Entrevista: Jorge Gerdau Johannpeter
O apagão de eficiência  
'Páginas amarelas'

O mais internacional dos empresários brasileiros diz que o país não
avança sem
que o Estado passe por um choque de gestão
 

"O sistema tributário brasileiro é medieval. Cobram-se 30% de impostos antes mesmo de uma fábrica começar a produzir"


A evolução satisfatória da economia brasileira do último ano tem camuflado uma doença letárgica que resiste a governos e, como já ocorreu antes, pode abater o Brasil em plena decolagem. O motivo é a incompetência gerencial do Estado, mal que multiplica a dívida pública, estimula fraudes e torna ineficiente a maioria dos programas nas três esferas do poder público. O alerta é de Jorge Gerdau Johannpeter, o mais global dos empresários brasileiros. Desde que assumiu o cargo, em 1983, ele construiu sua própria Alca (Área de Livre Comércio das Américas), enquanto a verdadeira não sai do papel. Do Brasil e Uruguai, onde o grupo já tinha siderúrgicas, a produção se expandiu para outros cinco países das Américas (Estados Unidos, Canadá, Chile, Colômbia e Argentina). O grupo tem hoje dezesseis fábricas no exterior e dez no Brasil. Essa forte presença internacional dá ao empresário de 68 anos um posto de observação privilegiado das condições de fazer negócios no continente americano. Seu diagnóstico: "Produzir no Brasil é uma guerrilha". Ele falou a Veja na sede do grupo, em Porto Alegre.

V – Qual é o melhor país das Américas para fazer negócios?

G – O Chile, sem sombra de dúvida. Da mesma forma que os brasileiros, os trabalhadores chilenos abraçam a causa da empresa. Isso não ocorre na América do Norte. Além disso, o Chile também possui todas as vantagens de países como os Estados Unidos e o Canadá: um sistema tributário justo e lógico, juros baixos e pouca burocracia. Isso o Brasil não tem. Fazer negócios aqui é uma guerrilha. Convivemos com toda sorte de distorções. Leis em excesso, custo alto do dinheiro e muitos impostos, cobrados de forma errada.  

V – Qual é a distorção do sistema tributário brasileiro que mais o preocupa?

G – Muito se fala da carga dos impostos. É fato que ela já passou do limite da realidade econômica. Mas pouca importância tem sido dada à estrutura de cobrança. O sistema tributário brasileiro é medieval. Se você investe 100 milhões de reais para construir uma fábrica, é obrigado a recolher 30 milhões em impostos, antes mesmo de começar a produzir. Se esse investimento fosse feito em outro lugar, teria custo tributário zero antes de iniciar a operação. Os 30 milhões, ou seja, esses 30% de impostos, poderiam ser aplicados no que interessa: no aumento da produção, na geração de mais empregos. Esse modelo é semelhante ao de alvarás nos países medievais, onde o nobre, para dar a autorização para o comerciante trabalhar, exigia o pagamento antecipado. Essa cultura foi enterrada no mundo moderno, mas ainda está incrustada na burocracia brasileira. Ainda não conseguimos romper esse traço cultural.  

V – Qual é a diferença da carga tributária que incide sobre as empresas do grupo Gerdau dentro e fora do Brasil?

G – Aqui, os impostos consomem 54% do valor que adicionamos ao preço do produto. Fora do Brasil, esse porcentual é só de 14%. Em suma, é muito difícil competir produzindo por aqui. Some-se a isso o custo do dinheiro. Querendo ou não, sempre pagamos um resíduo de risco Brasil, mesmo nas operações financeiras feitas no exterior. Ainda que tenhamos receitas consideráveis em dólar e uma rentabilidade satisfatória, continuamos sendo, de alguma maneira, a Gerdau Brasil. Isso pesa. No Chile, o risco está abaixo de 100 pontos. No Brasil, supera os 400.  

V – O risco Brasil não está alto demais? O país não seria melhor do que o índice faz crer?

G – O índice está correto, assim como a percepção que os estrangeiros têm do Brasil. Ainda enfrentamos problemas graves, e é vital reconhecê-los. Os brasileiros incorporaram ao comportamento cotidiano várias formas de tolerância. Cada uma delas é pequena em si, mas a soma delas gera insegurança patrimonial e jurídica. Essa tolerância existe na forma de violações ao direito de propriedade, entraves à recuperação de créditos, resistência ao pagamento de impostos ou mesmo no simples ato de desrespeitar a faixa de pedestres ou jogar lixo pela janela do carro. Todo mundo quer ser esperto, mas, no fim, todos os espertos pagam a conta, na forma de juros mais altos e desconfiança. Outros países já passaram por esse ciclo. Os Estados Unidos, no início do século passado, com muita corrupção em meio à Lei Seca. O que mostra que o Brasil continua muito atrasado.  

