O MUNDO PELO AVESSO
FHSeverino
Emir Sader*

 

O bom do acordo entre FHC e Severino, que levou este último à presidência da Câmara, é que ele desmascara a falsa oposição
entre “modernidade”  e “atraso”, entre “dinamismo paulista”
e “arcaísmo nordestino”. Um é condição do outro, como já
haviam mostrado os 8 anos de governo tucano no país.


O
que quer FHSeverino para o Brasil? A volta dos tucanos e o cumprimento dos acordos com o FMI, privatizando a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica, em 2007, para retomar a herança que seus oito anos de privataria deixaram para o Brasil?

Nada melhor para representar a aliança entre o que pretende ser o “progresso”, com o que aparece como o “atraso”, do que os acordos, a aliança e o abraço entre FHC e Severino. Ninguém tem dúvida que este foi o candidato incentivado, articulado e apoiado pelos tucanos. O bloco formado pelo PSDB e pelo PFL é a expressão orgânica desse encontro entre o “moderno” e o “arcaico”, entre a avenida Paulista e os poços do Dnocs nas fazendas privadas. Mas os encontros de FHC e Severino têm um poder simbólico incomparável sobre a natureza das elites brasileiras neste começo do século XXI.

A contraposição entre os pólos de “modernidade” e “atraso” nunca conseguiu dar conta da dinâmica real do capitalismo brasileiro. Este sempre se valeu das formas mais atrasadas de exploração da força de trabalho – a começar pelo trabalho escravo, que esteve presente em pelo menos três dos últimos quatro séculos da nossa história. Mesmo depois do término formal da escravidão, o desenvolvimento econômico seguiu dependendo, no campo, das mais variadas formas de exploração pré-capitalista do trabalho. Mais recentemente, houve a generalização das formas precárias de exploração do trabalho – acobertadas sob o nome de “terceirização”, de “informalidade” etc. Esse é um dos aspectos essenciais para compreender a particularidade do capitalismo brasileiro.

Equivocados estavam os que acreditavam que o desenvolvimento industrial representava a “modernidade”, oposta ao “atraso” do campo, fazendo com que aqueles fossem aliados do povo, enquanto o “atraso” se limitaria a “resquícios” que seriam varridos com o avanço da “modernidade”. O próprio golpe militar de 1964 se encarregou de demonstrar como as coisas não eram assim. A interrupção do projeto de desenvolvimento industrial com reforma agrária e com distribuição de renda revelou como essa divisão entre o grande empresariado, que globalmente se somou à ditadura e às suas políticas desnacionalizantes e concentradoras de renda, de freio ao desenvolvimento do mercado interno de consumo popular e de incentivo à alta esfera do consumo e à exportação.

Ao contrário do que alguns previam, no entanto, o Brasil não retrocedeu para ser um país agrário. Avançou na sua industrialização, porém imprimindo a ela um caráter distinto: aceleração da integração internacional subordinada e expansão do consumo de luxo no plano interno. O “atraso” e a “modernidade” – Severino e FHC – davam as mãos, unidos pela brutal intervenção militar de duas décadas e meia, que amoldou por longo tempo o Brasil injusto e antidemocrático que vivemos hoje. O Brasil passava a ter, cada vez mais, a cara de FHSeverino, de mãos dadas, contra o povo, a soberania e a democracia.

Esse Brasil sobreviveu à ditadura, quando a transição lhe deu forma institucional na aliança PMDB/PFL e se prolongou alegremente no bloco que sustentou o desastroso governo de FHC e que ainda hoje é o bloco preferido do grande empresariado – PSDB/PFL –, a legítima expressão atualizada do FHSeverino.

Antecedentes desse híbrido, desse produto político transgênico, estavam presentes na adesão de FHC ao governo Collor. Atribui-se a Sergio Rouanet a afirmação de que a entrada dele e de gente como Celso Lafer e Helio Jaguaribe ao governo Collor serviriam como posto avançado para o desembarque feliz dos tucanos em revoada. FHC-PC Farias seria o mix daquele governo, que teve que esperar um pouco para se materializar na presidência de FHC. Aqui se governou com ACM e com Inocêncio de Oliveira, em um alegre congraçamento entre a “elite paulista moderna” e “o atraso oligárquico do Nordeste”, enquanto o próprio então presidente da República pedia o esquecimento para o que tinha escrito.  

Podemos nos preparar para convescotes eleitorais presididos por FHSeverino, cuja aliança teve seu primeiro passo na vitória para a presidência da Câmara. Tatu não sobe em árvore: alguém o colocou lá. Baixo clero e Severino não elegem presidente da Câmara: as vestais FHC e Jorge Bornhausen os colocaram lá.  

Não fosse grotesco, seria ridículo, mas certamente é trágico o conluio das elites, em que Severino estica as mãos para políticos corruptos, enquanto FHC, como ponta de lança para cima desse filho do ornitorrinco – segundo a expressão de Chico de Oliveira – vai a Washington abraçar a Henry Kissinger, para completar o leque das elites – do alto e do baixo clero – que querem abocanhar de novo o governo no Brasil.  

O bom dessa junção é que ela desmascara a falsa oposição entre “modernidade” e “atraso”, entre “dinamismo paulista” e “arcaísmo nordestino”. Um é condição do outro, o “atraso” está reciclado para os tempos do agronegócio e a “modernidade” vive de modo parasita, mamando nas tetas do Estado através da especulação financeira.  

O poeta salvadorenho Roque Dalton já nos advertia: “Atenção, os menos fascistas dentre os fascistas também são fascistas”. Os “menos modernos” dentre os “modernos” e os “menos atrasados” dentre os “atrasados” entendem-se muito bem, dão as mãos diante da marcha dos sem-terra, da política externa independente, da defesa da escola pública, de uma política cultura voltada para as identidades populares. Tudo os assusta e eles cerram os dentes e apertam os bolsos. FHC e Severino: FHCSeverinos todos.
 

* Emir Sader, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), é coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj e autor, entre outros, de “A vingança da História".  

Fonte: Ag. Carta Maior, Emir Sader, 24/5/2005.


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