A arte de piorar o que já é ruim

 

Já é mais do que suficiente a quantidade de problemas reais que a população brasileira tem de enfrentar, de modo que não há nenhuma necessidade de penalizar o país com algo que vem se tornando uma prática comum na vida política de hoje: a criação de problemas que não existem. A última realização nessa área é o pretendido sistema de cotas para a universidade pública, projeto que acaba de passar pela fase inicial de deliberação e vai agora ser apreciado pelo Congresso. Se o país tiver sorte, as aberrações mais grosseiras do projeto serão atenuadas. Se tiver muita sorte, a coisa toda vai para o lixo e não se fala mais nisso. Caso não tenha sorte nenhuma, estará criado um problema novo em folha para se somar à coleção dos já existentes -- com distorções que devem ficar por aí anos a fio.

Se fosse só uma empulhação do tipo Fome Zero ou de outras tentativas de diminuir a desigualdade por meio de atos administrativos, até que tudo bem; o país já aprendeu a ser paciente com essas coisas, que vêm e vão sem causar danos maiores que uma bela perda de tempo, a queima de mais alguns milhões de reais do Tesouro e cenas de demagogia em estado puro. Mas essa história das cotas é invenção que provoca avaria grossa e, se entrar em vigor, deixará conseqüências capazes de tornar o ensino superior no Brasil pior do que já é, criar um novo gênero de desigualdade e punir milhões de jovens que não fizeram ab solutamente nada de errado. Pela proposição que vai ser apreciada no Congresso, 50% das vagas na universidade pública ficarão reservadas a alunos que cursaram o ensino básico também em escolas públicas. O argumento é que esses estudantes não passam no vestibular da universidade pública porque o ensino elementar e médio que recebem do Estado é muito ruim. Ficam em desvantagem perante os colegas que cursaram escolas particulares, onde o ensino é muito melhor.

Essa desvantagem é real. O último Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) mostrou que a média dos alunos da rede pública ficou abaixo de 42 pontos em 100 possíveis, contra quase 57 pontos obtidos pelos que estudam em escolas particulares. Não poderia dar outra, assim, na hora do vestibular. Em 2006, no exame da Fuvest, em São Paulo, que seleciona os candidatos para a maior universidade pública do Brasil, quase 73% dos aprovados foram estudantes da rede escolar privada. Para tal problema, que é verdadeiro, só existe uma solução também verdadeira: melhorar, e muito, o ensino das escolas públicas. Toma-se, porém, a solução velhaca. O ensino na rede escolar do Estado fica exatamente como está, porque mexer nisso é duro, leva tempo e não dá cartaz a ninguém; corta-se metade das vagas abertas hoje para os alunos provenientes das escolas particulares; e acaba o atual critério pelo qual a universidade pública está aberta, sem distinções, a quem obtiver as melhores notas no vestibular. O que está ruim não muda, e o que muda fica pior.

A proposta das cotas condena o país a continuar mantendo, de um lado, um sistema de ensino básico que funciona, na maior parte do tempo, como uma máquina que transforma analfabetos em semi-analfabetos. De outro, garante que a universidade pública passará a formar gente com um nível de qualidade ainda mais baixo do que o de hoje. É a última coisa que se poderia ter como meta, em ambos os casos. Não existe país sério que pretenda melhorar as oportunidades de acesso dos pobres à universidade com o truque de baixar a qualificação para a entrada no ensino superior. O que se faz é o contrário: China e Índia, para citar só os dois exemplos mais evidentes, estão envolvidos num extraordinário esforço para melhorar ao máximo tanto o ensino básico como o universitário, pois sabem que não há esperança verdadeira de futuro melhor se não encurtarem a distância educacional que os separa do mundo desenvolvido. Já o Brasil continua firme em sua obsessão de não perder uma única oportunidade de fazer a coisa errada.