"Não admito que o Chile tenha um risco-país menor que o nosso. Se eles conseguiram criar um ótimo ambiente de negócios, temos a obrigação de fazer o mesmo. Nosso problema é o excesso de permissividade"

V– Há saída a curto prazo?

G – Nada que possa ser resolvido num passe de mágica, mas os benefícios vêm aos poucos quando o país se esforça para obtê-los. Estou convicto de que existe saída. O Chile não é melhor que nós: se os chilenos conseguiram, temos de conseguir. Não admito que uma nação como o Chile ofereça um risco menor que o nosso. Tenho negócios lá, convivo com a população chilena e acompanho a vida do país. Talvez nosso problema esteja nesse radicalismo comportamental, nessa permissividade que permeia todas as esferas de nossas relações, sejam pessoais ou não.  

V – Mas o país fez reformas. Aprovou a Lei de Falências e a reforma do Judiciário. Isso não conta?

G – O país acordou para esse problema, mas está vinte ou trinta anos atrasado. Outros países conseguiram avançar mais rápido nas reformas previdenciária e tributária, que são vitais. Somos lentos por causa de nossa diversidade política e regional. Só que o mundo está correndo, e nós estamos andando. Estamos perdendo momentos preciosos. Quando olho para esse cenário, sinto angústia. A realidade é que o Brasil deveria acelerar esse processo. Nosso esforço tem sido insuficiente.  

V – Sob o ponto de vista estritamente econômico, e não comportamental, quais fatores explicam juros tão altos para as pessoas físicas e as empresas?

G – Em primeiro lugar, o risco de calote é grande. Do pequeno ao grande calote. Depois, a necessidade de financiamento do Estado suga todos os recursos disponíveis para o crédito. Com sua dívida enorme, o governo compete com as empresas e as pessoas físicas na obtenção de recursos dos bancos. Além disso, existe uma tributação sobre os empréstimos que é única no planeta. Em nenhum lugar do mundo se arrecadam tantos impostos sobre a intermediação financeira. Essa tributação, quando existe, tem de ser a mais baixa possível para estimular os empréstimos. No Brasil ocorre o inverso.  

V – Como resolver o problema da dívida pública?

G – O governo gasta tanto e tão mal que a arrecadação de impostos é insuficiente para pagar as despesas, as dívidas e ainda investir. Se lembrarmos que, todo mês, o governo precisa financiar o equivalente a 3% do PIB brasileiro para pagar suas contas, teremos uma carga tributária real de 40%, e não de 37%, como se divulga normalmente. É necessário mais competência e eficiência gerencial para reduzir os gastos públicos para 30% do PIB. Assim, poderíamos usar os outros 10% para investimentos. Teríamos pleno emprego e crescimento. Só há prosperidade quando existe poupança pública junto com a poupança privada. A pública tem sido nula ou até negativa nos últimos vinte anos.  

V – A poupança privada não dá conta do recado?

G – A poupança privada brasileira, que retrata os investimentos feitos pelas empresas, está em torno de 20% do PIB. Na China, a soma das duas poupanças está acima de 40%. As pessoas se perguntam por que a China cresce. É evidente: poupança. O Brasil já teve períodos com poupanças elevadas, em que também havia pleno emprego. É claro que os investimentos, quando forem feitos, têm de ser sérios, produtivos. Essa é a peça-chave para promover uma reversão estrutural.

"A política é que torna difícil a redução dos gastos do governo. Sob o ponto de vista de gestão, seria fácil cortar despesas em até 50% sem prejudicar os pobres ou piorar os serviços públicos"

V – Qual é o caminho mais curto para reduzir os gastos do governo?

G – Só há uma saída: melhorar a gestão, ter mais eficiência. Sei que é um assunto chato, ninguém gosta de falar dele, mas tenho de insistir. Não existe segredo. Só não é simples reduzir os gastos do governo por questões políticas. Sob o ponto de vista de gestão, seria fácil cortar despesas em até 50% sem prejudicar os pobres ou piorar a qualidade dos serviços públicos. A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, adepta da qualidade total, atende 4 000 pessoas por dia e tem um custo para o estado de 95 milhões de reais. Outro hospital público em Porto Alegre que oferece um atendimento de pior qualidade, que pertence ao governo federal e atende 4 400 pessoas por dia, custa 495 milhões de reais aos cofres públicos.

V – Onde está o segredo?

G – O segredo está na tecnologia de gestão. O setor público brasileiro, com raras exceções, vive um apagão de eficiência. Ninguém se concentra em reduzir as perdas e pôr fim a ineficiências. Mas isso é o que mais importa. Estamos encantados com os recentes avanços da economia, mas nos esquecemos de colocar a casa em ordem. O Brasil precisa de gestão.  

V – Como o exemplo de um hospital municipal pode ser válido para um governo que gasta bilhões de reais?

