Barreiras ideológicas
As principais questões relacionadas com a universidade brasileira foram apontadas durante encontro realizado no auditório da Folha de S. Paulo, no dia 24 de fevereiro, que reuniu o ministro Tarso Genro e seus dois antecessores no cargo: Cristovam Buarque, senador pelo PT e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB), e Paulo Renato Souza, ex-reitor da Universidade de Campinas (Unicamp). Autonomia, financiamento, avaliação, pós-graduação, expansão do ensino superior, investimentos estrangeiros e, principalmente, o conteúdo do ante-projeto do governo para reforma universitária, Os temas foram mencionados, mas o debate não se aprofundou. As divergências entre Genro e Souza conduziram a discussão para o terreno político, e o encontro pouco contribuiu para o esclarecimento de questões fundamentais para o ensino no país. Além de impedir o aprofundamento do debate, as barreiras ideológicas também dificultam o livre trânsito de idéias entre as várias correntes de pensamento que poderiam ser aglutinadas na composição de uma proposta mais ampla para o setor. O projeto prossegue em aberto para o diálogo com a sociedade, inclusive para uma negociação em separado com as instituições de ensino particulares, garantiu o ministro. "Temos uma versão preliminar do anteprojeto, e há pontos em que podemos ganhar ou perder no Congresso. Reforma não se faz com ato único. O objetivo é desencadear o projeto e retomar a importância estratégica da universidade pública", disse Genro, respondendo às críticas que recebeu dos dois ex-ministros. "Não há nenhuma exigência sobre as universidades federais - que vão receber 30% a mais - como aumento dos cursos noturnos, pesquisa, ensino a distância. É preciso atribuir responsabilidades aos dirigentes das federais", criticou Souza, que ocupou o ministério durante os oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso. Educação básica Para Buarque, "se chover dinheiro na universidade pública, não vai ser resolvido o problema, sem a reforma da educação". O senador pediu ao ministro que não envie ao Congresso um projeto de reforma do ensino sem contemplar a educação básica. "Não é possível que o jovem brasileiro só entre na agenda do governo depois de completar 18 anos para depois se tornar outro problema, da Previdência, ao fazer 65 anos. Com a federalização da escola básica, o problema deixa de ser apenas dos governos estaduais e das prefeituras, que não conseguem arcar com tantos alunos", raciocina. Buarque também ressaltou os aspectos nitidamente corporativos embutidos no projeto, fruto de debates anteriores. Genro anunciou que serão gastos R$ 4,3 bilhões nos próximos quatro anos em educação, o que não satisfez seu colega de partido. "Precisaríamos de R$ 20 bilhões para tirarmos a educação brasileira do atraso em que vive. Mas, se isso ocorresse no modelo atual, R$ 15 bilhões iriam para as universidades federais, porque 75% dos recursos são para elas, enquanto apenas 25% ficam para o ensino básico, as escolas técnicas e o ensino médio", lamentou Buarque. Mesmo os atuais recursos anunciados ainda não estão garantidos pelo MEC junto ao Ministério da Fazenda, admitiu Genro. Ao condenar o que chamou de "poder das corporações internas", referindo-se aos grupos que controlam as escolas públicas federais, Souza advertiu que elas sairão fortalecidas, caso a reforma seja aprovada na íntegra. "O poder nas universidades federais é entregue, sem nenhuma cobrança em termos de qualidade em troca, a essas corporações". Segundo o ex-ministro, esse é um fenômeno que não se restringirá ao setor público, pois as instituições privadas também sofrerão da ingerência dessas corporações ao passarem a deter o controle de no máximo 30% dos chamados conselhos sociais que o MEC pretende criar, com a participação ainda indefinida de setores da sociedade civil. Genro reclamou por ter sido acusado de "sovietização" ao propor a adoção desses conselhos. "Na nossa visão, é um mecanismo que vai estabelecer uma ponte entre a es cola e a sociedade. Não terá caráter normativo, mas sim de relacionamento, sob a tutela jurídica dos conselhos superiores das universidades". E defendeu a atuação das corporações nas universidades federais, afirmando que combatê-las equivale a reduzir a autonomia das escolas. Souza criticou o poder das corporações ao comentar a questão da autonomia universitária. "Sou contra eleição direta para escolha do reitor, como fui contra quando era o candidato favorito para assumir o cargo na Unicamp. Defendo a participação da universidade, mas não dessa forma, pois ela pertence ao Estado e a seus mantenedores". Na seqüência, ele disse ser a favor da regulação feita pelo Estado, mas não pelo que chamou de "dirigismo estatal". Lamentou o fim do Provão, que deu início à cultura de avaliação no país e que, a seu ver, trouxe importante contribuição para melhoria da qualidade nas escolas. Para o ex-ministro, o método anterior, anual e universal, é muito superior ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), que prevê a avaliação por amostragem e apenas a cada três anos. Capital estrangeiro Tarso Genro defendeu a manutenção