Entrevista: Arnaldo Jabor
"Abaixo a utopia"

 

Para o jornalista, a solução para o Brasil é administrativa,
mas a esquerda insiste em se valer de "velhos métodos"

"Não tenho nada contra dar comida às pessoas, mas é
que isso é fácil. Difícil é lidar com a complexidade"

  Foto: Paulo Vitale

Quinze anos depois de abandonar o cinema, Arnaldo Jabor se transformou em um sucesso de público. Seus artigos são publicados em dezoito jornais, seus comentários na TV são vistos por 50 milhões de pessoas e seu último livro, Amor É Prosa, Sexo É Poesia, vendeu 260 000 exemplares. O diretor de sucessos como Toda Nudez Será Castigada e Eu Te Amo – que desistiu da idéia de fazer filmes no Brasil por "falta de pendor para o masoquismo" – levou para a nova atividade parte do que aprendeu na velha. Nas versões escrita e falada, Jabor alia a análise aguçada do cotidiano a um desfile de imagens irônicas e precisas, como faz em Pornopolítica – Paixões e Taras na Vida Brasileira, recém-lançada coletânea de artigos do autor. Aos 65 anos, o jornalista e ex-comunista vive o encantamento da paternidade tardia (seu filho caçula tem 6 anos de idade) e a desilusão diante de uma esquerda que, afirma, insiste em enxergar o mundo de forma "idílica, quixotesca e utópica". Em seu apartamento, em São Paulo, Jabor recebeu VEJA para a entrevista que segue.  

Veja – O senhor já disse que a eleição de Lula foi resultado da ignorância do eleitorado e da utopia dos intelectuais. A cada vez mais provável reeleição do presidente seria fruto de quê?

Jabor – Das mesmas coisas. Acho que a grande massa da população não consegue entender as filigranas do que considero que deva ser a mudança política e administrativa do país e também não conseguiu compreender em detalhes o escândalo que ocorreu. A população não sabe o que é sigilo bancário, fundo de pensão, emenda ao Orçamento – acha que o Lula foi injustiçado, que é uma vítima da pancada das elites. Já os intelectuais, grande parte deles não consegue entender o país e continua tendo uma visão utópica do Brasil.    

V – Em que consiste essa utopia?

J – É uma visão antiga do que seria "progressismo". Quando o Roberto Jefferson abriu a porta do bordel do Ali Babá e mostrou os 40 ladrões, nós tivemos uma visão de como o atraso, o clientelismo e a corrupção funcionam no Brasil. Também vimos como é utópica, frágil e louca, na minha opinião, essa idéia do que seria "progressista". É um ensopadinho feito de leninismo, de getulismo, de desenvolvimentismo, estatismo e sindicalismo. Esse ensopadinho nos joga de volta a um tempo de utopias irrealizáveis e impede uma agenda modernizadora, que é feita de mudanças óbvias. Óbvias, mas áridas para o gosto da velha esquerda: reforma tributária, reforma da Previdência, enxugamento do Estado. O que me dói no Brasil não é que seja difícil mudá-lo: é que me parece que seria fácil. VEJA, outro dia, deu uma matéria com sete prêmios Nobel. Todos, praticamente, receitavam a mesma coisa. As mudanças que têm de ser feitas no Brasil estão catalogadas cientificamente. Só que não têm a grandeza épica com que tantos intelectuais sonham. São um pouco mais sem graça. Com a diferença de que funcionam.  

V – O senhor acha que Geraldo Alckmin, em quem o senhor já disse que votará, seria capaz de executar essa agenda modernizadora?

J – Eu não sei em quem vou votar ainda. Gostaria de votar em um terceiro candidato que não existe. Porque é difícil: como é que você vai mobilizar partidos, opinião pública, pessoas em função de coisas não muito atraentes? Coisas que não têm a clareza de um belo slogan: "Proletários, uni-vos" ou "O imperialismo americano nos destruiu"? Esses slogans são muito mais legíveis do que "reforma disso, reforma daquilo". É muito fácil dizer, por exemplo: "Vou distribuir dinheiro no Bolsa Família, sim, qual é o problema?". Eu não tenho nada contra dar comida às pessoas, mas é que isso é fácil. Difícil é lidar com a complexidade, com aquilo que não atrai, que é difuso, que não é tão legível. Eu tenho medo do simplismo. Acho que a solução está no complexo. Eu votaria em um candidato que tivesse condições de lidar com essa complexidade. Votaria no Serra se ele tivesse sido candidato.  

