Quando os arapongas vão às compras
 

 

ÉPOCA teve acesso à auditoria nos gastos secretos com cartões corporativos da Abin.
Ela revela descontrole no uso, despesas inexplicáveis e notas fiscais frias

Serviços secretos, por natureza, costumam manter segredo sobre suas atividades. A Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, não foge à regra. Inclusive nas próprias finanças, sempre bem guardadas sob o manto do sigilo. Por ironia, a Abin, acostumada a produzir relatórios com informações sigilosas sobre seus alvos – de narcotraficantes a suspeitos de terrorismo, de corruptos de quinta categoria a grandes chefes do crime organizado –, acaba de virar, ela própria, um alvo. O motivo da investigação está justamente em suas contas secretas. De março de 2006 até o mês passado, auditores do Tribunal de Contas da União (TCU) se debruçaram sobre as faturas sigilosas dos cartões corporativos usados pelos arapongas, como são conhecidos popularmente os agentes da Abin.

Esses gastos consumiram R$ 22 milhões dos cofres públicos nos últimos três anos. É a primeira vez que o TCU, único órgão externo com atribuição de fiscalizar os gastos secretos da Abin, realiza uma investigação sobre as despesas com cartões na agência. O resultado do trabalho, a que ÉPOCA teve acesso, revela uma série de problemas na aplicação e na prestação de contas desse dinheiro.

 


PARA ONDE FOI?
Carteira usada pelos agentes da Abin. Nos últimos três anos, eles gastaram R$ 22 milhões com cartões corporativos

Os auditores encontraram uma lista de gastos suspeitos, que incluem despesa de R$ 5 mil numa churrascaria sofisticada de Brasília, notas fiscais frias, saques milionários na boca do caixa e vultosos pagamentos a informantes sem que haja maneira de averiguar se, de fato, os arapongas gastaram o dinheiro em troca de alguma informação relevante.

Sucessora do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), o temido braço de inteligência da ditadura, a Abin tem por missão municiar o governo, em especial o presidente da República, com informações. É tarefa da agência, por exemplo, alertar o primeiro escalão da República sobre ameaças de crise, dentro ou fora do país, e fazer o trabalho de contra-espionagem, para proteger os interesses nacionais da ação de agentes secretos a serviço de governos estrangeiros. A Abin tem em seu quadro 1.400 funcionários, parte formada por militares remanescentes do velho SNI e outra por civis, contratados por concurso público. Os agentes ganham em média R$ 3.500 e, geralmente, trabalham no anonimato, seja infiltrados em órgãos públicos e empresas, seja em campo, colhendo informações. 

No ano passado, o orçamento global da Abin foi de R$ 50 milhões. Desse total, R$ 11 milhões foram usados para pagar as faturas dos cerca de 180 cartões corporativos distribuídos entre funcionários da agência. Pela natureza do serviço, muitos dos gastos realmente precisam ser protegidos por segredo. Mas os auditores afirmam que essa peculiaridade tem servido de pretexto para que despesas corriqueiras, como compra de simples cartuchos para impressoras, sejam lançadas no pacote de gastos secretos.


NOVO CHEFE
Paulo Lacerda, diretor da Abin. Ele fez mudanças na agência para tentar pôr ordem na casa

 

Ao analisar os gastos, os técnicos verificaram que praticamente tudo o que a Abin gasta com cartões é sacado, antecipadamente, na boca do caixa. Em 2005, quando as despesas totalizaram R$ 5,2 milhões, 98,7% foram retirados, em dinheiro vivo, em bancos ou caixas eletrônicos. Em 2006 e 2007, 100% dos quase R$ 18 milhões gastos nos dois anos foram sacados antes de ser usados para bancar as despesas. Para o TCU, isso configura uma irregularidade grave. “Houve um total desvirtuamento do cartão de pagamento”, escreveram os fiscais no relatório. Nos próximos dias, o documento chegará às mãos do ministro Ubiratan Aguiar, relator do processo. É justamente dessa prática de saques em dinheiro vivo pelos agentes que derivam todas as outras irregularidades detectadas pela auditoria do TCU.

