Brasil
A
convicção de que o Brasil tem direito à bomba A persiste em setores do
governo O ex-embaixador brasileiro em Paris Marcos de Azambuja disse certa vez que, ao contrário dos países que procuram disfarçar medidas ilícitas de uma forma lícita, o Brasil gosta de dar uma aparência ilícita a atividades perfeitamente lícitas. A observação é perfeita para descrever a postura ambígua da diplomacia brasileira em relação aos esforços para coibir a proliferação de armas atômicas. O Brasil tem um programa nuclear civil, mas age como se considerasse correto usá-lo para fins militares. Primeiro, porque se recusa a apoiar sanções econômicas para convencer o Irã a desistir de seus planos de desenvolver uma bomba atômica. Segundo, porque ameaça não aderir a uma renovação do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). As sanções ao Irã e a revisão do TNP serão discutidas em reunião das Nações Unidas marcada para o mês que vem, em Nova York. O Brasil está se isolando nesse tema, como ficou claro na semana passada. Durante a Conferência de Segurança Nuclear nos Estados Unidos, Lula criticou o anfitrião, o presidente Barack Obama, por seu plano de punir o Irã por suas ambições atômicas. Obama, em resposta, demonstrou quanto considera irrelevante a opinião brasileira ao ceder apenas três minutos de sua agenda para uma conversa com Lula. Dias depois, durante o encontro dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) em Brasília, Lula tentou fazer proselitismo sobre o assunto. Os presidentes Dimitri Medvedev, da Rússia, e Hu Jintao, da China, os únicos presentes com poder de vetar uma proposta de sanção no Conselho de Segurança da ONU, não deram trela. Ao defender países párias e distribuir bravatas contra os tratados de não proliferação, o governo Lula faz a comunidade internacional supor que o programa nuclear brasileiro não tem fins pacíficos. "A história brasileira e declarações recentes de membros do governo dão margem à especulação de que poderia haver planos sigilosos de armas nucleares no país", diz o historiador Marco Antonio Villa. Desde 1975, quando o Brasil fechou um acordo com a Alemanha para a construção de reatores em Angra dos Reis, os militares namoram a ideia de ter a bomba A. O governo de Ernesto Geisel chegou a cavar um poço de 320 metros de profundidade na Serra do Cachimbo, no Pará, para testar artefatos atômicos. O buraco, nunca utilizado, foi fechado em 1990. Suspeita-se que, no governo de João Batista Figueiredo, o Brasil tentou colaborar com o ditador iraquiano Saddam Hussein para desenvolver armas atômicas. Em 1981, dois aviões iraquianos chegaram a levar yellow cake (urânio concentrado) do interior de São Paulo para Bagdá. Em 2004, a comunidade internacional voltou a desconfiar quando o Brasil impediu a visita de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), da ONU, às instalações da fábrica de enriquecimento de urânio que estava sendo construída em Resende, no Rio de Janeiro. Na época, o governo justificou a proibição dizendo temer a espionagem industrial. Antes disso, Lula teve de demitir o ministro da Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, por ter defendido o direito do Brasil de desenvolver a tecnologia necessária para construir a bomba. O desejo latente e, muitas vezes, mal disfarçado de alguns setores do governo de dar um passo além no programa nuclear é alimentado pela noção de que há uma assimetria no direito internacional. "Existe um grande desequilíbrio no mundo em relação ao poderio nuclear. Por isso, não há razão para assinar um protocolo adicional ao TNP", diz Odair Dias Gonçalves, presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear, do Ministério de Ciência e Tecnologia. Se os Estados Unidos e a Rússia, as duas maiores potências nucleares do mundo, não cumprem suas promessas de desmantelar seu arsenal, por que os outros países vão ficar atrás? Simples. "O argumento da igualdade entre as nações aplicado à questão nuclear pode ser verdade na teoria, mas é perigoso quando defendido por um presidente, como tem feito Lula", explica o sociólogo Demétrio Magnoli. Nesse caso, a realidade se sobrepõe aos princípios. Nove países detêm a bomba atômica. Estados Unidos e Rússia acabaram de assinar um acordo se comprometendo a reduzir em 30% o seu estoque de ogivas. Pode não ser o suficiente, mas pior do que eles manterem seus arsenais é a possibilidade de o clube atômico aumentar. Isso significaria multiplicar o risco de um conflito apocalíptico. Sem contar o perigo, ainda mais real, de as armas nucleares caírem nas mãos de terroristas. Fonte: Rev. Veja, Ana Claudia Fonseca e Duda Teixeira, ed. 2161, 21/4/2010.