V – Se o Serra tivesse sido candidato, o senhor acha que a situação eleitoral seria diferente hoje?

J – Acho que o Serra perderia também. Ninguém ganha do Lula. Ele continua sendo o Messias. Para o povo e para os intelectuais. Eu não tenho problema com o Lula. Se ele fizer um governo pragmático, de reformas institucionais, se fizer o óbvio que precisa ser feito, eu vou achar ótimo. O problema é que as pessoas que estão no governo detestam a administração porque ela é antiutópica. Quando o Brizola era governador, no Rio, tinha um secretário que dizia assim: "Eu não consigo me reunir com ele, ele só quer conversar sobre política". Brizola odiava ter de administrar o estado. O ideólogo odeia o concreto. O ideologismo me dá medo porque prescinde do estudo, da técnica, da análise. O sujeito nomeia o presidente do Instituto Nacional de Câncer só porque ele é de esquerda – e não existe câncer de direita, câncer de esquerda. Eu tenho medo dessa falta de objetividade que o ideologismo estimula. O agronegócio é um bom exemplo. O agronegócio foi o que sustentou o Brasil nos últimos três anos, mas, como é capitalista, pensam os comunas, então a gente tem de ser contra. Os ministros entram e começam a dar força ao MST. O governo dá dinheiro para aquele maluco milionário, o Bruno Maranhão, invadir o Congresso. Aquilo, aliás, foi um indício muito precioso do que está por trás desse pensamento da esquerda: "Vamos parar com essa farsa de democracia burguesa e vamos botar pra quebrar".  

V – Mais ou menos o que alguns artistas disseram em reunião com Lula há duas semanas...

J – É, eles disseram a mesma coisa: "Esse negócio de ética é besteira e tem de botar pra quebrar, porque o jogo político é assim mesmo". Quando esse cara diz isso, ele está denunciando o pensamento secreto dos velhos comunas. Porque, na realidade, esse papo de democracia, para a maioria dos petistas, é um papo que eles consideram burguês. Quando dizem que a ética não importa, que o que importa é o resultado, que em política tem de jogar sujo mesmo, na realidade eles estão dizendo que os fins justificam os meios, sim. Eles têm uma visão "revolucionária" da vida brasileira, quando é impossível fazer a revolução clássica num país como o Brasil.    

V – O senhor costuma dizer que o Brasil evolui por desilusões. A desilusão de muitos com o governo petista ensinou alguma coisa ao Brasil?

J – Acredito mesmo na evolução pela desilusão. Acho que a desilusão constrói mais do que a ilusão e os auto-enganos. Hoje, por exemplo, acho que estamos sabendo muito mais do Brasil do que sabíamos quatro, cinco anos atrás. Acho que os problemas brasileiros estão mais visíveis. Acredito que os acontecimentos dos últimos anos enterraram a idéia de solução e inauguraram a idéia de processo. Enterraram a idéia de revolução – clássica, tradicional – e colocaram a idéia de administração e de reforma. Enterraram também a idéia de uma velha esquerda – que não funcionou, que meteu os pés pelas mãos. Acho que já existe uma mudança no país, embora ela ainda não seja clara, palpável.    

V – Onde se percebe essa mudança?

J – Na compreensão maior dos problemas por parte da opinião pública, na desqualificação de velhas roubalheiras e velhos métodos, na contemplação dos nossos vícios tradicionais. Essa evolução ainda é meio difusa, mas, se ela não for obscurecida pelos petistas, vai se tornar uma coisa concreta.  

V – O senhor é um admirador de Freud. Do ponto de vista da psicanálise, como descreveria Lula?

J – O Lula é muito mais deslumbrado com o poder do que eu imaginava. É uma pessoa que, de certa forma, queria subir na vida e conseguiu, e está um pouco deslumbrado com isso. Ele tem um complexo de inferioridade em relação à cultura, à inteligência. Está sempre falando do Fernando Henrique de uma forma crítica, mas você vê que ele é fascinado pelo Fernando Henrique. O Lula estabelece sua diferença para com o Fernando Henrique inclusive quando exercita uma certa grossura proposital. E agora, mais sozinho como ele está, o perigo é que fique mais truculento, mais autoritário. Ele está encantado com a própria solidão. Acha que, sozinho, pode, enfim, fazer as coisas. A soma de solidão com falta de solidez ideológica é preocupante. Uma vez que desapareceu o programa imaginário dos que o cercavam, ficou um homem sozinho com uma tentação populista e personalista.    