A proposta a ser apreciada pelo Congresso Nacional não é apenas mais uma esperteza boba. É também um atentado à lógica e à justiça. Por mais que se queira negar, as cotas são uma punição pura e simples contra quem estuda nas escolas particulares. Para os defensores do novo sistema, trata-se de privilegiados ou, pior ainda, gente da elite, cujas famílias têm dinheiro sobrando. Esquecem-se que essas famílias, em sua grande maioria muito longe de ser ricas, pagam os estudos dos filhos não porque gostem, mas unicamente porque o governo não lhes dá uma escola pública decente -- algo, na verdade, a que teriam todo direito, pois pagam impostos de sobra para isso. Fazem o sacrifício justamente porque o Estado brasileiro não cumpre sua obrigação de entregar serviço em troca dos bilhões arrecadados em impostos. O resultado final é que os alunos do sistema particular, se for aprovado o projeto, acabarão sofrendo uma dupla punição: quando pagarem as mensalidades do curso básico e quando o governo lhes cortar metade das vagas na universidade pública. Que diabo de privilégio é esse?

A idéia das cotas é apresentada, na esfera da conversa fiada, como parte das políticas afirmativas que o país precisa adotar para diminuir o fosso entre ricos e pobres. Na esfera da vida real, é a pura e simples vingança do Estado contra os brasileiros que vão buscar por sua conta aquilo que o governo deveria lhes dar e não dá. Ao propor esse sistema, os políticos querem dar a impressão de que estão governando para os mais pobres; na verdade, estão apenas assegurando a manutenção do atraso, ao piorar a qualidade do ensino superior e não introduzir nenhuma melhoria num ensino básico de terceira categoria. A coisa toda, ainda por cima, é embalada em muito falatório sobre uma dívida que a sociedade teria em relação aos pobres. Que dívida o aluno da escola particular teria em relação ao da escola pública? É o tipo do negócio ruim. Na hora de contrair a dívida, quem assina a promissória é a sociedade, um ente anônimo que ninguém pode identificar. Na hora de pagar, a conta vai para o indivíduo, que tem nome, endereço fixo e CPF.

Como sempre acontece com toda idéia ruim, o projeto das cotas tinha espaço para ficar pior e, obviamente, não se deixou escapar essa chance. Dentro dos 50% dos lugares reservados para os candidatos da escola pública, há uma espécie de subcota, desta vez para negros e indígenas, também justificada pela existência de uma dívida etc. etc. De novo, fica impossível definir que responsabilidade os alunos que não são negros ou índios teriam, neste ano de 2006, pelas infâmias da escravidão abolida 120 anos atrás ou pelos crimes cometidos desde o século 16 contra a população indígena -- alunos que em sua maioria nunca viram um índio na vida. A subcota tem todos os defeitos da cota e mais um: ajuda a turvar o clima racial. O Brasil, com todos os episódios de preconceito, discriminação e falta de respeito em relação a sua população de origem negra, abertos ou velados, é provavelmente o país menos racista do mundo. Haveria algum outro? Há, claro, países onde os negros vivem em situação muito melhor que no Brasil -- por serem países mais ricos, mais justos e mais capazes de respeitar as leis. Nenhum deles, contudo, tem menos animosidade racial que o Brasil. Muito melhor que isso não fica ou, pelo menos, ninguém conseguiu até agora. Mas, como se trata de um problema que não existe, não na dimensão que se tenta apresentar, está sendo feito todo o esforço possível para criá-lo. Não apenas na questão das cotas universitárias mas também no Estatuto da Igualdade Racial, que já foi aprovado no Senado, aguarda agora a apreciação da Câmara e, a pretexto de melhorar a situação das minorias, introduz expressamente na legislação brasileira diferenças de direitos baseadas em critérios de raça e cor. É algo tão ruim, mas tão ruim, que chega a dar esperança: é calamidade demais para receber aprovação, mesmo da Câmara dos Deputados brasileira. Num e noutro caso, no sistema de cotas e no estatuto racial, o grande lucro não será contar com alguma coisa boa. Será, simplesmente, escapar do pior.
 

Fonte: Revista Exame, J. R. Guzzo, 03/03/2006.


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