Bom-mocismo
Num clima de bom-mocismo que anda predominando ultimamente no país — talvez para disfarçar a atenção dos desastres que atingiram todos os níveis de poder — a Câmara dos Deputados acaba de aprovar o projeto que reserva 50% de vagas nas universidades públicas a alunos vindos de escolas públicas, a negros e índios. O projeto é uma violência, e passa por cima de todas as nuances que deveriam prevalecer num assunto como a educação. Começa desautorizando a Constituição, segundo a qual “o acesso aos níveis mais elevados de ensino e pesquisa se dará segundo a capacidade de cada um”. Essa cláusula constitucional, que merece atenção do Supremo se, por acaso, o projeto atravessar incólume a deliberação do Senado — não deveria — também é um princípio de saúde e de racionalidade para o ensino universitário. A universidade não é feita para distribuir benesses e para corrigir injustiças sociais. Ela é cara demais para isso; e nem é por aí que se consertam distorções sociais. A distorção social, gritante, está nos níveis inferiores de ensino — no ensino básico, sobretudo, mas também no ensino médio. É nessas etapas que o estudante mais pobre paga todos os seus pecados — e, em muitos casos, torna-se vítima da evasão escolar, ao deparar-se com professores desmotivados e despreparados, que não sabem colocar um aluno carente na pista da autodescoberta e da promoção pessoal. O que se faz hoje nas universidades públicas é um descalabro em mais de um sentido — e um dos sintomas disso são as greves absolutamente regulares que desvirtuam e desmoralizam o sistema. O ensino superior público, no Brasil, custa caro demais para ser objeto de projetos demagógicos. O caminho não é este — o do saco de bondades. A universidade pública teria de ser repensada, de modo a diminuir a sua taxa excessivamente baixa de produtividade. No caminho agora adotado, só se agravam as distorções.
Com um detalhe: ao
abrir-se uma ampla avenida aos alunos vindos das escolas públicas, que
motivação têm os governos para melhorar o nível dessas escolas — este, sim,
o nó górdio do ensino brasileiro? Fonte: O Globo, Editorial, 10/2/06. |