“Abaixo
a ignorância e a má-fé”
Tarso Genro
Ministro da Educação rebate ataques às propostas de
reforma universitária
Em
aberto confronto com o que define como oposição legítima, ignorância e
má-fé, o governo Lula marcou no calendário o dia 15 de fevereiro, uma semana
após o Carnaval, como ponto de partida para uma discussão que vai agitar e
acender o segmento mais iluminado da inteligência nacional: a universidade.
Nesse dia, o Ministério da Educação contabilizará as sugestões que recebeu
desde dezembro passado, quando o ministro Tarso Genro levou ao presidente
Luiz Inácio Lula da Silva o anteprojeto de 35 páginas e 100 artigos do mais
novo desafio do governo – a reforma universitária. Mais sofisticada do que a
tributária, menos sangrenta do que a previdenciária, ela joga com os sonhos
da elite brasileira, que sobreviveu à fome, escapuliu do analfabetismo e
ultrapassou as fronteiras da miséria, alcançando o cume da pirâmide social
onde hoje vivem os 3,7 milhões de estudantes de universidades.
Agora,
ao contrário do que fez com aposentados e contribuintes, o governo trata
universitários, professores e escolas com mais cuidados e mesuras, abrindo
um debate que faz jus à qualidade intelectual das partes envolvidas. Desde
fevereiro do ano passado, 440 reuniões foram contabilizadas no Conselho
Nacional de Educação (CNE), órgão encarregado de sistematizar o debate da
reforma. “Só eu visitei 36 das 54 universidades federais Brasil afora”,
conta o incansável secretário executivo do CNE, Ronaldo Mota, que gastou
nove horas de reunião na quinta-feira 27 com 40 personalidades do mundo
acadêmico – entre eles os reitores da USP e da Unicamp, duas das mais
importantes universidades do País. As sugestões são tantas que o MEC está
pensando em prorrogar o recebimento das últimas propostas até o final de
fevereiro. Dali, o texto revisado vai para a Casa Civil, onde hibernará por
três meses, período em que o ministro José Dirceu receberá outro tanto de
sugestões da sociedade civil. Quando chegar junho, finalmente o governo
espera ter um projeto suficientemente maduro e oxigenado para enfrentar a
dura batalha do Congresso no segundo semestre do ano. Lula confia chegar ao
final de 2005 com outra proeza que nem o príncipe da sociologia Fernando
Henrique Cardoso conseguiu: aprovar a reforma que dará ao País uma
universidade mais aberta, mais moderna, mais democrática, mais bem
distribuída pelo País e mais gratificante para seus alunos e professores.
“Quanto
mais amplo o debate, quanto mais intensa a discussão, melhor a reforma
universitária que o País poderá fazer”, imagina o ministro Tarso Genro, no
centro de um debate que antepõe posições claras e alguns interesses menos
transparentes (leia entrevista a seguir). As escolas privadas desconfiam que
o governo trai um viés autoritário, já expresso no finado Conselho Federal
do Jornalismo e na vacinada Ancinav, ao criar conselhos nas universidades
com gente de fora, até mesmo de sindicatos. Os sindicatos acham que a
proposta do MEC vai injetar verba pública em escolas particulares. Partidos
políticos vêem o dedo do Banco Mundial no projeto do governo Lula,
intelectuais vêem a mão soviética de criptocomunistas pairando sobre os
campi verde-amarelos. Elitistas de todas as siglas torcem o nariz para a
reserva de vagas para negros e índios. Só o debate aberto e transparente,
como faz agora o governo, pode espanar a burrice de um espaço que não admite
nada menos que a inteligência.
ISTOÉ –
A reforma universitária discrimina as escolas privadas?
Tarso Genro
– Absolutamente. As escolas superiores do País, públicas ou privadas, são
delimitadas exclusivamente pelo interesse público, sem nenhuma
discriminação.
ISTOÉ –
Os críticos dizem que o governo quer amarrar as universidades usando a
Constituição.
Tarso
– Pelo contrário. O que vemos até agora é que a Constituição só vale, só se
aplica quando “conserva”, não quando “muda” ou “promove”. Queremos que ela
tenha força e eficácia igualmente sobre ricos e pobres.
ISTOÉ –
A proposta não fere a autonomia universitária?
Tarso
– Existe uma confusão, de boa ou má-fé, neste debate. A universidade é
autônoma, mas não é soberana. Soberano é o Estado, que zela pela igualdade
jurídica e pelo cumprimento da Constituição.
ISTOÉ –
Submeter a universidade aos princípios fundamentais da Constituição não
limita seu campo de atuação?
Tarso
– Isso não é uma limitação. É uma indução da Constituição federal, a quem
todos estamos democraticamente submetidos. Tem a deliberada intenção de
criar um vínculo da universidade com a Constituição. Qualquer governador,
prefeito, vereador está preso a estes princípios: “Construir uma sociedade
livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento, erradicar a pobreza,
reduzir as desigualdades e promover o bem de todos, sem preconceitos.” Por
que a universidade não estaria também? Os princípios fundamentais da
educação se confundem com os objetivos fundamentais da República expressos
em nossa Constituição. Isso não determina a redução de sua qualidade, mas,
ao contrário, obriga a aumentá-la.
ISTOÉ –
De onde vêm os ataques contra a reforma?
Tarso
– Da oposição política legítima, da ignorância ou da profunda má-fé, neste
caso de quem diz que estamos castrando a autonomia da universidade. Só pode
ser temor de alguns desavisados, que desconfiam que estamos, por exemplo,
reduzindo a autoridade legal exercida dentro das empresas privadas.