dos 30% como limite para entrada do capital estrangeiro na área de educação, no que foi criticado pelos dois ex-ministros. "Eu quero mais é que venham. Quanto mais dinheiro para a educação melhor", sentenciou Buarque. Souza completou dizendo que o apoio financeiro é benéfico, mas assinalou que o governo não precisa se preocupar muito com esse fato já que, segundo ele, não existe um grande número de instituições estrangeiras querendo vir para o Brasil. Tomando emprestado uma frase do economista Cláudio de Moura Castro, ele afirmou: "Existem apenas dois grupos nos Estados Unidos procurando se expandir no exterior. Um deles já está aqui e o outro não quer vir". Sobre o grupo que já atua no Brasil, ele se refere à Universidade de Phoenix, uma escola que tem atuação internacional, inclusive na China, e que é associada ao Grupo Pitágoras. Souza entende que a entrada desse capital é benéfica, estimula a competição e atualiza currículos e professores. "Ter medo do capital estrangeiro na educação é um equívoco", resume Buarque, que defende uma universidade mais moderna, com a redefinição da pós-graduação (mestrado e doutorado), ensino a distância e uso intensivo da informática - pontos que não estão previstos na reforma universitária. "É preciso criar uma universidade de ponta que ajude o país na competição cada vez maior na economia mundial. Pontos como interdisciplinariedade, revisão da duração dos cursos e dos diplomas de profissionais já formados foram também lembrados por Buarque e corrobora dos por Souza, para quem o uso de novas tecnologias não está sendo tratado no projeto da reforma. "A Lei de Diretrizes e Bases [LDB] já tem nove anos e está defasada. É preciso avaliar novas propostas para modernizar o ensino no país. O ex-ministro do governo FHC considerou positivos os avanços trazidos pelo ProUni, mas ressaltou que é contra a concessão de incentivos com base na isenção fiscal. Defendeu um "financiamento mais focado no aluno e não na instituição". Lamentavelmente, para Souza, "o projeto como está atende as corporações internas nas universidades e desconsidera as recentes reformas feitas em países europeus e nos Estados Unidos, onde houve associações das escolas com empresas".
Por sua vez,
Buarque comparou o interesse público com o privado. "Cursos de interesse da
sociedade de vem ser bancados pela universidade pública. Agora, for mar um
advogado numa instituição pública é como construir duas pontes no mesmo
lugar com o dinheiro do Estado", comparou. Souza contrapôs com números que apontam para o crescimento do número de vagas e de professores nas públicas, nos últimos dez anos. Em seguida, criticou o anteprojeto de reforma porque, a seu ver, restringe a expansão do ensino superior, por criar o conceito de necessidade social e estabelecer regras que tornam mais difícil essa expansão. O ex-ministro defendeu as políticas adotadas durante o governo anterior, afirmando que elas se basearam na expansão com qualidade e na eficiência de gestão. As propostas atuais, alerta, podem conduzir à queda na qualidade e à criação de reservas de mercado. A esse respeito, Genro procurou desqualificar as observações de Souza, ao questionar em nome de quem ele fazia as críticas, numa aparente insinuação ao fato de que o ex-ocupante da pasta hoje se dedica ao trabalho de consultoria no setor educacional.
Federalização Núcleos temáticos Sobre ensino superior, Buarque questionou a manutenção da estrutura das escolas com base em departamentos e defendeu a criação do que chama de núcleos temáticos, voltados para cursos específicos. Como exemplo, citou a neurobiologia, uma especialidade que reúne médicos, engenheiros e até cientistas da computação. Em primeiro lugar, segundo ele, é preciso rever com urgência a questão da duração dos cursos. "Nada justifica que, com o uso de computadores, os cursos de Engenharia durem os mesmos cinco anos do tempo da régua de cálculo e das calculadoras manuais". Além disso, acrescenta, para cumprir com sua função social, a universidade deve considerar a demanda da sociedade por profissionais. O Brasil precisa de cerca de 400 mil professores para o ensino médio, lembrou. Diante disso é preciso fazer um esforço para atender às demandas do ensino básico e repensar a exigência dos quatro anos de formação para a licenciatura. O ex-ministro argumenta que, com a velocidade da evolução do conhecimento, pouco adianta obrigar o aluno a cumprir 30 ou 50 disciplinas, se o ensino que recebe estará em breve obsoleto. Melhor seria reduzir o tempo de duração do curso até a diplomação, mas exigir que o aluno continue estudando e recebendo novos diplomas conforme for ampliando ou reciclando o conhecimento adquirido. A solução poderia estar de acordo com a reforma que vem sendo implantada em universidades da Europa, conforme o acordo de Bolonha, que prevê a concessão de diplomas diferencia dos pelo tempo de formação. Um diploma que permita o exercício de certas funções profissionais ao final de dois anos de estudo, outro para depois de quatro anos, seguindo-se os diplomas de pós-graduação e diplomas renováveis de reciclagem.
Fonte: Revista Ensino Superior, 20/04/2005. |