V – Um segundo mandato não pode arrefecer isso?

J – Eu acho que pode é reforçar. O Lula vai ficar num delírio de grandeza extraordinário, ainda mais se eleito no primeiro turno. Eu tenho medo do voluntarismo, do machismo, do populismo, de um certo chavismo cordial. Você pega um cara como o Carlos Lessa (ex-presidente do BNDES) falando que tem de revitalizar o getulismo. Um neogetulismo hoje seria catastrófico no Brasil. Catástrofes acontecem. Ainda mais em um país onde a Previdência tem um déficit de 50 bilhões de reais, onde os tributos estão na faixa de 37%, onde 40.000 cargos foram ocupados e aparelhados. É muito fácil arrebentar o país. Qualquer imprudência voluntarista pode nos jogar em uma rota bolivariana, em uma rota que não nos serve, porque é estreita e nós somos um país muito mais complexo.  

V – O cenário atual da América Latina contribui para aumentar esse risco?

J – Por um lado, sim. Eu acho que o simplismo hispânico do chavismo e do bolivarianismo – que tem origem no Bolívar mesmo, que era um Napoleão ridículo da América Latina, um sub-Napoleão – está presente e é uma ameaça. Mas, por outro lado, isso pode ser até bom. Acho até bom que o Hugo Chávez e o Evo Morales nos provoquem para que se estabeleçam diferenças. Quando se tem uma tribo de índios pedindo 9 milhões de dólares de pagamento para não destruir o gasoduto, isso é de um ridículo tal que nos obriga a estabelecer uma diferença. O Brasil é um país muito mais desenvolvido do que essa coisa hispânica, atrasada, a nosso redor.    

V – O senhor apoiou Lula no primeiro ano de governo e chegou até a defender o ex-ministro José Dirceu no caso Waldomiro...

J – Eu defendi o Zé Dirceu um pouco no início. Eu entendia que ele pensava: "Esse cara aí, esse Waldomiro, é meio ladrão, mas tudo bem, ele é útil". Só que o projeto era muito mais sinistro – era um projeto que vinha sendo planejado havia 25 anos: entrar no governo para, por dentro, reformar o Estado e ficar vinte anos no poder. No caso do apoio ao Lula, não acho que foi um erro de análise, porque acredito que esperança é fundamental. O Lula é uma pessoa muito interessante. Ele foi a grande novidade da esquerda brasileira nos últimos trinta anos. A esquerda vivia de ideologias. O Lula, quando surgiu, trazia a novidade de um "pragmatismo operário". O "novo" era justamente a ausência de ideologias. Depois, ele foi cooptado pelos "dirceuzistas-genoínicos-gushikênicos", não sei o nome que se pode dar a isso. O Lula foi cooptado por um ideologismo que ele já tinha transposto.    

V – Quem é cooptado também tem sua culpa, não?

J – O que eu quero dizer é que ideólogos, intelectuais desempregados e comunas vencidos em 1964, 1968 se aproximaram do Lula para usá-lo como símbolo e foram transformando o PT num partido com alma leninista, contrariando sua vocação espontaneamente social-democrata. Ele, aos poucos, embarcou nessa canoa e fez vista grossa às manobras "revolucionárias" e clandestinas do "dirceuzismo-genoínico" que foi destroçado 25 anos depois pelo Ali Babá Jefferson.    

V – O senhor acha que o presidente sabia de tudo?

J – Sabia, claro.    

Ve – Qual foi seu maior equívoco de análise?

J – Acho que o maior erro da minha geração foi achar que resolveria os problemas do país de forma unilateral e voluntarista. A idéia de que somos sujeitos da história e vamos resolver o país não é democrática.    

V – O senhor está se referindo a sua experiência no Partido Comunista?

J – É, a gente achava que era tudo fácil, a gente achava que o mundo mudaria apenas pela nossa vontade. Hoje eu tenho horror da visão quixotesca, da visão idílica e utópica. A coisa é muito mais intrincada. A contemplação dessa dificuldade é essencial. O que vai surgir daí eu não sei. Mas o que não dá mais pé é se contentar com um sonho.
 

Fonte: Rev. Veja, Thaís Oyama, ed. 1972, 6/9/2006


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