O pagamento aos supostos informantes é um exemplo da dificuldade encontrada pelos auditores para fiscalizar os gastos da Abin. Num dos processos analisados, um agente cujas iniciais são L.A.S. – ÉPOCA optou por revelar apenas as iniciais dos agentes, em respeito à natureza secreta de sua função – sacou R$ 108 mil. Era 24 de maio de 2005. Ao prestar contas, o agente apresentou um conjunto de

folhas de papel ofício para atestar que a verba fora utilizada para pagar pelo serviço de informantes. Os papéis, sem timbre, trazem um texto-padrão: “Importa o presente documento de despesa na importância supra de R$ 28.000 (vinte e oito mil reais), referentes a gastos efetuados com colaborador eventual, em proveito da atividade fim da Abin, sem comprovante”.

O mesmo texto aparece na justificativa para outros dois pagamentos, de R$ 20 mil e R$ 30 mil, feitos a supostas fontes. A prestação de contas não passa disso. Não há nenhuma anotação sobre a investigação a que os pagamentos estavam relacionados, nem sobre a qualidade das informações repassadas pelas fontes. Em resposta ao TCU, a Abin argumenta que, embora os auditores não tenham acesso a essas informações, os chefes imediatos dos agentes envolvidos monitoram o desempenho das fontes. Para os auditores, entretanto, essa explicação não é suficiente. Eles propõem a adoção de um “código que permita a identificação da missão do favorecido (no caso, o agente que recebeu o dinheiro para repassar ao informante), ainda que por codinome”. 

A Abin costuma gastar, por ano, cerca de R$ 1 milhão com pagamento de informantes no Brasil e no exterior. Há informantes regulares, que recebem pagamentos mensais da agência, e outros eventuais. No caso dos informantes estrangeiros os pagamentos são feitos em dólar. Nem sempre a qualidade das informações vale o que se paga. “Quando fui diretor, cortei vários informantes da folha de pagamentos simplesmente porque eles não estavam rendendo informação”, diz Mauro Marcelo de Lima e Silva, diretor da agência entre 2004 e 2005. 

Em outra situação relatada pelos auditores, a agente M.M.C. sacou, de uma só vez, R$ 278.500. A prestação de contas, desta vez, veio na forma de notas fiscais. Uma delas, no valor de R$ 96 mil, diz respeito à compra de oito licenças de uso de um software para criptografar ligações de telefones celulares. As licenças foram compradas da empresa Ronam Internacional, em São Paulo. Por cada uma, a agente pagou R$ 12 mil. Dezesseis dias depois, nova compra. Mais 14 unidades da mesma licença, por R$ 168 mil. A nota fiscal foi emitida em nome de um outro agente da Abin, O.G. Um detalhe chamou a atenção dos auditores: embora tenham se passado 16 dias entre uma compra e outra, as notas fiscais são seqüenciais. Uma delas leva o número de ordem 969. A outra, 970. “Será que essa empresa não vendeu nada para mais ninguém nesse período?”, indaga uma fonte ligada à investigação, ouvida por ÉPOCA. Novamente, os técnicos ficaram impedidos de averiguar a necessidade da compra. Só tiveram acesso a uma justificativa genérica anexada pela agente: “Justifica-se a aquisição de bloqueadores, em caráter de excepcionalidade, para telefone celular, com a finalidade de preservar servidores e fontes envolvidas em operações de caráter sigiloso, particularmente, com organizações criminosas e terrorismo internacional (...), e resguardar informações de caráter secreto, que poderão comprometer o desenvolvimento e a operacionalização dessas ações”, diz o texto. 

Pela norma que rege seu uso, o cartão corporativo só deve ser usado para pagar despesas eventuais da administração pública. Não foi o que os auditores verificaram na Abin. Há dribles até na Lei de Licitações, segundo a qual despesas acima de R$ 8 mil devem ser objeto de concorrência pública. Os auditores descobriram casos em que, quando o valor do serviço ultrapassava esse limite, os responsáveis pelas finanças da agência fracionavam o pagamento. Assim foi feito para contratar, sem licitar, despesas corriqueiras, como manutenção de veículos e fornecimento de material de escritório. O documento do TCU relaciona vários gastos que deveriam ser enquadrados como “ostensivos”, ou não-secretos, e acabaram jogados no rol dos sigilosos. É o caso da compra de um monitor de LCD numa loja de nome pitoresco para a situação, Missão Impossível Ltda., localizada no bairro de Santa Ifigênia, em São Paulo. Nessa mesma linha, há a compra de 12 passagens aéreas de ida e volta entre Brasília e Washington, em novembro de 2005. Os bilhetes foram adquiridos numa agência de viagens de Brasília, por R$ 26.932,31. Como a despesa está enquadrada como secreta, o TCU não tem como saber a que se destinou a viagem. Outra despesa que caiu no balaio do segredo é o pagamento de R$ 5.175,80 à Churrascaria Porcão, em Brasília, em outubro de 2003.