A
posse de armas nucleares por países isolados e instáveis, como a Coreia do
Norte,
Terá chegado o momento de sentir saudade da segurança relativa da Guerra Fria? Naquele tempo sombrio, quando a humanidade segurava o fôlego diante da ameaça de aniquilação, pelo menos era possível acreditar que o gatilho nuclear estava em mãos inimigas responsáveis. O cenário atual é mais incerto e mais perigoso. Os dois únicos testes nucleares deste século foram realizados pela Coreia do Norte, uma ditadura tão enigmática quanto insana. O segundo deles, na segunda-feira passada, numa região montanhosa e inóspita no nordeste do país, reverberou como a confirmação de que a proliferação nuclear atingiu o patamar a partir do qual o perigo é imediato e urgente. Dois fatos principais justificam o alarme. A posse de um artefato atômico por um país isolado e pobre demonstra que o desenvolvimento desse tipo de armamento está ao alcance de qualquer nação disposta a investir os recursos necessários para fazê-lo. Se países miseráveis e com governos frágeis se armam com átomos, não está distante o momento em que o gatilho atômico cairá na mão do terrorismo. Um estudo da Universidade Stanford estimou a probabilidade de um ataque terrorista com o uso de bombas sujas (ou seja, explosivos comuns misturados a material radioativo) em 20%. Com bombas nucleares, cai para 1%. Qualquer estimativa acima de zero é um pesadelo quando se fala da combinação de terroristas e plutônio. O mais notável fenômeno da era nuclear talvez seja o fato de que desde o ataque a Hiroshima e Nagasaki, em 1945, o último ano da II Guerra Mundial, nenhum país ousou detonar uma bomba atômica em combate. Os Estados Unidos tiveram o monopólio do átomo entre 1945 e 1949, mas não o usaram contra a União Soviética, apesar das provocações de Stalin. Também poderiam ter empregado esse recurso no Vietnã, onde a tonelagem de explosivos convencionais lançados equivaleu a dúzias de bombas como a de Hiroshima. Armas nucleares não foram usadas nem em situações desesperadas. A Casa Branca rejeitou os apelos nesse sentido do general Douglas MacArthur, que se viu impotente diante do avanço das divisões chinesas na Guerra da Coreia. O conflito terminou em 1953 no impasse que ainda hoje divide a península coreana entre dois inimigos mortais. É complicado explicar um evento que não ocorreu, mas é comum ouvir que o temor da aniquilação mútua conteve os ímpetos guerreiros dos Estados Unidos e da União Soviética. Porém isso não explica o comedimento em circunstâncias nas quais não havia o temor de retaliação, caso dos soviéticos no Afeganistão e dos americanos no Iraque.
