Há espaço para ações afirmativas no país?
Otaviano Helene*

  

A retração da educação superior pública no Brasil faz com que o impacto prático
de qualquer política de cotas venha a ser imperceptível

Ações afirmativas têm sido adotadas por diversos países e em vários setores, como no emprego, na educação e na moradia.

Essas ações são dirigidas a diferentes grupos (origem nacional, gênero, etnia, profissão, religião etc.) e têm por objetivo, segundo seus defensores, reduzir barreiras sociais e combater desigualdades.

Argumentos contra ações afirmativas incluem o favorecimento de subgrupos já favorecidos (como negros ricos, nos EUA), a interferência na identidade cultural (como a incorporação dos maoris da Nova Zelândia à cultura européia por meio do sistema educacional) ou a pouca eficácia, uma vez que beneficia alguns enquanto prejudica outros, deixando o todo inalterado.

No Brasil, ações afirmativas têm surgido principalmente na forma de cotas em empregos públicos e de acesso preferencial ao ensino público superior. Essas políticas têm recebido críticas e apoios incisivos, especialmente no que se refere a cotas étnicas.

Entretanto, quais serão as conseqüências práticas dessas ações? No que segue, será avaliado o impacto da política de cotas em instituições federais de educação superior para egressos de escolas públicas.

Um primeiro aspecto é quanto à pouca abrangência de tais ações. Cerca de 1,6 milhão de jovens completam, a cada ano, o ensino médio em instituições públicas no país.

Como o número de vagas nos vestibulares das instituições federais de ensino superior é pouco superior a cem mil, a metade delas (as destinadas às cotas) atenderia apenas cerca de 3% dos potenciais candidatos.

A situação no Estado de SP é ainda muito pior: cerca de 450 mil conclusões por ano em escolas públicas para um total de vagas federais inferior a 2.000, metade delas correspondendo a 0,2% dos concluintes!

Um segundo aspecto é quanto ao possível perfil dos beneficiados. Apesar da falência do ensino público, há algumas exceções. Uma delas é formada pelo conjunto de escolas federais (Cefets, colégios de aplicação, escolas militares), de onde vem cerca de 1% dos concluintes do ensino médio.

Outro grupo, também com cerca de 1% dos concluintes, é formado pelas poucas escolas estaduais de boa qualidade, a quase totalidade delas escolas técnicas ou ligadas a faculdades de educação.

Essas escolas oferecem melhores condições de trabalho para seus docentes e de aprendizado para seus estudantes do que aquelas oferecidas pelas demais escolas públicas.

Muitas delas, ainda, selecionam seus alunos por meio de provas de ingresso. Ou seja, são escolas diferenciadas e que trabalham com estudantes também diferenciados. O desempenho dos egressos dessas escolas nos vestibulares é bastante elevado, em muitos casos superior ao de seus colegas de boas escolas privadas.

Como parte das cotas será ocupada por egressos dessas escolas, o número de novos beneficiados será bem menor, na média nacional, que os 3% estimados acima e praticamente nulo em São Paulo.

A primeira conclusão, portanto, é que a retração da educação superior pública no Brasil faz com que o impacto prático de qualquer política de cotas venha a ser imperceptível.

Outro aspecto a ser considerado diz respeito às demais condições em que a política de cotas é adotada. Nos diversos países, políticas de cotas foram adotadas juntamente com a retirada das barreiras que as motivaram.

Por exemplo, na Índia, as cotas que beneficiam as castas desfavorecidas são adotadas por um Estado laico, que não reconhece a classificação religiosa; nos EUA e na África do Sul, as ações afirmativas foram implementadas juntamente com a eliminação das leis racistas.

Entretanto, no Brasil, essas ações são adotadas enquanto as condições que as motivaram são mantidas: uma grande maioria das escolas estaduais e municipais de ensino fundamental e médio de péssima qualidade e uma concentração de renda que condena enormes contingentes populacionais a uma vida degradante, impossibilitando qualquer ação, material ou cultural, que permita enfrentar os problemas criados por uma escola pública falida.

Adotar ações afirmativas e preservar as barreiras que as motivaram parece esquizofrenia.

Embora os argumentos apresentados tenham se restringido a cotas para estudantes egressos de escolas públicas, eles podem ser estendidos aos vários subgrupos potencialmente beneficiados: em qualquer caso, a quantidade de beneficiados seria menor do que 3% do contingente total, considerando que parte dos estudantes ingressaria no ensino público superior independentemente das cotas.

Finalmente, é necessário observar que, se mantida a baixa qualidade do sistema público de educação básica, a política de cotas poderá ter um efeito perverso: os estudantes não inseridos não serão mais considerados vítimas de um sistema falido, mas, sim, os responsáveis pela interrupção dos próprios estudos, pois chances tiveram: a velha prática de responsabilizar a vítima.

* Otaviano Helene, é doutor em física, professor do Instituto de Física da USP e foi presidente da Adusp (Associação de Docentes da USP) e do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais).
 

Fonte: Folha de S. Paulo, 23/8/2006


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