A auditoria do TCU flagrou, também, notas frias em meio às prestações de contas. Foi o caso de uma nota supostamente emitida em outubro de 2006 por uma loja de decoração do Rio de Janeiro, no valor de R$ 600. O TCU pediu informações à Receita estadual e descobriu que a empresa simplesmente não tinha autorização para emitir nota. O mesmo aconteceu com uma nota emitida por uma marmoraria, também no Rio. No documento, no valor de R$ 416, constava a aquisição de “mármore branco”. Outras despesas chamam a atenção pelo improviso, como a suposta locação de veículos na Ximenes Rent a Car, em Porto Velho, Rondônia, por R$ 900. O gasto é comprovado por um recibo sem o número de registro da empresa no Fisco.

 


TUDO SOB SIGILO
Sede da Abin em Brasília. Mais de um quinto do orçamento da agência é consumido em gastos com cartões

Para Geraldo Cavagnari, professor da Universidade de Campinas (Unicamp) e especialista em inteligência estratégica, a maneira como são processados os gastos secretos da Abin atualmente abre caminho para as fraudes. “Nem todos os gastos num serviço de inteligência são secretos. É preciso ter um controle mais eficaz sobre o destino que se dá à verba sigilosa”, afirma. 

Esse é um problema existente também em países onde os serviços secretos são altamente profissionais e têm orçamentos bilionários, como os Estados Unidos. Lá, não se sabe nem mesmo o número total de pessoas que trabalham para as 16 agências do governo americano envolvidas com atividades de inteligência, entre elas a Central Intelligence Agency (CIA). O orçamento também não é público, embora seja submetido ao crivo do presidente da República e de quatro comitês do Congresso. Segundo Benjamin Friedman, pesquisador do Cato Institute, especialista em defesa e contraterrorismo, o Congresso americano exerce seu poder de supervisão sobre as contas secretas menos do que deveria. Uma das razões é um contrato de confidencialidade que impede os parlamentares de tornar pública qualquer informação sobre o orçamento dos órgãos, mesmo quando não estão de acordo com seus gastos. Isso dá margem de manobra para que ninguém saiba exatamente a que se destina uma parte do orçamento dos órgãos de inteligência americanos. Segundo a revista eletrônica Salon.com, cerca de 70% dos gastos de inteligência dos EUA estariam sendo destinados a contratos privados impossíveis de fiscalizar. 

No Brasil, existe uma comissão mista no Congresso Nacional – a Comissão de Controle da Atividade de Inteligência (CCAI) – encarregada de fiscalizar a Abin. Mas ela é totalmente inoperante. O atual presidente da CCAI é o deputado Marcondes Gadelha (PSB-PB), mas nem ele sabe disso. “Eu não sabia que essa comissão existia”, disse ele a ÉPOCA. Na última tentativa de reunir a comissão, não houve quorum. Até hoje, a CCAI, criada por lei em 1999 e formada no papel por três deputados e três senadores, não tem regimento próprio.

 

Procurada por ÉPOCA, a direção da Abin informou que, por se tratar de informações secretas, não comentaria pontualmente as despesas citadas no relatório do TCU. Sob a condição de anonimato, ex-dirigentes e funcionários de carreira da Abin ouvidos por ÉPOCA reconhecem problemas no emprego da verba secreta. A desordem foi uma das principais razões que levaram o novo diretor-geral da agência, Paulo Lacerda, a apresentar ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva um plano de reestruturação do órgão. A idéia vingou.

Lacerda, diretor-geral da Polícia Federal até assumir o comando da Abin, em outubro passado, conseguiu criar uma assessoria de controle interno, subordinada diretamente a seu gabinete. Para o posto, nomeou um delegado da PF que fora um de seus homens de confiança. Internamente, a medida é vista como uma maneira de acompanhar de perto a aplicação dos recursos sigilosos. Lacerda também criou a Corregedoria da Abin, destinada a punir desvios de conduta. A transparência na dose exata pode ser a receita para transformar os milhões de reais gastos pela Abin em eficiência.

 


CADA VEZ MAIS NO CARTÃO
Evolução das despesas da Agência Brasileira de Inteligência com cartões corporativos – em R$ milhões

 
 

 

 

Fonte: Rev. Época, Rodrigo Rangel, ed. 521, 10/5/2008.
Fotos: Anderson Schneider/ÉPOCA.

 


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