que permitem ampliar a cobertura do sistema privado de ensino
superior.
E no dia 10 de setembro instituiu o Programa Universidade Para Todos
(Prouni). Nele se estabelece um percentual para negros e outras minorias
entre as bolsas que serão ofertadas em troca de isenções fiscais.
No caso do crédito educativo o critério tradicional sempre foi o da
carência. Estudantes pobres podiam se candidatar ao benefício. Agora, os
negros terão 20% mais chances se conseguirem provar a sua cor.
A exigência é que o candidato tenha uma certidão do pai ou da mãe na qual
esteja firmada a raça do progenitor.
Para a concessão de bolsas através do Prouni, o estudante também terá que
provar além da carência a sua cor, assim instaurando o que o ministro
dissera que não queria fazer: a concorrência entre “negros” e “brancos”
pobres.
No projeto de lei enviado ao Congresso a reserva de vagas nas universidades
federais será de 50% para estudantes de escolas públicas e, dentre estas, um
percentual de negros (considerados aí pretos e pardos conforme as
estatísticas oficiais) e indígenas igual ao da população do estado em que a
instituição esteja localizada.
O Brasil até hoje tem se constituído em um país de legislação a-racial. Esta
mudança legal significa que agora os direitos serão atribuídos a partir da
definição obrigatória em uma das categorias utilizadas pelo IBGE.
As cotas raciais ao serem introduzidas nos fazem sair necessariamente de um
país que se queria misturado e onde a cor dos indivíduos não deveria
influenciar a vida do cidadão para entrar no mundo dividido entre “raças”.
Ou se é negro ou não se é negro legalmente.
Será que o ministro e seus assessores estão pensando nas conseqüências dessa
mudança tão radical, esquecendo os seus receios iniciais? Será que os nossos
representantes se dão conta de que essa mudança, aparentemente pequena, é um
passo muito grande para a criação de um país dividido entre brancos e
negros?
Estarão conscientes de que a introdução do sistema de cotas irá colocar a
disputa por vagas em instituições privadas e públicas nas costas daqueles
mais pobres que estão estudando em escolas públicas de qualidade duvidosa?
A minha pesquisa nas escolas públicas no Rio de Janeiro revela a dimensão do
problema que estará diante de nós nos anos vindouros com os legalmente
negros duelando com os legalmente brancos por vagas.
Não podemos saber como vai ser o futuro, certamente, mas é nossa
responsabilidade pensar nas conseqüências possíveis de uma política dirigida
para o ensino superior, mas com sérias implicações para a sociedade.
*Yvonne Maggie é
professora de antropologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Fonte: O Globo, 27/12/2004. |