Precisamos aumentar o superávit primário? Paulo Nogueira Batista Jr.*

 

A dívida pública brasileira ainda preocupa, mas não é excepcionalmente alta para padrões internacionais. Diversos países, não só desenvolvidos como “emergentes”, exibem razões dívida/PIB superiores à brasileira. Uma diminuição gradual ou até mesmo a estabilização nos níveis
atuais pode ser uma meta razoável.
 

Muitos economistas do “mercado” (leia-se: de bancos ou de empresas que assessoram bancos) defendem a tese de que o setor público brasileiro deve aumentar o seu superávit primário, isto é, o saldo positivo nas contas exclusive juros. A tese é defendida com certa insistência. O argumento é, às vezes, tão primário quanto o superávit.

Mas nem sempre. Na atual conjuntura, haveria dois motivos principais para recomendar um esforço fiscal adicional. Vamos examiná-los brevemente.

Controle da demanda agregada

O primeiro relaciona-se com o controle da demanda agregada. Afirma-se que, em 2004, apesar do superávit primário elevado e crescente, a política fiscal não foi suficientemente restritiva e contribuiu, inclusive, para o aquecimento – considerado excessivo – da demanda, sobrecarregando a política monetária. Essa afirmação se apóia em duas constatações: a) em 2004, houve expansão simultânea das despesas e das receitas não- financeiras; e b) o aumento do superávit primário foi alcançado em fase de expansão da economia e, em especial, do setor industrial. Nessas circunstâncias, o crescimento do superávit primário observado não sinaliza necessariamente um endurecimento da política fiscal e pode estar até mesmo camuflando um relaxamento com impacto líquido expansivo sobre a demanda.

De fato, de um ponto de vista agregado, o efeito expansivo de um acréscimo do gasto não-financeiro é, em princípio, superior ao efeito restritivo de um acréscimo de igual montante na receita resultante de elevação da carga tributária. O argumento clássico, que remonta a Haavelmo, é que parte do efeito restritivo do aumento da carga de impostos é neutralizada pela diminuição da poupança privada.

Também é verdade que, num período de expansão econômica, o superávit primário cresce automaticamente, mesmo sem qualquer esforço fiscal, pela simples ampliação da base sobre a qual incidem os tributos e pela redução de certos tipos de gasto público, notadamente as despesas com seguro-desemprego. Isso significa que é perfeitamente concebível que o superávit primário “estrutural” ou “ajustado para excluir efeitos cíclicos” diminua ao mesmo tempo em que sobe o superávit primário observado.

Foi o que aconteceu em 2004? É possível, talvez provável, mas ninguém sabe ao certo. Não existem estimativas regulares do superávit fiscal “estrutural” nem dos multiplicadores associados aos diferentes componentes das contas públicas. Assim, o primeiro argumento não passa de uma conjectura plausível.

“Sustentabilidade” da dívida pública

O segundo argumento tem a ver com a chamada sustentabilidade da dívida pública – um eufemismo muito usado pelos economistas. Dívida “sustentável” é a que pode ser paga em dia ou refinanciada voluntariamente no mercado. Dívida “insustentável” é a que acaba desembocando em moratória, reestruturação ou crise inflacionária. A elevada dívida governamental é considerada, por analistas do “mercado” e pelo FMI, como uma das principais, senão a principal vulnerabilidade da economia brasileira.

Uma ampliação do superávit primário, além de ajudar a política monetária no esforço de contenção da demanda, reforçaria a confiança na “sustentabilidade” da dívida, isto é, na capacidade de pagamento do setor público. O caminho preferido pelos economistas do “mercado” é o do corte de gastos correntes não-financeiros, como vimos no artigo da semana passada (Contrapeso ao “FMI doméstico”, Ag. Carta Maior, 7/4/2005).

Esse esforço fiscal adicional se faria especialmente necessário em razão da não renovação do acordo com o FMI e da aproximação do ano eleitoral de 2006. Nesse ambiente, se a política fiscal continuar expansionista ou insuficientemente restritiva, ressurgiriam dúvidas sobre a capacidade de pagamento do governo, a exemplo do que ocorreu no tumultuado ano eleitoral de 2002.

Calma!

Os argumentos têm a sua lógica, mas os temores parecem exagerados. Vamos por partes, como faria Jack, o Estripador.

Antes de mais nada, não vamos perder de vista que o superávit primário vem subindo continuamente desde 1999. O setor público consolidado (governos federal, estaduais, municipais e empresas estatais) gerou resultado primário positivo de 3,9% do PIB em 2002, 4,3% do PIB em 2003 e 4,6% em 2004, de acordo com dados oficiais. Esses resultados foram alcançados com sacrifícios consideráveis (pesada carga tributária, cortes de investimentos públicos essenciais, crônica escassez de recursos para políticas distributivas, entre outros).

Ainda que se possa sustentar que, em 2004, as restrições foram abrandadas em alguma medida, permanece o fato de que, neste início de 2005, a economia dá sinais de desaceleração, refletindo a combinação de taxas de juro crescentes e valorização cambial. Intensificar o esforço fiscal neste momento acentuaria o desaquecimento que já vem sendo provocado pelo Banco Central.

É verdade que a dívida pública cresceu rapidamente durante o período Fernando Henrique Cardoso e continuou crescendo no primeiro ano do governo Lula. Mas esse movimento começou a ser revertido em 2004. A dívida pública brasileira ainda preocupa, mas não é excepcionalmente alta para padrões internacionais. Diversos países, não só desenvolvidos como “emergentes”, exibem razões dívida/PIB superiores à brasileira. Assim, não parece convincente a recomendação de que o Brasil deva concentrar seus esforços na geração de superávits primários sempre crescentes e na tentativa de reduzir drasticamente a dívida do governo ao longo dos próximos anos. Uma diminuição gradual ou até mesmo a estabilização nos níveis atuais pode ser uma meta razoável.

O que é, sim, extraordinariamente elevado para padrões internacionais é a taxa de juro brasileira. É nesse ponto que o quadro nacional se mostra anômalo. Os aumentos que o Banco Central vem implementando desde setembro de 2004 sobrecarregam as finanças públicas, uma vez que a dívida do governo é preponderantemente interna, de prazo curto ou diretamente referenciada à taxa de juro de curto prazo. Em outras palavras, o Banco Central trabalha continuamente em prol da expansão do endividamento público.

Os analistas de “mercado”, que se mostram tão preocupados com a “sustentabilidade” da dívida, bem que poderiam ser um pouco mais críticos da política de juros altos.

Mas aí, realmente, já é pedir demais.
 

* Paulo Nogueira Batista Jr., economista e professor da FGV-EAESP, é autor do livro “A Economia como Ela É ...” . 

Fonte: Ag. Carta Maior, 14/04/2005.


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