G – Essa tecnologia tem sido utilizada no mundo todo. Não só pelas maiores companhias japonesas e americanas, como a Toyota e a General Electric, mas também pelo terceiro setor. Até os aeroportos dos EUA passaram a usar técnicas de gestão em qualidade total depois do 11 de Setembro. Veja o caso de sucesso do governo de Minas Gerais. Com uma gestão eficiente, o governador Aécio Neves zerou o déficit, pagou o décimo terceiro salário e agora tem recursos para investir. Não há onde isso não funcione.

V – O presidente Lula é um bom gestor?

G – Ele tem liderança e intuição diferenciadas, é um homem extremamente perspicaz. Mas, da mesma forma que seu antecessor, não conhece o conceito de tecnologia de gestão. É normal que não conheça, mas espera-se que se cerque de pessoas capazes. Infelizmente, tecnologia de gestão não está na cultura governamental brasileira. Existe um pequeno núcleo trabalhando com isso em Brasília, mas de forma periférica. Para funcionar, esse processo tem de ser adotado pelo líder principal de uma instituição. No caso do governo, o presidente.

V – O tamanho do governo federal brasileiro não torna a missão mais complicada do que melhorar a gestão de um hospital?

G – Só torna esse desafio mais urgente. Havendo pobreza no Brasil e muito pouco dinheiro para investir, é um absurdo que não se faça uma revolução na gestão dos gastos públicos. O país precisa ter essa visão estratégica. É necessário incutir nas pessoas e no governo o elemento de austeridade. Não há segredo: uma boa gestão é aquela obcecada em rever os procedimentos, eliminar as perdas e ganhar eficiência. Não interessa o tamanho do problema.  

V – Recentemente, o governo anunciou um choque de gestão na Previdência, para evitar perdas e fraudes. É um começo?

G – Sim, foi uma ótima iniciativa. Tenho certeza de que os ganhos serão enormes. Torço para que a medida seja adotada em outros setores. Os portos, por exemplo, teriam condições de produzir muito mais, mas suas gestões, mesmo em terminais privados, ainda são condicionadas a fatores políticos. Os programas sociais também teriam enorme ganho de eficiência com a melhoria de gestão.  

V – Quais são os ministros mais eficientes do governo Lula?

G – Os da área econômica: Antonio Palocci e Luiz Fernando Furlan. O Zé Dirceu também é muito hábil, altamente competente. Só que carrega o ônus de ter de gerenciar uma dualidade comportamental do partido. De um lado o PT apóia a gestão econômica do governo. De outro, a combate.  

V – Pode-se creditar ao atual governo o mérito das boas notícias econômicas, como o aumento das exportações e o crescimento?

G – O Brasil foi beneficiado por uma expansão sem precedentes da economia mundial. O mundo vive um ciclo raro de crescimento. As três macrorregiões – EUA, Europa e Ásia – estão crescendo simultaneamente. Não me lembro de isso ocorrer antes. O Brasil entrou nesse embalo, o que explica o crescimento de 5% do PIB em 2004. Mas isso não seria possível sem a adoção de ações firmes de combate à inflação. A confiabilidade da política econômica encorajou os investimentos empresariais.  

V – As siderúrgicas estão fazendo fusões em todo o mundo. Não seria natural uma fusão entre Gerdau, CSN e Usiminas?

G – Setores como os de cimento, petroquímico ou de alumínio já concluíram o processo de consolidação. Na siderurgia, a consolidação vem ocorrendo gradativamente e ainda tem um bom caminho para percorrer. O problema é que, no Brasil, as companhias se fundem quando uma delas apresenta fragilidades. Só que essas três empresas que você citou estão muito bem de saúde. Portanto, são compradoras, e não vendedoras. Por essa razão, o processo de consolidação é relativamente difícil de acontecer por aqui.  

V – Quando o senhor assumiu a presidência da Gerdau, em 1983, a empresa faturava 456 milhões de dólares. Em 2004, esse número ficou em 8,8 bilhões de dólares. O senhor pensa em vender a companhia?

G – Tenho tanta convicção do que faço que simplesmente não considero essa hipótese. Estamos interessados em aquisições, não em vender. Além disso, um estudo da Universidade Harvard provou que as empresas com controle familiar têm rentabilidade 15% superior às de mercado. Por que nossos funcionários e parceiros gostam da Gerdau? Porque nossos valores são os mesmos que eles defendem para seus filhos. Essa combinação é imbatível.  

V – O grupo Gerdau começou com seu bisavô, em 1901, e permaneceu no comando da família até hoje. Como anda o processo de sucessão?

G – Caminha de uma forma totalmente profissional. Ainda não está definido se a futura liderança dos negócios será exercida por um integrante da família ou não. Isso significa que o processo é aberto, ou seja, segue critérios absolutamente profissionais, buscando a sustentabilidade do negócio a longo prazo, independentemente de laços familiares. Como dizia meu pai, quem desejar os postos de maior significação, que apresente as suas credenciais de trabalho, capacidade e dedicação.
 

Fonte: Revista Veja, Edição nº 1902, Marcio Aith, 27/04/2005


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