Felizmente, eles são uma minoria.
ISTOÉ –
A idéia de criar um Conselho Comunitário Social, com gente alheia à
universidade, não fere sua autonomia?
Tarso
– O conselho não é normativo, é consultivo, meramente opinativo. Ele ajuda a
ampliar o espectro da democracia na universidade, sem quebrar sua autonomia.
É a Constituição que assim determina no seu artigo 205.
ISTOÉ –
A reforma não acaba com a meritocracia, ao reservar vagas para
estudantes oriundos de escolas públicas, negros e índios?
Tarso
– Políticas afirmativas de inclusão não excluem o mérito no acesso aos
cursos superiores. Ainda existe muito preconceito. Agora, nas provas do
ProUni, a nota média dos alunos de escolas públicas foi 7 pontos superiores
às dos alunos de escolas privadas.
ISTOÉ –
“Necessidade social” para abrir uma nova escola não é um termo muito
vago?
Tarso
– Novas escolas serão abertas quando for demonstrada sua demanda, as
necessidades locais, avaliando a população e o potencial regional. Vamos
adequar a universidade às reais necessidades do País. Hoje, todos querem
escolas no litoral, no Rio de Janeiro e em São Paulo, centros superpovoados
com escritórios de médicos, engenheiros e advogados, o que acaba criando um
mercado degradado e nivelado por baixo. A necessidade social de outros
centros vai valorizar a universidade e os profissionais que ali forem
formados.
ISTOÉ –
Mas a universidade não deve ser autônoma para definir estas
necessidades?
Tarso
– A autonomia está expressa, claramente, no artigo 15 da proposta. Só uma
leitura preconceituosa vê diferente. Estamos reforçando as universidades
públicas e, ao mesmo tempo, fincando marcos regulatórios fortes, mas não
menos democráticos, para as universidades privadas, que se subordinam também
ao espírito público.
ISTOÉ –
Ao dizer isso, o sr. não está cerceando a universidade?
Tarso
– No capítulo dedicado à educação, a Constituição diz no seu artigo 209 que
o ensino é livre. Mas estabelece duas claras ressalvas: “Atendidas as
seguintes condições – I, cumprimentos das normas gerais da educação
nacional; II, autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.” A
restrição não é minha, é da Constituição. É justa e democrática.
ISTOÉ –
Acusam o governo, com esta proposta, de “sovietizar” a universidade.
Tarso
– É exatamente o contrário. Lá, na Rússia soviética, o Estado esmagou a
sociedade. Aqui, estamos preservando e promovendo o papel da sociedade na
universidade. Dias atrás, num jornal paulista, apareceu um consultor dizendo
que “em Cuba a universidade é coisa séria, porque lá o Estado é que nomeia o
reitor”. E ele ainda acha bom!... Ele acabou adaptando, pela esquerda, um
velho adágio de Juracy Magalhães: “O que é bom para Cuba é bom para o
Brasil.”
ISTOÉ –
Os críticos dizem que a reforma do governo se inspira no Banco
Mundial...
Tarso
– Essa bobagem vem desde os tempos em que circulava a proposta do senador
Cristovam Buarque (PT-DF) de que uma parcela dos alunos das escolas públicas
pagasse por suas vagas, sugestão que agradava bastante ao Banco Mundial. Nós
arquivamos esta idéia e, pelo jeito, não perceberam que nosso projeto
evoluiu bastante.
ISTOÉ –
O que mais irrita os críticos da reforma?
Tarso
– No artigo 28, nós instituímos o PDI (Plano de Desenvolvimento
Institucional), que obriga as escolas superiores a apresentar seu
planejamento estratégico a cada cinco anos. E eles não querem este controle
de qualidade.
ISTOÉ –
A Andes, principal entidade de docentes do País, é contra a reforma.
Tarso
– É porque ela é ligada ao PSTU, que faz uma oposição legítima ao governo
Lula e uma oposição irracional à proposta de reforma universitária. A UNE, a
OAB, a SBPC, a CNI, as centrais sindicais, todas apóiam a idéia da reforma,
com uma ou outra restrição que faz parte do debate democrático e ajuda a
melhorar a proposta do governo.
ISTOÉ –
O filósofo Denis Rosenfield, da UFRGS, diz que a proposta provoca o
desmonte da universidade.
Tarso
– Denis é o Pena Boto da pós-modernidade, o almirante golpista que tentou
evitar a posse de JK em 1956 e fundou a Cruzada Brasileira Anticomunista.
Denis ainda vive na era da guerra fria e acha que orçamento participativo é
coisa de comunista, de soviético. E, para seu espanto, o candidato que ele
apoiou e que nos derrotou em Porto Alegre, José Fogaça, vai manter o
orçamento participativo e gosta dele. O Denis, em matéria de política, está
para a direita assim como o Sendero Luminoso peruano está para a esquerda.
Só que, como o professor até agora não é violento, ninguém o leva a sério.
ISTOÉ –
O sr. não se incomoda com tantos ataques?
Tarso
– Sou tachado de esquerdista pelos neoliberais e de direitista pela Andes,
que é ultra-radical. Portanto, a reforma deve ter algo de bom. Ela induz a
universidade ao sistema republicano. Ao contrário do que pensam, ela não se
inspira em 1917, mas em 1789. Não é a Revolução Soviética, é a Revolução
Francesa. Com seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. É uma
proposta de reforma democrática, não soviética. Só não vê isso quem tem,
ainda hoje, uma visão feudal da sociedade.
Fonte: Revista Isto É, Luiz
Cláudio Cunha, 02/02/2005. |