O cientista político James Lee Ray, da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, acredita que por trás desse fenômeno reside uma espécie de "progresso moral". Esses conceitos éticos obedeceriam aos mesmos padrões daqueles que determinaram a eliminação da escravidão no século XIX – e, que, até hoje, mantêm a repulsa à sujeição de seres humanos. Mesmo sem uma proibição formal do uso de armas nucleares, as sociedades desenvolveram uma aversão moral a esse armamento. "As considerações éticas ajudaram a evitar o uso de armas nucleares desde 1945, pelo menos no que diz respeito a países detentores de um arsenal nuclear contra outros desprovidos dos mesmos artefatos", disse Lee Ray a VEJA. Com o fim da Guerra Fria, os países civilizados que assinaram o Tratado de Não Proliferação Nuclear, em 1968 (Estados Unidos, Rússia, China, Inglaterra e França), reduziram seus arsenais atômicos. Desde 1986, o número de ogivas no planeta caiu de 70 000 para 25 000, das quais cerca de 8 000 são operacionais. Outros países desistiram da bomba. Esse cenário animador, infelizmente, está agora virado de cabeça para baixo. O fim da Guerra Fria também fomentou o comércio ilegal e a proliferação de programas nucleares em países periféricos, politicamente conturbados, como o Paquistão, quando não governados por fanáticos, como o Irã. Com a bomba na mão desse tipo de país, o capítulo seguinte se torna totalmente imprevisível. "Eu não diria que o progresso moral eliminou as possibilidades de que países instáveis, como a Coreia de Kim Jong-Il, desencadeiem uma guerra nuclear. No caso desses estados, na verdade, nem sei se posso falar em progresso moral", diz Lee Ray. O ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-Il, é uma figurinha ridícula, que usa sapatos com salto plataforma para compensar a baixa estatura e um topete ouriçado no estilo de Elvis Presley. Mas não deve ser visto como irracional ou suicida. As negociações em torno do programa nuclear norte-coreano se repetem há anos. Em bom português, pode-se dizer que a Coreia do Norte se especializou em chantagem diplomática. Em alguns momentos, senta-se à mesa com os demais países e acena com a paralisação de seu programa nuclear. Em outros, abandona rispidamente os encontros – o último foi há dois meses –, lança mísseis e faz novas ameaças. Com essa estratégia, Kim Jong-Il conseguiu ampliar o recebimento de ajuda humanitária internacional, da qual depende um terço da população, combustível e algum dinheiro. "O ditador norte-coreano quer mostrar firmeza e enviar mensagem que possa render-lhe novas concessões", disse a VEJA Stephen Noerper, analista do Nautilus Institute, na Califórnia.
Por isso é difícil interpretar o acesso de fúria que tomou conta do governo de Pyongyang na semana passada. A escalada começou com o teste nuclear, subiu alguns tons com o disparo de meia dúzia de mísseis e se tornou estridente com o anúncio de que o país se retirava do acordo de armistício de 1953, que pôs fim à guerra. Em termos técnicos, está-se de volta ao tempo em que o general MacArthur queria vaporizar os comunistas. Desde a morte de Kim Il Sung, fundador e oficialmente presidente eterno, em 1994, não se via um comportamento tão errático da Coreia do Norte. Há explicações variadas, nenhuma delas tranquilizadora. A deterioração do país coincide agora com a decadência física de Kim Jong-Il. Ele sofreu um derrame cerebral no ano passado e, pelo que se vê nas fotos, o que sobrou é sombra do sujeito rechonchudo do passado. Aos 68 anos, ele tem a aparência de um agonizante, caminha com passos trôpegos e já não se arrisca a pronunciar uma única palavra em público. O comunismo produziu um governo dinástico que tem mais a ver com os reis coreanos do passado do que com os ensinamentos de Marx e Lenin. Até a boa vontade divina para com o delfim é realçada na versão oficial de que Kim Jong-Il nasceu nas encostas do sagrado Monte Paektu e seu nascimento foi saudado por um duplo arco-íris. Na realidade, ele nasceu em um acampamento militar na Rússia, quando seu pai comandava o batalhão coreano do Exército Vermelho. O regime está inquieto com a sucessão – e talvez seja essa a razão de tanto rebuliço. O filho mais velho, Kim Jong-nam, de 38 anos, seria o candidato natural à sucessão, mas perdeu a vez depois do vexame de ser preso com passaporte falso no Japão, onde pretendia visitar a Disneylândia, em 2001. Também atrapalha sua presença assídua nos cassinos de Macau. O segundo, Kim Jong-chol, não conta. É homossexual e prefere assistir a um concerto de Eric Clapton na Alemanha ao tédio de um desfile militar. O favorito do ditador é o filho caçula, Kim Jong-un, de 26 anos. Educado na Suíça, fala diversas línguas, adora artes marciais e, dizem, tem a cara e o temperamento do pai: é prepotente, não gosta de ser questionado e se enfurece facilmente. É nas mãos desse jovem desconhecido que pode estar a bomba nuclear.
A possibilidade de a Coreia do Norte desfechar um ataque nuclear contra seja lá quem for é pequena. Em parte, porque sabe que, mesmo que arrase Seul, que está a apenas 40 quilômetros de distância, não escaparia de ser igualmente devastada. Há também que considerar que o desenvolvimento de seus artefatos bélicos está em estágio primitivo. Os dois dispositivos testados possuem mais de 3 metros de comprimento e pesam 4 toneladas. Com tais medidas, seria impossível colocá-los na ponta de um míssil. "Os dispositivos coreanos são grandes e rudimentares e não podem ser transportados nem mesmo a bordo de um avião", disse a VEJA o americano Rodger Baker, analista da Stratfor, uma consultoria de geopolítica com sede nos Estados Unidos. Estima-se que o artefato testado na semana passada tenha um poder de destruição de 4 quilotons, ou 4 000 toneladas de dinamite. A capacidade é menor do que a da bomba lançada pelos americanos sobre a cidade japonesa de Hiroshima, de 17 quilotons, mas dez vezes superior àquela testada pelos norte-coreanos em 2006. A simples existência do programa norte-coreano é a prova da fragilidade dos mecanismos contra a proliferação nuclear. O Paquistão iniciou seu programa nuclear com os manuais de centrífugas de enriquecimento de urânio que o engenheiro Abdul Qadeer Khan roubou da empresa em que trabalhava na Holanda. O projeto da bomba foi comprado dos chineses. Festejado como herói nacional, Khan revelou-se um ladrão. Montou um esquema para vender equipamentos e tecnologia nuclear a quem tivesse interesse. Entre seus fregueses estavam o Irã, a Líbia e a Coreia do Norte. O esquema desabou em 2003, quando um carregamento com material para montar 1 000 centrífugas foi interceptado a caminho da Líbia. A Coreia do Norte agora tem parceria com o Irã no desenvolvimento de mísseis de longo alcance, capazes de levar ogivas nucleares. Montar um programa nuclear clandestino custa mais caro, mas é perfeitamente possível. Israel construiu seu arsenal às escondidas, nos anos 60. É verdade que até então não existia um tratado de não proliferação nuclear e nenhum país tinha obrigação legal de se privar de armas atômicas.
Hoje é formalmente diferente. Devido ao tratado e à fiscalização da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), ligada à ONU, só os países isolados podem tocar seus programas militares sem ligar para a opinião da comunidade internacional. O Irã escondeu por duas décadas sua produção de urânio enriquecido e insiste em não cooperar com as inspeções da AIEA. Que tipo de responsabilidade se pode esperar de aiatolás com dentes nucleares? O presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, fala abertamente em varrer Israel do mapa. Basta esse tipo de exortação ao genocídio para dar ideia do que esse país seria capaz de fazer se tivesse uma bomba nuclear, o que pode ocorrer dentro de dois ou três anos. "A incerteza sobre o comportamento desses regimes pode dar início a uma corrida armamentista no Oriente Médio e na Ásia", disse a VEJA a americana Nina Tannenwald, autora do livro The Nuclear Taboo (O Tabu Nuclear). Apesar das sanções econômicas impostas pela ONU, o Irã segue desafiando o mundo com seu programa nuclear e está a dois ou três anos de ter a bomba. O arsenal nuclear do Paquistão está, por enquanto, sob a guarda da instituição mais sólida do país, o Exército. Mas há uma guerra aberta com o Talibã, que controla regiões fronteiriças com o Afeganistão. "Não podemos nem contemplar a possibilidade de o Talibã ter acesso ao arsenal nuclear do país", disse a secretária de Estado americana, Hillary Clinton. A possibilidade de terroristas produzirem uma bomba a partir do zero é ínfima. O processo é caro, exige tecnologia e pessoal altamente especializado. É mais simples fabricar uma bomba suja, feita com explosivos comuns e material radioativo. Ninguém precisa pensar muito para ver a conexão entre o perigo de um terrorismo atômico e os programas nucleares em países instáveis e repletos de fanáticos religiosos ou políticos. Essas condições fazem de cada um deles um potencial provedor de material atômico para grupos terroristas. O terrorista, como se sabe, só se ocupa de promover a maior atrocidade possível, sem nenhuma estratégia política que atenue sua perversidade. Se isso ocorrer, a Guerra Fria poderá vir a ser lembrada como o saudoso tempo em que o gatilho nuclear estava em mãos responsáveis.
Fonte: Rev. Veja, Thomaz Favaro e Duda
Teixeira, ed. 2115, 3/6/2009.
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